Despachos do futuro: 2033 foi um ano ruim

O Natal virou uma época estranha nestes últimos tempos. Agora, no ano de 2033, o ato de nos reunirmos em volta de uma mesa para conversar e lavar a roupa suja familiar parece estranho, desconexo com a realidade que vivemos lá fora. E pensar que tudo começou a mudar em 2013. É preciso dizer desde […]

O Natal virou uma época estranha nestes últimos tempos. Agora, no ano de 2033, o ato de nos reunirmos em volta de uma mesa para conversar e lavar a roupa suja familiar parece estranho, desconexo com a realidade que vivemos lá fora. E pensar que tudo começou a mudar em 2013.

É preciso dizer desde já que 2033 foi um ano ruim. Não tem sido fácil viver, escrever e relatar o que vem acontecendo pelo mundo de alguma forma fácil de entender. Mas como a ideia é que esses kilobytes viajem pelo tempo, tentarei resumir rapidamente o que temos vivido.

O mundo de 2033 é menos Skynet do que muitos previram. Na verdade, ele é muito mais próximo ao que Dave Eggers escreveu no livro The Circle – uma ficção que infelizmente ganhou tons de realidade. Não foi preciso uma guerra para que sossegássemos. Vivemos vinte anos de trocas de liberdades em prol da comodidade e, aos poucos, aceitamos.

2013 foi um ano importante como termômetro. Foi o ano em que a agência de espionagem americana, a NSA, foi desmascarada, mas o baixo interesse do público acionou um sinal verde em diversas empresas – muito mais espertas do que governos. “Quem não deve não teme”, lembro de ler pelos confins da internet, e ao aceitarmos o acompanhamento digital e de telefones como algo que fazia parte da vida moderna, nós provamos que estávamos prontos para abrir mão de certas coisas.

Tudo foi vendido com um verniz muito atraente. Entregue seus dados, entregue seus passeios pela internet, e receba as melhores ofertas, as melhores dicas, os melhores caminhos. Deixe-nos acompanhar tudo que você faz para ser recompensado. Veja, que lindo, nossa nova frota de drones. Eles estarão na sua casa um dia! Veja também estes robôs… Ah, os robôs.

É estranho lembrar da época em que o Google adquiriu a Boston Dynamics. O grande G ainda era mais conhecido por sua veia digital, mas já estava mostrando que se interessava muito pelo mundo físico também. Começou com o carro sem motorista, depois um importante diretor passou a cuidar da parte de robótica e, de repente, uma empresa que recebia rios de dinheiro da DARPA estava nas mãos de uma das maiores empresas do mundo.

Foram alguns anos de silêncio sobre como diabos o Google usaria tais robôs, mas nos acalmamos após vermos horas de apresentações ao vivo mostrando como tais soluções ajudariam o mundo. Assim como os drones da Amazon, vimos um horizonte robótico bonito, melhor para todos nós. Mas confesso que me assustei muito no Google I/O de 2020, quando a empresa apresentou um dos novos robôs criados, com uma pele feita em impressora 3D, imitando um animal. O Google dizia que eles estariam nas ruas em breve, nos ajudando.

A ajuda imaginada pelo Google, e aceita pelos países em que o discurso sedutor da empresa funcionou (hoje a empresa gasta com lobby em Washington mais do que o PIB de uma dezena de países), se transformou em uma vigilância estranha. Todos os robôs carregam câmeras – imagine um robô de Google Glass – e todos sabem quem somos, o que fazemos e o que deixamos de fazer. O excesso de informações que fornecemos fez com que, neste ano, alguém fosse cutucado por um robô. Ele queria saber por que ele não havia pago uma dívida.

Daí em diante, passamos cada vez mais tempo em casa. A dose de medo misturada com o discurso de “trabalho do futuro” – remoto, distante e, muitas vezes, nada humano – fez com que nos confinássemos. A situação nas ruas também não era das melhores, já que vários sindicatos protestavam pelas demissões em massa. Elas tinham a ver com os robôs e a diminuição do número de postos de trabalhos, claro, mas também envolviam a desvalorização de profissões, já que todos podiam produzir de tudo. Diluímos a produção qualificada pensando em um discurso utópico de que todos podemos fazer de tudo.

Pela quantidade de informação produzida, pela transparência vendida, por conta do tempo que passamos sozinhos, viramos entes digitais. Os grandes momentos de felicidade de muita gente acontecem quando o zunido de um drone da Amazon surge pela janela – compras, enfim!

O problema é que nenhuma compra esconde o fato de termos cada vez mais medo de sermos nós mesmos. Perdemos o direito de ser dúbios, subjetivos, complexos. Tudo passou a ser preto no branco, todo contexto é aquele que está presente em imagens e rastros digitais, e eu tenho a sensação que isso fez com que cada vez mais pessoas passassem a ter o cérebro composto por creme de milho.

Olhando para trás, talvez tenhamos nos acostumado a discutir pequenices e deixar o cenário completo de lado – sempre é mais complicado discutir o big picture. Para cada polêmica imbecil nas redes sociais, deixamos de pensar de forma maior. Para cada foto compartilhada no Facebook, aceitamos que as redes sociais acompanhassem o movimento do nosso mouse. Acreditamos mesmo que aquele punhado enorme de dados – o tal de “Big Data”, sempre vendido como ótima solução para as empresas – tornaria o mundo mais interessante. O mundo, hoje, é mais organizado. Mas eu não sei se isso é exatamente um elogio.

Mas um robô me deu “Feliz Natal” na rua ontem. Admirável este mundo novo.

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