30 anos depois, o primeiro delator da NSA conta todos os detalhes de sua história

O prédio de quatro andares na rua East 37th, em Manhattan, não tem nenhuma característica marcante: um edifício simples em uma rua tranquila e arborizada, à sombra do Empire State Building. No verão de 1920, Herbert O. Yardley, um decifrador de códigos do governo, se mudou com uma gangue de gênios da matemática e começou […]

O prédio de quatro andares na rua East 37th, em Manhattan, não tem nenhuma característica marcante: um edifício simples em uma rua tranquila e arborizada, à sombra do Empire State Building. No verão de 1920, Herbert O. Yardley, um decifrador de códigos do governo, se mudou com uma gangue de gênios da matemática e começou a decifrar telegramas diplomáticos japoneses interceptados. Essa foi a Black Chamber, a primeira agência civil de decifradores de códigos dos Estados Unidos. Daí nasceu o estado de vigilância dos EUA, e também foi daí que surgiu a National Security Agency, a NSA, da qual talvez você tenha ouvido falar recentemente.

Eu estava em pé na calçada do lado de fora do prédio, em uma tarde de sexta-feira de um verão escaldante, esperando para encontrar um homem chamado Perry Fellwock, conhecido no passado como Winslow Peck. Há quatro décadas, Fellwock se tornou o primeiro delator da NSA, explicando à imprensa o enorme escopo da espionagem da agência e a sua missão para um público que mal sabia que tal organização existia. Suas revelações para a revista radical Ramparts foram parar na primeira página do New York Times. Ele se tornou uma peça-chave no turbulento movimento anti-vigilância nos anos 1970, em parceria com Norman Mailer, e se tornando alvo da propaganda da CIA. Mas hoje ele é um negociante de antiguidades semi-aposentado vivendo em Long Island, tão obscuro quanto a Black Chamber um dia foi.

Usar a antiga sede da Black Chamber como ponto de encontro foi sugestão minha. Foi minha terceira tentativa de encontrar Fellwock. Ele insistia em realizar o encontro em um lugar neutro, e continuava cancelando. Agora eu estava de pé na calçada, memorizando o padrão de manchas na lanterna acima do porta do prédio, tentando o meu melhor para não parecer um espião. Um homem idoso passou por mim, e eu observei, meio que esperando que ele circulasse de volta depois de um tempo. Fellwock já havia demonstrado que seria cauteloso o suficiente para fazer isso.

Ele não confia em jornalistas. “Se você voltar ao Church Committee [comissão do Senado dos Estados Unidos que investigou as atividades da CIA nos anos 1970], você verá que muitos dos seus colegas trabalharam para as agências de inteligência”, me explicou pelo telefone. Ele falou deliberadamente, com uma voz aconchegante de barítono, como um narrador de documentário. “Acredito que você seja honesto, mas quem sabe o que esperar do pessoal do seu escritório? Quem sabe sobre seu chefe, os tipos de acordos que ele faz?”

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Ouvi o nome de Perry Fellwock pela primeira vez algumas semanas após Edward Snowden, o antigo funcionário de inteligência de 26 anos, entrar na história com seus laptops cheios de segredos da NSA. Após o Guardian começar a publicar artigos baseados nos documentos de Snowden, o site anti-segredos Cryptome repostou o artigo original da Rampart de 1972, “Electronic Espionage: A Memoir” (Espionagem Eletrônica: Uma Memória, em tradução livre), no qual Fellwock havia denunciado a NSA.

Fellwock, sob seu pseudômino Winslow Peck, foi apresentado como:

um analista da NSA no posto de escuta da Istambul por dois anos e meio. Ele participou dos jogos mortais de esgrima internacional que acontecem diariamente com a União Soviética, traçando suas forças aéreas e terrestres e penetrando suas defesas.

Na época, apenas os contornos mais amplos das atividades da NSA haviam sido publicadas na imprensa. Sua sede não tinha nenhuma marca, sua descrição nos documentos oficiais do governo dos EUA era restrita e absurdamente vaga: “realiza funções altamente especializadas técnicas e coordenativas relacionadas à segurança nacional.” O espetáculo pós-Snowden do chefe da NSA dando explicações ao Congresso dos EUA, e então sendo desmentido por vazamentos posteriores, era inimaginável. Nenhum diretor havia falado publicamente sobre a missão da agência, ainda menos sobre o que ela fazia ou deixava de fazer.

“Eles nunca pensaram que alguém seria capaz de escrever sobre eles,” disse o jornalista James Bamford, que escreveu três livros sobre a NSA, incluindo o primeiro relato definitivo da agência, Puzzle Palace, de 1982. “Na época, era uma agência que meio que existia além do resto do governo, praticamente.”

E aí, em 1972, um analista trapaceiro, um garoto nos seus 20 e poucos, começou a descrever os negócios da NSA, até as cores dos emblemas usados em sua sede. Winslow Peck afirmou que a NSA havia quebrado todos os códigos soviéticos, que a versão oficial do governo para a Guerra do Vietnã era uma mentira, e que a agência era culpada de corrupção lasciva.

Poucas pessoas na NSA estão em atividades ilegais de um tipo ou de outro. Isso é considerado como sendo um dos benefícios adicionais do trabalho. Você sabe, encher o bolso. Contrabando. Pessoas dentro da NSA se envolveram até com tráfico de escravos.

Era a mesma auto-confiança, beirando a arrogância, que vem de Snowden – a urgência de um juramento quebrado em nome de algum princípio mais fundamental. O que aconteceu a Fellwock para ele contar tudo à Ramparts, e o que aconteceu depois? Em meio à urgência das divulgações de Snowden, uma revelação após a outra, Fellwock parecia oferecer a chance de avançar 40 anos no tempo, para ver como o caso Snowden pode parecer em retrospecto.

Enviei email para o arquiteto cypherpunk John Young, o fundador enigmático do Cryptome, para ver se ele poderia me ajudar a chegar a Fellwock. O site funciona como uma comunidade online de pessoas perturbadoramente conhecedoras das práticas de inteligência, e que trocam emails cheios de rumores sombrios, mas não confiáveis.

Young forneceu algumas pistas e insights: “Dizem que Fellwock é bem recluso, mas como um cara recluso, esperamos nele o desejo de vingança, justificação, triunfo, a coragem para dar o tiro final. Então use engenharia social para lidar com o Famoso Herói Original da NSA.” No fim, não precisei de tanta engenharia social. Ele vive em Oceanside, Long Island. O telefone do agente estava no Google.

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Porém, descobrir Fellwock era uma coisa, mas fazer com que ele falasse era outra. Na primeira vez em que eu telefonei para ele, a conversa durou apenas quatro minutos. Ele concedeu um comentário improvisado e críptico sobre a história da Ramparts: “Bem, aquilo não era exatamente de uma entrevista comigo.” Na maior parte do tempo ele deixou claro que não desejava um retorno aos holofotes da mídia. “Neste momento, eu não tenho nada a acrescentar.”

Alguns dias depois, eu tentei de novo. Dessa vez, ele se desenrolou como uma fita cassete: falou longamente sobre a NSA e recomendou vários artigos e livros. Esse material me ajudaria a compreender a história misteriosa por trás das conspirações sombrias que ele descreveu, envolvendo agências de inteligência americanas e britânicas. A coisa toda soava bizarra mas, dada a fonte, era possível que fosse tudo verdade. Como se tratava de muita informação, sugeri que nos encontrássemos ao vivo, num café em Manhattan, e Fellwock concordou com relutância.

No dia anterior ao nosso encontro, no entanto, recebi um misterioso e-mail da conta descartável do Gmail que Fellwock havia criado para se comunicar comigo. “Fui aconselhado por um advogado a não me encontrar com você. Por favor, não tente entrar em contato comigo. Eu não estou interessado nos assuntos que você mencionou.”

Ainda assim, uma semana depois eu liguei para ele. “O que aconteceu?”, perguntei.

“Meus advogados me aconselharam a não falar mais sobre esse assunto”, ele respondeu. “Eu conversei com eles e analisamos algumas questões. A única coisa que eu posso dizer é que você realmente deveria olhar para o que está acontecendo com os outros informantes que vazaram informações.”

Eu disse a ele que sabia que o governo Obama estava reprimindo os informantes e leakers. “Mas você não fez nada por anos,” eu disse. “O que eles poderiam fazer com você agora?”

“Eles não podem fazer nada comigo pelo que fiz no passado, mas não quero que façam alguma coisa por conta do que estou fazendo agora. Eu já falei demais.” Ele fez uma pausa e abaixou a voz de forma dramática: “Este não é um bom momento. Não é um bom momento para o nosso país.”

Mas enquanto nós discutíamos, Fellwock acabava fazendo longas digressões sobre a NSA e seu próprio passado de informante. Finalmente, eu apontei quanta informação ele estava me dando naquela conversa. “Por que você simplesmente não se encontra comigo?” eu disse.

“Ok,” ele respondeu. “Eu poderia encontrá-lo em algum lugar, preferencialmente ao ar livre. Eu quero ser capaz de ver as pessoas que estarão ao redor.”

Nós marcamos uma nova data: meio-dia de uma sexta-feira, num banco do lado da fora da estação de trem em Oceanside. Quando eu estava prestes a desligar, ele me interrompeu.

“Espere, eu não sei se um encontro numa estação de trem é uma boa ideia, porque parece meio assustador,” ele disse. “Eu não sou uma assombração, então eu não quero fazer nada que seja assustador. Talvez você pudesse me encontrar enquanto eu estivesse no mercado. O que poderíamos fazer para parecer um encontro normal?”

Eu tentei pensar em coisas que um negociante de antiguidades de 67 anos e um jornalista de 28 anos pudessem fazer juntos normalmente. Fazer compras no mercado não estava no topo da lista. Fellwock tinha outro plano: nós poderíamos ir a um restaurante chinês perto da estação de trem para almoçar.

“Espero que eu não me arrependa disso,” ele disse, mas não haveria chance para arrependimentos. Mais uma vez, ele cancelou o encontro abruptamente. Enquanto se desculpava, ele me disse que estaria em Manhattan mais tarde para tratar de outros negócios. Nós poderíamos nos encontrar por lá?

Então eu fiquei esperando em frente ao endereço combinado. A hora do nosso encontrou chegou e passou. Cinco minutos. Dez minutos. E então um homem de cabelos brancos penteados para trás num topete, com uma camisa azul listrada e calças pretas, caminhou diretamente para o prédio. O suor escorria de sua testa por caminhar no calor. Ele apertou minha mão e olhou para o prédio de arenito.

“Este é o lugar onde Yardley começou a coisa toda,” ele disse.

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Em 1972, um Perry Fellwock de 25 anos se sentou numa lanchonete IHOP de Berkeley com os co-editores da Ramparts, Peter Collier e David Horowitz, e conversou com eles sem hesitações. Fellwock havia enviado para a revista esquerdista um artigo, assinado sob o pseudônimo Winslow Peck, explicando que ele era um veterano da Força Aérea Americana que havia sido anexado à NSA e agora queria expor a agência.

A equipe da Ramparts não sabia de início o que fazer com a história datilografada que eles haviam recebido. “Ela estava cheia de termos desconhecidos, como ‘SIGINT’ e ‘ELINT’, que não significavam nada para nós,” disse Peter Collier. Mas um funcionário que havia trabalhado na inteligência militar leu a matéria e entrou em pânico. Ele ficou arrepiado com os códigos que só alguém que realmente tivesse estado lá dentro poderia conhecer. “Se nós publicássemos aquilo, ele disse, nós iríamos para a cadeia,” Horowitz recordou mais tarde em seu livro de memórias “Radical Son”.

Então Collier e Horowitz decidiram convidar Fellwock para ir a Berkeley. Colliers lembra dele como uma espécie de geek com uma paixão incomum e intensa, mesmo se comparado às pessoas com quem a Ramparts costumava conversar, como os Panteras Negras e os revolucionários latino-americanos. “Ele era uma pessoa muito, muito estranha,” disse Collier. “Física e estilisticamente estranha.”

Até então, Fellwock havia dedicado sua vida ao movimento anti-guerra, tendo se mudado para San Diego para ajudar a planejar as manifestações contra a Convenção Nacional Republicana agendada para acontecer naquela cidade. Em Berkeley, ele contou aos editores da Ramparts os detalhes de tudo o que ele havia feito até então.

Ele entregaria a eles o primeiro relatório abrangente e cru que viria de dentro de uma máquina de espionagem com ligações no mundo inteiro. Até então, a NSA havia desempenhado um papel fundamental em quase todos os grandes eventos geopolíticos e militares da Guerra Fria sem quase nenhum escrutínio público. As únicas outras revelações comparáveis haviam acontecido mais de uma década antes, quando dois desertores da NSA que fugiram para a Rússia esboçaram as atividades da agência durante uma conferência de imprensa de trinta minutos em Moscou, em 1960.

A escassez de informação livres (ou seja, não editadas por “motivos de segurança”) sobre a NSA explica por que, embora a história da Ramparts fosse baseada apenas na palavra de um analista desconhecido, o New York Times colocaria notícia na primeira página. A cobertura do Times teve como foco principal a afirmação de Fellwock de que os Estados Unidos poderiam “quebrar todos os códigos soviéticos com sucesso considerável”.

Há relatos de que os Estados Unidos refinaram suas técnicas de inteligência eletrônica a ponto de conseguirem quebrar os códigos soviéticos, escutar e compreender as comunicações e programarem sistemas que poderiam rastrear praticamente todos os aviões a jato e submarinos de transporte de mísseis do mundo.

O objetivo da Ramparts e de Fellwock com a revelação da capacidade dos Estados Unidos era expor a justificativa para os excessos militares da Guerra Fria como uma farsa, uma vez que os Estados Unidos eram claramente a parte dominante do jogo. É quase certo que as revelações eram exageradas. “Nós nunca quebramos todos os códigos da Rússia,” disse Bamford. Mas muito do que Fellwock disse era verdade, revelando, como o Times escreveu na época, “detalhes obscuros de que já se suspeitava sobre a espionagem eletrônica ao redor do mundo.” Mais significativo do que qualquer fato individual foi o incrível furo no sigilo quase absoluto que cercava a NSA.

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Perry Fellwock (meio), cercado por David Horowitz (esquerda) e Peter Coolier (direita), na redação da revista Ramparts, em julho de 1972

“Eu pensei que era algo bem relevante porque até então ninguém havia feito aquilo e era preciso muita coragem para fazer uma coisa daquelas na época,” disse Bamford.

Fellwock sabia que quebrar seu juramento de sigilo o colocaria em rota de colisão com o governo. Naquela primavera, Rennie Davis – seu amigo e ativista anti-guerra – declarou: “Se o governo não acabar com a guerra, o povo vai acabar com o governo.”

Fellwock levou a mensagem a sério. Ele havia acompanhado com interesse as consequências do vazamento de documentos do Pentágono um ano antes e esperava que suas próprias revelações pudessem provocar uma indignação pública semelhante. Se ele fosse processado por causa do artigo, melhor ainda: isso só traria ainda mais atenção para o que o governo estava fazendo de errado.

“O que eu queria era acabar com a guerra e eu estava disposto a fazer o que fosse possível para atingir o meu objetivo,” Fellwock me disse. “Eu estava louco.”

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Pessoalmente, Fellwock não parecia o paranoico assombrado com quem discuti pelo telefone. Ele tinha um rosto amigável. Imediatamente se desculpou por seu nervosismo anterior. “Depois da minha família e dos meus advogados ouvirem o que eu tinha dito para você, eles ficaram loucos”, ele disse enquanto ria.

Nós fomos a uma lanchonete próxima. Fellwock pediu um steak de frango grelhado, cruzou seus braços, e começou a me contar como ele foi de uma infância normal em Joplin, Missouri, até a capa do New York Times. Não houve nenhum momento decisivo, ele contou, apenas um longo processo de desilusão, o que também aconteceu com muitos jovens dos Estados Unidos nos anos 60.

Quando a Guerra do Vietnã começou, Fellwock estava na faculdade estudando arqueologia. “Não tinha objetivos de carreira”, ele explicou. “Meu interesse principal estava em antiguidades”, continuou. Convencido de que o serviço militar era inevitável, ele se alistou nas Forças Aéreas em 1966, acreditando que essa seria a melhor maneira de evitar combates.

Durante seu treinamento, Fellwock foi abordado por três homens que, como ele descobriu depois, trabalhavam na NSA. Ele passou por uma bateria de testes e foi selecionado para entrar na NSA como analista. “A principal preocupação deles era em relação à nossa vida sexual,” ele disse à Ramparts em 1972. “Eles queriam saber se éramos homossexuais.”

Após o treinamento, Fellwock mergulhou nas linhas de frente da Guerra Fria. Ele se voluntariou a uma vaga de escuta da NSA na Turquia, em um pequeno vilarejo costal chamado Karamursel, ao sudeste de Istambul. Seria uma chance de ver o mundo, ele pensou, e particularmente as relíquias do Império Otomano.

Ele recebeu a tarefa de analisar as atividades aéreas soviéticas. Apesar do público dos Estados Unidos estar assustado com a ameaça soviética, Fellwock disse que seu acesso à inteligência crua fez com que ele se sentisse mais seguro – mesmo que ele tenha sofrido com ansiedade ao rastrear o voo de aviões russos com armas nucleares a direção de Istambul, fazendo retorno pouco antes da linha que iniciaria uma guerra nuclear.

“Acreditava que evitávamos a existência de uma Terceira Guerra Mundial, e realmente pensava que era esse o nosso trabalho,” disse Fellwock. “Como sabíamos tudo o que estava acontecendo, e enquanto soubéssemos tudo o que estava acontecendo, existia a possibilidade de evitar qualquer coisa.”

A fé de Fellwock na sua missão sofreu um abalo em menos de um ano. Em 1967, houve a Guerra dos Seis Dias entre Israel e diversos países árabes. As forças israelenses atacaram um navio espião da NSA, o U.S.S. Liberty, enquanto ele estava em uma missão de vigilância na costa do Egito. Trinta e cinco membros da tripulação foram mortos, e 171 ficaram feridos.

Israel alegou que a névoa da guerra fez com que o navio fosse identificado como egípcio. Mas James Bamford, em seu livro Body of Secrets, defendeu que Israel atacou sabendo que o navio era da NSA para encobrir o massacre de centenas de egípcios em uma cidade próxima. Qualquer que fosse o caso, o incidente causou revolta na NSA, especialmente após a administração de Lyndon Johnson, então presidente dos Estados Unidos, cobrir o caso para não constranger o aliado mais forte dos EUA no Oriente Médio.

Para Fellwock, as intrigas envolvendo o caso Liberty abriram nossas possibilidades sombrias. “Me fez começar a pensar o que diabos estava acontecendo no mundo,” ele disse. “Não era assim que as coisas deveriam ser.”

Após observar o caos de uma guerra em que os Estados Unidos sequer participaram, Fellwock começou a pensar sobre a guerra no Vietnã. Em 1968, sua curiosidade superou sua aversão ao combate e ele se voluntariou para o Vietnã. “Eu tinha que descobrir por que as coisas estavam indo por esse caminho”, ele explicou.

Se houve um bom momento para estar no Vietnã, o começo de 1968 definitivamente não era um desses. Algumas semanas após a chegada de Fellwock, os Viet Congs lançaram a Ofensiva Tet e acabaram com qualquer esperança de uma rápida vitória americana. Enquanto os colegas de Fellwock na NSA eram inteligentes e amigáveis, agora ele se encontrava em homens endurecidos por batalhas que apenas tentavam se manter vivos em meio a bombardeios e tiroteios constantes. Ele estava com medo dos ataques dos Viet Congs e ainda mais assustado com a Marinha dos Estados Unidos, já que muitos deles desprezavam as Forças Aéreas e não hesitariam em atacar um aviador como ele quando estivessem bêbados.

“Todo mundo suspeitava de todo mundo”, ele explicou. “Todo mundo odiava todo mundo.”

Sua principal tarefa era voar partindo da base aérea de Pleiku, no Vietnã Central, a bordo de um Air Force C-47, um avião de suporte repleto de antenas. Essas eram missões que usavam tecnologia militar de ponta e computadores para localizar radiotransmissores vietcongues em tempo real. Como analista, Fellwock se sentava à frente de um painel no avião e usava os sinais interceptados para descobrir as coordenadas das tropas vietcongues.

Um dos principais alvos de Fellwock no Vietnã era a particularmente ameaçadora Brigada do Exército do Vietnã do Norte. Usando os dados captados pelo equipamento da NSA, ele ajudou a preparar um mapa dos padrões de viagem da brigada. Esse material serviu como guia de um enorme bombardeio feito por um B-52: um ataque a cada sessenta minutos durante 36 horas, lançando trinta toneladas de explosivos de cada vez, de acordo com Fellwock.

Algumas semanas depois, ele voou pela área e inspecionou em primeira mão a devastação que ajudara a causar. “Eu nunca tinha visto tantos corpos,” ele disse. “A coisa realmente horrenda a respeito dos cadáveres é que eles não foram mortos por estilhaços. O que os matou foram concussões. Eles sangravam por cada poro, então os corpos estavam negros por causa do sangue seco e obviamente o cheiro era terrível. Era uma visão horrorosa e eu sabia que havia participado disso. Foi aí que o sentimento de culpa começou.”

A culpa e o estresse fizeram com que Fellwock percebesse que tinha que escapar do Vietnã. Ele conseguiu sair de lá antes do fim programado para sua estada e em meados de 1969, treze meses depois de chegar, retornou aos Estados Unidos, foi transferido para a reserva da Força Aérea, e voltou à faculdade, esperando esquecer a guerra.

Ele chegou a estudar por um semestre. Então, em 4 de maio de 1970, a Guarda Nacional abriu fogo contra estudantes desarmados que faziam protestos anti-guerra na Universidade de Kent, matando quatro deles e ferindo outros nove. Esse acontecimento tornou impossível para Fellwock esquecer o que havia acontecido e voltar a ter uma vida normal.

“Essa foi uma das gotas d’água porque era muito claro que as tropas dos Estados Unidos não deveriam estar matando estudantes.” Fellwock havia deixado um cenário de guerra apenas para encontrar outro. Então, mais uma vez, ele se colocaria na linha de frente.

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As canções dos Beatles tocavam na jukebox da lanchonete e John Kerry, que havia sido líder dos Veteranos do Vietnã contra a Guerra estava na televisão ameaçando a Síria com mísseis. “Ele estava sempre tentando enfraquecer o movimento,” disse Fellwock, recordando os dias anti-guerra de Kerry, “e fazendo com que o foco ficasse sobre ele mesmo. Na minha opinião, ele era um filho da puta e eu acredito que qualquer outro veterano do Vietnã diria a mesma coisa.”

Hoje, Fellwock não acompanha as notícias sobre política. A última vez em que ele votou para presidente foi em 1972 e seu voto foi para George McGovern.

“Basicamente, eu tenho uma vida calma e comum agora,” disse ele. “Eu sou aposentado e meu hobby e negócio é comprar e vender antiguidades. Isso é tudo o que faço.”

Quando eu liguei para ele pela primeira vez, Fellwock sabia vagamente sobre os vazamentos de informação de Snowden. Mas assim que leu mais sobre o assunto, ele percebeu que as coisas tinham mudado muito pouco de 1976 para cá.

“Eu acho que Snowden é um patriota. E eu o admiro e também admiro alguns dos outros informantes porque eles têm coragem de trazer informações à tona numa época em que não existe muito apoio político.”

De qualquer forma, como uma pessoa que permaneceu nos Estados Unidos após fazer denúncias, Fellwock acredita que Snowden cometeu um erro de cálculo ao fugir do país. “Eu acho que ele deveria ter ficado aqui e encarado as consequências. Entendo os temores dele, mas eu realmente acho que foi um erro da parte dele.”

Agora que Fellwock estava se mostrando novamente, embora ainda houvesse hesitação, ele queria fazer isso do jeito certo. Ele olhou para um pedacinho de papel no qual havia rascunhado os pontos-chaves sobre a NSA que queria ter mostrado através de seu artigo na Ramparts.

“Naquela época, a maior parte das pessoas pensava que a NSA e a CIA trabalhavam para o governo norte-americano,” ele disse. “Mas isso não era verdade. Essas agências são entidades em si mesmas, parte de uma entidade global que é composta pelos Cinco Olhos.” Os Cinco Olhos é o nome pelo qual é conhecido o acordo de partilha de inteligência entre Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. “Essa comunidade operava fora da Constituição e, pelo que tenho visto, continua fazendo isso.”

Agora Fellwock estava tomando cuidado para falar desses pontos porque acredita que eles não tenham sido expostos de forma clara em seu artigo original na Ramparts. Ele é reticente sobre o texto que foi publicado através de sua denúncia: alega que nunca quis que a exposição da NSA fosse uma espécie de biografia em primeira pessoa. Sua intenção era publicar uma crítica direta à NSA sob sua própria assinatura, expondo seus pontos como um editorialista.

Fellwock diz que ele pensava que Collier e Horowitz estavam reunindo fatos para um artigo quando eles o colocaram no hotel San Francisco nas semanas depois do encontro na IHOP e conseguiram horas de entrevistas gravadas. Mas em vez de uma reportagem, o que apareceu na Ramparts foi todo o material das entrevistas. É disso que Fellwock está falando quando diz que não se tratou exatamente de uma entrevista.

“Eles publicaram uma entrevista desconexa que dizia algumas coisas que eram verdade e outras que não eram. No meu entendimento, eles simplesmente fizeram com que tudo parecesse uma peça de fofoca sensacionalista.”

Apartes casuais que deveriam ficar somente entre ele e os editores da Ramparts acabaram impressas em tinta indelével. A passagem mais fascinante da entrevista de Winslow Peck para a Ramparts foi a história de como a desastrada missão final de um cosmonauta russo foi interceptada pelo posto de escuta da NSA na Turquia. A nave apresentou problemas e Peck explicou que os analistas haviam escutado enquanto o cosmonauta despencava de volta para a Terra e era incinerado na reentrada. Eles teriam gravado seus gritos suplicantes para aqueles que acompanhavam a missão da Terra: “Eu não quero morrer, vocês têm que fazer alguma coisa.”

Essa história se tornou parte do folclore sobre a exploração espacial. Recentemente, ela foi repetida pelo autores do livro Starman, uma biografia de Yuri Gagarin. Eles identificaram o pobre cosmonauta como Vladimir Komarov e escreveram que “os postos de rádio da Turquia interceptaram seus gritos de raiva enquanto ele mergulhava para a morte, amaldiçoando as pessoas que o haviam colocado numa nave espacial defeituosa”. Isso é um mito. Komarov realmente morreu carbonizado ao reentrar na atmosfera e a NSA interceptou suas comunicações, mas análises feitas mais tarde desmentiram os detalhes mais dramáticos do relato de Fellwock, incluindo a parte dos “gritos de raiva”.

Não era surpresa que essa história fosse pouco acurada, considerando sua origem: Fellwock me disse que a história que ele contou à Ramparts sobre o cosmonauta morto era um pouco de fofoca de trabalho que circulou em sua época de jovem analista de informações na Turquia. “Todo mundo na estação comentava que isso havia acontecido e eu basicamente passei a história para a frente”.

Em 1972, quando Fellwock viu a versão prévia do artigo que sairia Ramparts com uma transcrição fiel de suas palavras, ele ficou chocado, mas guardou suas preocupações para si mesmo. Hoje ele já não é tão otimista sobre o resultado. Parte dessa mudança de opinião vem do fato de que pouco depois da publicação do artigo da Ramparts, tanto Peter Collier quando David Horowitz migraram para a direita e se tornaram conservadores proeminentes. Collier fundou a editora conservadora Encounter Books; Horowitz escreveu um livro de memórias, Radical Son, renunciando a todas as suas afiliações com a política dos anos 1960 e agora viaja pelos EUA como um comentarista apocalíptico da direita, alertando as pessoas de que as faculdades estão sendo tomadas por “Islamofascistas”.

Fellwock me disse que acredita que Collier e Horowitz nunca foram realmente de esquerda e que o mau uso de suas palavras foi proposital, no intuito de causar o caos e numa busca demente para ferir os Estados Unidos.

“Havia um elemento no nosso movimento que era fundamentalmente antiamericano e queria criar o caos nos Estados Unidos e realmente perturbar e destruir a sociedade americana,” ele diz.

Quando eu conversei com Collier, ele discutiu a alegação de Fellwock de que ele e Horowitz o haviam enganado sobre a entrevista. Disse que Fellwock falou para o gravador durante horas, sabendo que estava sendo entrevistado para um artigo: “Eu não consigo imaginar por que ele pensava que suas palavras não estariam no artigo,” disse Collier.

No mínimo houve um mal-entendido entre a fonte e os jornalistas. Fellwock abordou os editores da Ramparts como colegas que poderiam ajudá-lo a refinar sua própria história; eles o viam como uma fonte da qual deveriam extrair tudo o que fosse possível.

Hoje em dia, Collier faz eco ao desdém de Fellwock pelo artigo, mas tem seus próprios motivos. Suas dúvidas acerca do artigo, ele diz, começaram antes mesmo que ele fosse publicado e impulsionaram seus primeiros passos em direção ao conservadorismo de direita. Cerca de um mês antes da história sobre a NSA sair, conta Collier, seu pai, um conservador que já havia discutido acaloradamente com o filho sobre o posicionamento radical deste, morreu de câncer.

“Perto do fim, ele estava morrendo de câncer e eu estava me preparando para lançar aquele artigo. E ele amava este país. Depois que o artigo foi publicado, quando eu ainda estava de luto por meu pai, um pensamento me veio à mente: eu disse ‘ó, Deus, eu traí o país do meu pai’. Esse foi o meu primeiro movimento para fora da esquerda, para entender quais eram as minhas intenções: ferir esse país, fazer com que ele se tornasse vulnerável, torná-lo menos forte.”

Pouco depois da divulgação da história de Snowden, no início de 2013, o Wikileaks tuitou um link para a entrevista da Ramparts. “O primeiro grande informante sobre a NSA, Perry Fellwock, estava tão à frente de seu tempo que ninguém acreditou nele,” eles escreveram. Quarenta anos depois, nem Fellwock nem Collier acreditam totalmente na entrevista que se tornou um marco.

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Em 18 de julho de 1972, dois dias depois da história aparecer na primeira página do New York Times, Fellwock compareceu a uma coletiva de imprensa no apertado escritório da Ramparts em Berkeley. Apesar de suas reservas, Fellwock decidiu aproveitar ao máximo a atenção que o artigo havia trazido. Ele poderia colocar as coisas em seus lugares depois.

O escritório estava cheio de jornalistas. Usando óculos imensos, os cabelos longos varridos para longe de seu rosto, Fellwock leu uma declaração previamente preparada ladeado por Collier e Horowitz. Um pôster de Che Guevara estava pendurado na parede.

“Nós precisamos tomar medidas para assegurar que não tenhamos mais guerras como a do Vietnã,” disse Fellwock para multidão reunida. “Eu acredito que dei um dos passos para isso. E não fiz isso por dinheiro ou por glória, mas para trazer ao povo americano o conhecimento daquilo que eles precisam saber.”

Não haveria nenhuma acusação oficial por sua quebra de sigilo. Antes da publicação, a Ramparts havia consultado o advogado de Daniel Ellsberg, o homem que vazara os Documentos do Pentágono. O advogado disse a eles que o governo não se arriscaria a expor ainda mais segredos ao público indo atrás da revista por causa do artigo. Ele estava certo.

Mas o pessoal da Ramparts notou que havia um repórter desconhecido na coletiva que parecia um pouco curioso demais para saber se Fellwock estava de posse de algum documento secreto. Esse foi o primeiro dos muitos encontros que Fellwock teria com pessoas que ele suspeita que fossem agentes da CIA.

Fellwock nem teve tempo para respirar depois do frenesi da mídia. A Convenção do Partido Republicano havia sido transferida de San Diego para Miami depois de um escândalo por conta da seleção de local e ele a seguiu até lá. Naquele mês de agosto, entre protestos banhados de gás lacrimogêneo com os Veteranos do Vietnã contra a Guerra, Fellwock discutiu o futuro do movimento com Rennie Davis.

Davis havia ficado impressionado com o artigo da Ramparts e sugeriu que Fellwock se dedicasse a expor abusos relacionados à espionagem. Os Documentos do Pentágono haviam revelado os perigos do excesso de sigilo, assim como havia acontecido com a revelação de J. Edgar Hoover, o chefe do FBI, sobre o Programa COINTELPRO que tinha como alvo os ativistas radicais dos Estados Unidos. Estava claro, principalmente para os liberais, que as operações secretas haviam saído do controle tanto no país como em solo estrangeiro.

Então, na primavera de 1972, Fellwock e Tim Butz, um oficial aposentado da inteligência da Força Aérea e ativista anti-guerra, fundaram um novo grupo com o estranho nome de Comitê de Ação/Pesquisa na Comunidade da Inteligência, ou CARIC. Seu objetivo era notavelmente semelhante àquilo que o Wikileaks iria propor décadas mais tarde: vigiar os vigilantes através de uma agência central de informação sobre espionagem e operações secretas.

Butz e Fellwock chegaram aos informantes e veteranos do Vietnã e tinham foco em outros oficiais de inteligência que haviam se desiludido e queriam usar as habilidades que haviam aprendido em serviço contra seus ex-empregadores. O principal esforço do CARIC era uma revista trimestral, a Counter-Spy, que servia como canal para mostrar as pesquisas do grupo e gerar polêmica.

O CARIC também antecipou a abordagem intensiva do Wikileaks sobre a revelação de informações, tratando o jornalismo como uma questão de análise de dados. Julian Assange levou essa postura até um ideal de “jornalismo científico”, no sentido de sustentar denúncias com revelações de fontes primárias e documentos obtidos. O CARIC desenvolveu a “Nova Inteligência”, que tinha como objetivo ser um espelho do bem apontado para as artes das trevas da CIA e do FBI.

“A Nova Inteligência”, explicava uma edição da Counter-Spy, “é o produto resultante de uma análise científica da coleta, avaliação, análise, integração e interpretação de toda a informação a respeito de experiências em tecnofascismo e, eventualmente, das condições que o produzem.”

Na prática, isso significava documentar exaustivamente e expor ações secretas onde quer que elas ocorressem. Um dos primeiros triunfos do CARIC foi revelar ao Washington Post que o Comitê pela Reeleição do Presidente Nixon havia contratado alunos da Universidade George Washington para espionar os protestos anti-guerra. Outro foco inicial foi a Operação Fênix, da CIA: um programa secreto de assassinato no Vietnã.

“Somente um exame completo e sem disfarces deste mundo oculto poderia acabar com o medo e guiar os esforços públicos para impedir a espionagem ilegal e não justificada” diz um dos primeiros folhetos da CARIC. “O sigilo com o qual o governo se cerca precisa acabar.”

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Como Fellwock e Butz haviam organizado seus esforços em Washington, uma ideia similar foi tomando forma em Nova York, graças a Norman Mailer. Em fevereiro de 1973, o ruidoso romancista-jornalista-ativista deu uma grande festa no hotel Four Seasons, para comemorar seu aniversário de cinquenta anos e também para anunciar e angariar fundos para uma nova empreitada: algo que ele chamou de o Quinto Estado.

Mailer ficou completamente bêbado, mas conseguiu mostrar sua ideia de Quinto Estado como “um FBI e uma CIA formados pelo povo para investigar a CIA e o FBI oficiais.”

“Se nós tivermos uma polícia secreta democrática para manter o controle sobre a polícia secreta de Washington, nós poderemos ver o quanto a paranoia se justifica”, disse Mailer.

Norman Mailer durante o o evento para angariar fundos para o Quinto Estado no hotal Four Seasons de Nova York, em fevereiro de 1973.

Norman Mailer durante o o evento para angariar fundos para o Quinto Estado no hotel Four Seasons de Nova York, em fevereiro de 1973.

A imprensa caiu em cima da performance auto-engrandecedora e em voz pastosa de Mailer, mas as semanas seguintes trouxeram mais revelações sobre o Watergate, mostrando o quanto Richard Nixon, com sua “lista de inimigos”, havia usado a máquina do Estado para acabar com seus adversários políticos.

Em julho, o articulista Nat Hentoff, do Village Voice, fez a conexão entre o CARIC e o Quinto Estado numa coluna. Nessa altura, Fellwock e Butz haviam se juntado a um terceiro parceiro, Barton Osborne, outro ex-oficial da inteligência militar desiludido. Hentoff pediu a Mailer para ajudá-los: “Norman, esses três ex-agentes da inteligência são confiáveis. Eu quero dizer realmente confiáveis.”

Mailer convidou Butz e Fellwock para visitar sua imensa casa no Brooklin. Fellwock já estava acostumado a circular entre ativistas e figuras políticas de alto escalão, mas ficou profundamente impressionado com a inteligência e a visão de Mailer. “Norman podia compreender níveis de raciocínio que as pessoas normais não conseguiam ver,” disse Fellwock.

A própria visão de mundo de Fellwock naquela época era bastante simplista: o capitalismo era o maior dos males e a única explicação para os Estados Unidos permanecerem fazendo coisas más. Mas Mailer conseguia ver um traço de tormento psicológico nos crimes da nação.

“O que Mailer me disse foi que a CIA era basicamente uma organização de brancos cristãos protestantes,” disse Fellwock, “E brancos cristãos protestantes precisam encontrar um demônio que justifique aquilo que eles fazem. Seus valores cristãos dizem que eles devem ajudar os pobres e os comunistas eram pobres. Mas eles não estavam ajudando os pobres. Eles estavam ajudando aqueles que eram muito ricos. E isso criou um conflito dentro da mente dos brancos cristãos protestantes que só poderia ser resolvido se eles caçassem um demônio e o tornassem uma coisa exagerada. Então eles exageraram sobre a ameaça comunista assim como eles estão exagerando sobre a ameaça do Islã hoje em dia.”

A reunião fez com que, em 1974, o CARIC se juntasse ao Comitê de Organização para um Quinto Estado. O OC-5, como o nome era abreviado, era o braço de captação de recursos, enquanto Butz e Fellwock focavam na execução da Counter-Spy. Mailer não apenas emprestou seu nome para que os esforços de Fellwock e Butz fossem reconhecidos; o fato de ele ser uma celebridade foi um fator inestimável para a captação de recursos financeiros e para a publicidade da causa.

Um encontro do Comitê de Organização para um Quinto Estado ofereceu um retrato divertido da aliança entre Mailer e o CARIC na descrição de uma festa para angariar fundos em Washington:

Norman Mailer fez um discurso desconexo que durou meia hora; os funcionários da OC-5, Timothy Charles Butz, Perry Fellwock (também conhecido como Winslow Peck), K. Barton Osborn e Douglas Porter falaram de suas atividades de contra-inteligência e os liberais um tanto estupefatos da audiência derramaram duas garrafas de vinho português em um vaso de plantas em apoio à liberação africana.

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A Counter-Spy começou a se tornar uma publicação muito séria. Seus pequenos escritórios perto de Dupont Circle estavam cheios de funcionários e jornalistas que vinham para vasculhar os arquivos repletos de documentos sobre operações secretas. Às vezes, um funcionário da Counter-Spy plantava alguma história no ouvido do visitante. O pessoal do Quinto Estado organizou uma turnê pelas universidades e pontos de encontros dos estudantes e enviou representantes a programas de rádio para debater com ex-membros da comunidade da inteligência; um dos objetivos era alimentar as bibliotecas das universidades de todo o país com arquivos da inteligência para tornar os estudantes mais resistentes à pressão do governo: um compartilhamento de material de pessoa para pessoa antes da internet.

Fellwock, que todos conheciam como Winslow Peck, costumava estar muito ocupado pesquisando sobre a infiltração da CIA no movimento sindical sul-americano ou sobre qualquer outra conspiração arcana e não havia muito tempo para socializar. Ele tinha o dom de adivinhar o sentido oculto daquelas montanhas de dados.

“Ele tinha algo de cientista louco”, disse Harvey Kahn, que trabalhou para a Counter-Spy de 1974 a 1976 e hoje é produtor de filmes em Vancouver, no Canadá. Kahn se lembra de que os funcionários pediam conselhos de Fellwock, como se ele fosse um oráculo, para suas próprias pesquisas. “Você sentia que se Winslow dissesse que aquilo estava acontecendo, então aquilo estaria acontecendo. Ele tinha a habilidade assombrosa de absorver informações e se lembrar delas depois.”

A capacidade de Fellwock de ficar completamente absorvido pelo trabalho poderia cruzar a linha da obsessão doentia. Ele trabalhou de forma tão febril que sua saúde começou a se debilitar e Kahn disse: “Ele trabalhava o tempo inteiro e sempre parecia estar resfriado. Ele não comia direito. Você o via e pensava que aquela não era uma pessoa que teria uma vida longa e feliz”.

“Ninguém que estivesse no movimento naquela época gostava do que estava acontecendo” disse Fellwock. “Não era um bom momento para ninguém. Nós não éramos aventureiros ou caçadores de emoção. Não havia alegria. Havia aquela sensação de ‘vamos sobreviver ao dia seguinte? Há algo que possamos fazer para parar esses bastardos?'”.

Mas ali no restaurante, recordando esses dias distantes, Fellwock fez uma pausa e sorriu. “Isso é divertido,” ele disse. Ainda assim, ele permanecia sombrio. Toda vez que eu tentava levar a conversa para o lado da vida pessoal, o que eu encontrava era um silêncio desagradável. Ele era casado? “Eu não quero entrar nesse assunto.” Ele tinha filhos? “Prefiro não falar sobre isso.” Fellwock insistiu que eu não mencionasse o nome do negócio de antiguidades do qual ele é sócio para que seus colegas não fossem “arrastados para dentro disso”.

“O ponto é que minha vida está num mundo diferente agora e eu não quero que ela seja destruída. Eu tenho poucos anos pela frente e quero aproveitá-los. Quero que minha família fique em segurança e aproveite a vida.”

Só que passar boa parte do tempo pensando sobre as maquinações de espionagem do Estado não era exatamente o que poderia te conduzir a um bom estado de espírito. A equipe da Counter-Spy trabalhava sob uma névoa de desconfiança. “Você estava lá sentado com o pessoal mas sabia que todos desconfiavam uns dos outros,” disse Harvey Kahn, “Eles poderiam estar sendo controlados por outras pessoas? Ou sendo manipulados inconscientemente?”

Não se tratava de uma fantasia: os papéis do COINTELPRO revelaram que as agências de segurança mantinham um controle rígido sobre as publicações radicais. No final dos anos 1960, a CIA enviou um time de doze homens para tentar minar a Ramparts, de acordo com o livro Secrets: The CIA’s War at Home de Angus Mackenzie.

“Foi intenso” disse Fellwock. “Era bem claro que o que estávamos fazendo deixou as agências de segurança loucas. Todas estavam em cima da gente. Eu simplesmente aceitei que a pessoa na baia ao lado da minha poderia ser alguém da segurança me seguindo.”

“Parece que isso é algo que você não conseguiu superar” eu disse.

“Sim, foi por isso que eu fiquei paranoico quando você me ligou. Você evocou uma série de velhas memórias das quais eu não me lembrava havia 30 anos.” Ele suspirou. “Mas se eu pude viver com essa sensação na época, eu acho que poderia viver com ela agora.”

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No final de 1975, a Counter-Spy pressionou o governo como nunca havia feito antes e o governo pressionou de volta. Frustrada com a falta de uma reforma no setor da vigilância oficial, mesmo depois da renúncia de Nixon em 1974, a Counter-Spy decidiu que a edição que sairia no inverno de 1975 daria um passo à frente: a revista citaria nomes e arruinaria o disfarce de agentes com o propósito explícito de causar danos à capacidade das agências de espionagem de trabalhar no exterior.

A ideia, Fellwock disse, foi inspirada por Philip Agee, um agente da CIA aposentado que um ano antes havia publicado seu livro de memórias, Inside the Company, uma crítica mordaz à agência. No livro, Agee havia revelado a identidade de 250 oficiais da CIA.

“Agee teve a ideia de aumentar o número de nomes revelados através de nós” disse Fellwock. “Isso era realmente fácil de fazer, então nós fizemos.”

Em novembro de 1974, um artigo do Washigton Monthly escrito por John Marks e chamado “Como identificar um espião” mostrou como a revelação tinha sido feita. Tudo o que você precisava fazer era vasculhar listas de funcionários de embaixadas estrangeiras e depois os cruzar os nomes com os do Departamento Estatal de Registros Biográficos para encontrar os sinais dos “atividades suspeitas”: longos períodos de ócio na carreira ou cargos com nomes ininteligíveis.

A equipe da Counter-Spy usou a técnica para criar uma lista de 225 chefes de seção da CIA que estavam disfarçados de diplomatas em vários lugares do mundo. A lista foi publicada junto com um editorial escrito por Agee que declarava: “Eu acredito que os mais efetivos e importantes esforços sistemáticos para combater a CIA que podem ser feitos agora são a identificação, exposição e neutralização dos agentes que estão trabalhando no exterior.”

Em 23 de dezembro de 1975, alguns dias após a publicação da edição de inverno, o telefone tocou no escritório da Counter-Spy. Harvey Kahn, trabalhando sozinho durante o recesso de Natal, atendeu. Era um repórter do New York Times. Na lista dos chefes de seção feita pela Counter-Spy, perguntou o repórter, havia o nome de Richard Welch?

Kahn encontrou o nome na lista, como chefe de seção da CIA em Lima, no Peru. Depois se descobriria que o posto estava incorreto, mas essa imprecisão não mudava os eventos que estavam prestes a acontecer. O posto real de Welch era em Atenas e o repórter do Times contou que ele acabara de ser assassinado lá.

Um grupo marxista grego chamado Organização Revolucionária 17 de Novembro assumiu a autoria do assassinato, mas a comunidade das agências secretas do governo acusou a Counter-Spy de ser cúmplice do assassinato. Oficiais de inteligência atuantes e aposentados se apressaram em colocar a culpa do assassinato na pequena revista. Até mesmo o presidente Gerald Ford falou através de um porta-voz que a Counter-Spy era “ao menos parcialmente responsável pela morte do agente.”

“Essa foi a coisa mais incrível,” disse Harvey Kahn. “Imagine seu pequeno escritório cheio de repórteres de todos os lugares com câmeras e tudo. Eram repórteres que cobriam as grandes celebridades.”

Sob pressão, a Counter-Spy reafirmou sua missão. O Quinto Estado emitiu um comunicado declarando que “ninguém deveria ser culpado pela morte do senhor Welch, uma vez que era a CIA que o tinha enviado para a Grécia para espionar e intervir nos assuntos do povo grego.”

Mais uma notável campanha de difamação patrocinada pela CIA estava em andamento. Depois que a história de Welch foi divulgada, o diretor de relações públicas da agência começou a ligar para jornalistas insistindo que a Counter-Spy era culpada.

Não há evidências de que os assassinos de Welch tenham descoberto a identidade dele através da revista ou mesmo de que eles a tenham lido. Eles não precisariam fazer isso. A CIA deixou de mencionar que um jornal de Atenas já havia desmascarado Welch semanas antes de a Counter-Spy publicar seu nome. Além disso, depois de ser transferido para Atenas, Welch havia se mudado para a casa do chefe de seção anterior, apesar das advertências de seus superiores de que o lugar já era amplamente conhecido por abrigar um funcionário da CIA.

Mas a CIA estava sob pressão intensa em meio a uma torrente de revelações embaraçosas feitas pelo Comitê Church, convocado em 1975 para investigar as infrações da lei cometidas pela agência. A Counter-Spy e o OC-5 eram a facção radical de “uma ampla ansiedade sobre como a inteligência se encaixava dentro do governo dos Estados Unidos”, disse Steven Aftergood, um especialista em segredos governamentais da Federação de Cientistas Americanos.

A CIA viu o assassinato de Welch como uma maneira de trazer o pêndulo da opinião pública novamente para o seu lado. Morton Halperin, que era então um pesquisador do Centro de Estudos de Segurança Nacionais, escreveu, três anos após o assassinato:

O caso do assassinato de Welch é o único em meu conhecimento no qual há evidência de manipulação da imprensa norte-americana no intuito de influenciar eventos nos Estados Unidos. A CIA explorou com o êxito o homicídio de um de seus chefes de seção e o utilizou para trazer a agência de volta ao controle constitucional.

A pressão fez com que a Counter-Spy perdesse alguns de seus aliados esquerdistas mais próximos, incluindo Norman Mailer, que ficou horrorizado com o fato de seu nome estar ligado a um caso de assassinato, de acordo com sua biógrafa Mary Dearborn.

“Nós tivemos o presidente dos Estados Unidos mentindo sobre nós,” conta Fellwock. A Counter-Spy recebeu ameaças de morte vindas de imigrantes cubanos de direita e de agentes de inteligência aposentados. Tim Butz começou a andar armado.

“Os dias depois da explosão do caso Welch na imprensa foram difíceis,” Doug Porter, um homem que foi funcionário da Counter-Spy por muito tempo, me disse por e-mail. “Nós trabalhávamos sabendo que cada ligação telefônica poderia estar grampeada e houve várias situações em que nós vimos carros sem placas observando nossas atividades. Até mesmo coisas como a compra de mantimentos se tornaram causa de paranoia.”

Mesmo antes do caso Welch, os esquerdistas que financiavam a Counter-Spy foram se dispersando enquanto se dividiam em facções nos anos pós-Nixon. O assassinato de Welch “deu aos liberais todas as desculpas que eles precisavam para deixar o movimento” diz Fellwock. “Aquele foi o último prego no nosso caixão.”

Alguns meses depois de Welch ser enterrado no cemitério de Arlington com honras oficiais, a Counter-Spy acabou.

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O Washington Post assinalou o fim da Counter-Spy com um breve artigo em 8 de julho de 1976 que começava assim: “Divergências políticas e pessoais dividiram a equipe da Counter-Spy, uma revista que a Agência Central de Inteligência culpou parcialmente pelo assassinato de um oficial em Atenas no mês de dezembro.” O Post sugeriu que houve um drama nos bastidores, escrevendo que a dissolução do grupo veio em meio a acusações de que os membros eram “agentes da polícia, anticomunistas, sexistas e liberais.”

Um dos associados à Counter-Spy acusado de ser agente infiltrado da polícia foi Doug Porter. No começo dos anos 1970, Porter foi editor de um jornal marginal de São Francisco. Ele conheceu Butz e Fellwock durante uma viagem para a Costa Leste quando estava trabalhando numa história sobre um grupo paramilitar reacionário do sul da Califórnia. Ele se juntou à Counter-Spy em 1973 e se mudou, junto com Fellwock e outros membros do Quinto Estado para uma casa em Maryland.

Hoje, Porter comanda o San Diego Free Press, um site progressista de notícias. Ele perdeu as cordas vocais por conta de um câncer, então não pode falar ao telefone. Mas a amargura pela forma como as coisas terminaram na Counter-Spy pode ser sentida nas palavras de um e-mail que ele me escreveu:

“Eu segui em frente, tive várias experiências interessantes mas, até hoje, a única coisa que eu não posso me forçar a fazer é perdoar Peck/Fellwock” ele escreveu.

As coisas desmoronaram durante um encontro difícil numa reunião feita logo depois do caso Welch, escreveu Porter. O grupo se juntou para um encontro num prédio próximo à redação para o que Porter pensou que seria uma discussão sobre as diretrizes da revista e do grupo. Mas tudo se tornou abruptamente uma inquisição de Porter, com Fellwock na liderança.

“Era como uma cena mal-escrita de um livro ruim”, conta Porter. “Eu fui acusado de ser tanto um trotskista quanto um agente da polícia; uma espécie de espião enviado para perturbar e arruinar o trabalho que Fellwock havia feito durante toda a vida. Nada do que eu disse foi capaz de dissuadi-lo.”

“Eu deixei a sala chorando e eu não sou o tipo de cara que chora. Não demorou muito para que as acusações se espalhassem e todo mundo que eu conhecia em Washington parou de falar comigo. A mulher com quem eu estava saindo me disse que não queria mais me encontrar. Gastei milhares de dólares em terapia desde então. Ser uma pessoa a ser evitada não é uma coisa boba. E hoje eu estou bem. Mas nunca vou superar o que Winslow fez. Ele é um escroto.”

Fellwock pareceu preocupado quando contei a ele sobre a raiva de Porter. “Eu lamento ouvir isso”, disse ele. Fellwock diz que Porter foi expulso por causa da preocupação de um grupo dos associados da Counter-Spy de Chicago, que ficou convencido de que Porter era uma espécie de agente provocador por causa das declarações polêmicas que ele fez à imprensa. A pressão por conta do assassinato de Welch também foi um fator.

“Eu sequer me lembro, mas eu acho que tinha algo a ver com o recurso à violência”, diz Fellwock. “Talvez tenha sido apenas uma declaração estúpida, mas havia vários conflitos acontecendo ao mesmo tempo. No fim eu acabei ficando do lado do grupo de Chicago. Mas eu não sei, certo?” (Porter nega que alguma vez ele tenha defendido o uso de violência.)

O olhar de Fellwock desceu para o prato. Quando ele levantou os olhos, sua expressão  era melancólica.

“Tudo o que eu tenho a dizer sobre todos os meu colegas da época é que não importa que disputas pessoais ou ideológicas eu tenha tido com eles,  até o dia da minha morte eu vou acreditar que eles eram as pessoas mais corajosas que eu conheci.” Agora Fellwock está chorando. Ele coloca as mãos no rosto. “Me desculpe”, ele diz e se levanta para ir ao banheiro.

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É quase impossível imaginar Edward Snowden sendo um calmo vendedor de antiguidades aposentado em Long Island daqui a quarenta anos. Snowden provavelmente nunca voltará aos Estados Unidos, já que é acusado de espionagem, a menos que ele seja preso.

Sejam quais forem as rachaduras do sistema estatal de vigilância e sigilo abertas pela Counter-Spy e pelo Comitê Church, elas foram depois seladas com titânio e dobermans foram colocados de cada lado para protegê-las. O legado mais concreto da Counter-Spy é provavelmente a Lei da Inteligência de Proteção de Identidades. Aprovada em 1982 como uma resposta direta ao assassinato de Welch, a Lei tornou crime a revelação das identidades de agentes secretos que trabalham no exterior no intento de prejudicar as atividades da inteligência dos Estados Unidos. Hoje, mesmo os funcionários governamentais que desconfiam do sistema de espionagem concordam que Snowden é um criminoso que deve ser levado à justiça. É impensável que qualquer assessor parlamentar elogie Snowden como um deles elogiou o OC-5 em 1976 num artigo do Washington Post: “Eles são uma organização tremendamente boa. As informações que eles passam têm sido acuradas sem exceção.”

Mas a história de Fellwock também reflete uma mudança nos cruzados anti-vigilância de hoje. As redes de esquerda foram substituídas pelas redes sociais de ciber-libertários: hackers, empreendedores do Vale do Silício, cruzados da informação livre. Houve muita ação no Twitter e até mesmo alguns protestos anti-vigilância atraindo poucas pessoas em Washington, mas de todo aquele sentimento de raiva sobrava a impressão de que a extensão real da dissidência sobre a vigilância estatal consistia simplesmente em espalhar notícias sobre as revelações de Snowden.

“Um mundo inteiro de pessoas ativamente envolvidas e politicamente conectadas” descreveu de modo embevecido o escritor de ficção científica Bruce Sterling no começo deste ano. Mas “entre essa barulhenta horda de ávidos ativistas online de várias nações, o que cada um deles pode realmente fazer por Snowden? Nada.”

O maior aliado de Snowden em sua saga foi o Wikileaks. Mas agora a organização de informantes está essencialmente aleijada. Sua cabeça, Julian Assange, foi reduzido a um avatar radiante em várias telas que tuíta sobre seu desdém para com os filmes feitos sobre ele – o mais recente, coincidentemente, é O Quinto Estado.

Norman Mailer, o santo patrono do OC-5, foi a absurda encarnação viva da autopromoção, mas ele defendia algo maior: uma consciência civil radical, na qual a informação era só o início da criação de novas instituições construídas com base no sacrifício compartilhado e na devoção à democracia e à transparência.

Hoje, Glenn Greenwald, o colunista do Guardian que divulgou a história de Snowden, está lançando uma nova empresa de mídia aproveitando a onda das revelações de Snowden. Por trás dele está o bilionário fundador do eBay Pierre Omidyar, que acredita que a mudança social é melhor quando é trazida por novas configurações do capitalismo. A Counter-Spy deveria existir hoje já que era uma marca inspiradora o suficiente.

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Tínhamos um cheque e um táxi. Estávamos à procura de uma loja de antiguidades, assim Fellwock poderia dar um vislumbre de sua vida atual. Havia uma em Midtown que ele estava querendo ver.

Por alguns anos depois que a Counter-Spy se desfez, Fellwock se perguntava se deveria continuar seu ativismo. “Alguns dias eu acordava ativista político e outros dias, não.” Ele tentou equilibrar sua preocupação perpétua sobre ações secretas com uma crescente sensação de que seu ativismo era uma provocação perigosa e sem sentido às agências de segurança. “Tenho certeza de que muitos dos meus amigos pensaram que eu estava louco. Eu estava em conflito. Mas em 1980 eu percebi que não havia mais nada que pudesse fazer politicamente: eu precisava simplesmente esquecer a coisa toda. Então eu vim para Nova York e comecei a trabalhar em bancos”.

Ele trabalhou na área de TI de grandes bancos nas décadas de 1980 e 1990, um epílogo perverso para uma carreira de luta contra os males do capitalismo global. Ele deixou seu escritório no World Trade Center poucas horas antes do atentado de 11 de setembro. E de dentro de um banco multinacional de investimentos, Fellwock assistiu aos mercados se desfazerem nas semanas após a queda das Torres Gêmeas. Nessa época, poucas pessoas próximas sabiam de seu passado como Winslow Peck, o primeiro informante da NSA. E ele raramente recordava dos tempos de ativismo.

“Não tinha importância. Era um trabalho que eu conseguia fazer. Eu trabalhei aqui e em Londres.” Ele ri, porque uma vez ele havia sido deportado da Grã-Bretanha e o caso teve muita publicidade, em 1976, depois de ajudar um jornalista investigativo a expor o GCHQ, o equivalente britânico da NSA. “Eu tive uma vida boa. Não posso me queixar. Eu sobrevivi a toda aquela merda e eu conheço um monte de gente que não sobreviveu.”

Ao longo dos anos ele se interessou cada vez mais pelo mercado de antiguidades. Analisar itens antigos se assemelha ao trabalho que ele fazia na Counter-Spy, que se resumia a coletar e analisar dados. Você precisa ter uma visão daquilo que as lojas estão vendendo e comprando em determinado momento para que você possa compreender quais são as mercadorias mais lucrativas. Fellwock mantém uma extensa planilha com a lista dos inventários de várias lojas.

Quando a arte africana estourou na década de 1980 ele ia pegar as peças assim que elas chegavam nas docas de Westside e as vendia no SoHo com 1000% de lucro. Ele frequentemente faz missões de reconhecimento em Chinatown para ver quais são as imitações que estão chegando das fábricas Chinesas; assim ele não acaba comprando peças falsas. Sua especialidade são moedas antigas. Ele está prestes a autopublicar um guia definitivo sobre compra e venda de antiguidades. “Eu já vi o que existe lá fora e não é nada bom”, ele diz.

“Tudo se resume a informação: você tem que saber o que vende.” Fellwock apontou para pedestres aleatórios enquanto caminhávamos pela calçada. “Todos que estão em volta de nós agora são clientes em potencial ou uma fonte em potencial. O truque é descobrir o que vai convencê-los a comprar ou a vender.”

Suas informações sobre a loja em Midtown eram furadas. A loja estava fechada quando nós chegamos. Fomos para o Terminal Grand Central, onde Fellwock ia pegar um trem. No caminho, ele me regalou com anedotas quase esquecidas de Norman Mailer nos anos 70. Como a história de Mailer e do escritor Lucian Truscott IV na taverna White Horse: “Eles ficavam bêbados e davam cabeçadas um no outro como touros. Era uma barulheira. Eu achava que eles iam arranjar umas concussões. Essa foi a coisa mais maluca que eu já vi no bar.”

Na estação Grand Central, Fellwock continuou a ter reminiscências enquanto éramos fustigados pela multidão da hora do rush, sob um arco no saguão principal de onde pendia uma enorme bandeira americana. A conversa se voltou para os arrependimentos e Doug Porter.

“Se você falar com ele, por favor, diga a ele que quaisquer que fossem as diferenças que nós tivemos elas se deviam às pressões sob as quais estávamos vivendo e ofereça as minhas desculpas. Se ele era honesto no que ele estava fazendo, eu não tenho nada além de respeito por ele. Todos os que se juntaram a mim e a Tim Butz foram inacreditavelmente corajosos.” Agora ele está soluçando novamente, com o rosto vermelho, e a bandeira acima de nós.

“Aquele foi o ponto alto da minha vida, eu sinto dizer.” Fellwock levanta as mãos num gesto exagerado de desespero. “Mas o presente é o melhor momento da minha vida.”

[Foto de Fellwock por Adrian Chen; imagens por Jim Cooke e revista Ramparts]

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