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A vida com o Kindle: no mundo real, como o leitor digital se sai no Brasil?

Seis anos depois do lançamento da primeira versão, o Kindle continua liderando o segmento a que deu início com preços mais agressivos e melhorias notáveis quando posto lado a lado com aquele modelo de cantos quadrados, teclado físico e baixo contraste do final de 2007. Para nós, brasileiros, a Amazon já é uma realidade e […]

Seis anos depois do lançamento da primeira versão, o Kindle continua liderando o segmento a que deu início com preços mais agressivos e melhorias notáveis quando posto lado a lado com aquele modelo de cantos quadrados, teclado físico e baixo contraste do final de 2007. Para nós, brasileiros, a Amazon já é uma realidade e seu e-reader nunca esteve tão próximo. Tudo muito bom no papel, mas e na vida real? É o que buscamos descobrir com este review duplo: do Kindle mais simples e da experiência na loja de ebooks nacional.

Simples e direto

A Amazon tem no Kindle mais básico um grande trunfo: a singularidade em sua função. Desde o primeiro Kindle existe um navegador (precário) e um sistema de áudio, mas são recursos tão circunstanciais e inadequados quando tirados do contexto da leitura que, para qualquer pessoa o Kindle só serve para uma coisa: ler.

Essa estratégia, que foge do que se vê por aí, tem algumas explicações e uma série de vantagens. Ela se explica, muito provavelmente, pelas linhagens superiores dentro da família Kindle. Se no final da década passada era comum comparar e-readers com tablets, não é de hoje que o abismo entre eles cresceu a ponto de tornar tal comparação inadequada. Tanto que surgiu o Kindle Fire, um tablet que, além de ler, permite que seu dono veja vídeos, ouça música, jogue. Um tablet, afinal.

Mesmo entre os e-readers da Amazon, melhorias mais drásticas dividiram a linha. A introdução da luz de fundo, cuja falta sempre caracterizou a tela de e-ink, foi merecedora de uma versão à parte (e mais cara), o Kindle Paperwhite. Com ela a Amazon pode ir além e oferecer características mais caras, como resolução maior e tela sensível a toques, cobrando a mais para isso, sem afetar o best seller, o herdeiro daquele primeiro Kindle de 2007.

Kindle esse que, nesses seis anos, mudou bastante. O teclado físico sumiu, ele encolheu e ficou bem mais leve. A tela, mesmo longe da alta definição e dos truques do Paperwhite, melhorou em todas essas iterações. O contraste está mais forte; o fundo parece menos calculadora de camelô, está mais branco; a transição de páginas, no início um longo processo para a nossa percepção acostumada a transições animadas, suaves e rápidas de smartphones e tablets, está notavelmente mais ágil.

Essa evolução denuncia algo intrínseco e benéfico ao consumidor: o Kindle melhora, um pouquinho a cada ano, mas nunca dá passos largos o bastante para tornar modelos anteriores, quiçá até o primeiríssimo, obsoleto. E digo isso por experiência própria: em casa, tenho um de segunda geração que continua cumprindo o que prometia no dia em que foi lançado.

Na vida real

A leveza e o tamanho mínimos do Kindle mais simples impressionam à primeira vista. É bem verdade que esses pontos não mudaram muito em relação à geração anterior — o meio mais fácil de diferenciá-las é pela cor; a mais recente é toda preta, a anterior, um cinza-chumbo –, mas em um mundo dominado por tablets, um equipamento que se assemelha no formato, mas mais amigável ao manuseio sempre chama a atenção. Ah, e o acabamento, plástico na frente, borracha atrás, é bem esperto e sóbrio, embora o material emborrachado seja inexplicavelmente suscetível a marcas de digitais…

O conforto no uso do Kindle, inclusive com uma mão só, foi possível com o sacrifício do teclado físico, característica que ainda resiste no esquecido Kindle Keyboard. Ele é (ou era) útil para fazer anotações em trechos de livros, uma possibilidade magnífica que, auxiliada às marcações e pesquisa, tornam os ebooks muito atraentes para quem gosta de retomar trechos da leitura posteriormente, seja por lazer, seja por necessidade.

A falta do teclado físico, compensada por um desajeitado teclado virtual que navegável pelo direcional ao centro, acaba passando. De botões que você aperta e sente, são 14 no total, mais as quatro setas do d-pad central. A maioria ok, alguns problemáticos. Quais? Os de navegação e o de liga/desliga.

Os quatro que permitem avançar e retroceder páginas ficaram bem finos, espremidos na dobra das laterais, e bem menos confiáveis também. Eles não são firmes e o “clique”, longe de ser audível. O atraso mínimo na transição de páginas, somado a essa desconfiança no apertar desses botões, torna a passagem de páginas um tanto… imprevisível? Talvez seja essa a palavra correta.

Parece um problema mínimo, mas estes são os botões mais usados no Kindle — afinal, por menor que seja um livro, você passa muitas páginas durante a sua leitura. Comparado ao Kindle de segunda geração que tenho aqui, com botões grandes e feedbacks tátil e sonoro bem destacados, é difícil definir esses fininhos e frouxos da última geração do Kindle como evolução. No fim, fica a sensação de que rolou um comprometimento em um aspecto-chave de usabilidade em prol de uma moldura mais fina — porém longe de ser fina; há um espaço subutilizado ali que poderia muito bem ter sido usado para dar mais folga a esses botões.

Outra crítica, embora mais amena, recai sobre o botão liga/desliga. Crítica, aliás, compartilhada com as primeiras gerações do Kindle Fire. Ele fica embaixo do Kindle, em um local de difícil acesso, impossível com uma mão só. É mais ameno porque, ao contrário de um tablet, não é um botão ao qual você recorre a todo momento. Poderia, de qualquer forma, sem melhor posicionado.

No software, a interface do Kindle não mudou muito ao longo de todas essas gerações, e a familiaridade conta pontos. Memorize a ordem dos quatro botões frontais, e você estará em casa. Ou quase, já que algumas coisas estão em locais não tão óbvios, e uma sutil falta de consistência, como o botão de destaque que perde a preferência se a definição de uma palavra estiver sendo exibida na hora do clique para o da definição completa, poderiam ser melhor trabalhadas. São detalhes, porém, que não comprometem a experiência de ler. E nisso o Kindle, com todo o seu ecossistema integrado, bateria absurdamente boa e legibilidade acertada (e agora com a opção de fonte sem serifa), se destaca.

E o lado brasileiro da Amazon?

Foram meses de especulações, vazamentos e informações truncadas até que a Amazon, numa madrugada de dezembro do ano passado, a loja estreou no país vendendo apenas ebooks.

Alguns dias depois, demos uma olhada mais atenta no que a Amazon estava oferecendo por aqui. E a loja começou com o pé direito: preços competitivos (não necessariamente baratos), conteúdo exclusivo, recursos bacanas presentes desde o primeiro dia e a onipresença em dispositivos digitais — tablets, smartphones, computadores, web, além dos dispositivos Kindle.

Quase um ano depois, como vão as coisas? Aparentemente, bem. A loja brasileira, ainda restrita a ebooks, talvez peque em títulos mais obscuros e/ou desconhecidos, na prática da cauda longa que é um dos pontos mais fortes da loja americana, mas no que diz respeito ao mainstream, ela está bem servida.

Pegamos o ranking de livros mais vendidos da Veja para avaliar o quão bem servida está a Loja Kindle brasileira. O placar ficou assim:

Os preços estão na média das lojas de ebooks com presença nacional, ou seja, longe de serem convidativos, mas nada de outro mundo, também.

É válido essa avaliação à distância, mas experienciar a coisa toda é ainda mais.

Migrando de um lado para o outro

Minha conta na Amazon é antiga — e norte-americana. Aproveitando o Kindle que nos foi enviado, resolvi migrar para o Brasil e ver se, nessa, perco alguma coisa além do acervo e promoções da terra do tio Sam. (Em contrapartida, agora posso aproveitar o acervo e promoções nacionais.)

A promessa da Amazon é de uma migração suave e, mais importante, provisória. Enquanto a Sony, talvez por omissão, acaba incentivando a criação e manutenção de múltiplas contas regionais no PlayStation e a Microsoft impõe uma burocracia grande para você mudar de país, na Amazon a promessa é de que é possível transitar entre Brasil e Estados Unidos sem crise:

“Se você preferir continuar comprando na Amazon.com para eBooks, você pode transferir sua conta de volta a qualquer tempo.”

Essa mesma página explica o que acontece com assinaturas e outros tipos de conteúdo ao fazer a passagem. Fora ebooks, todos os demais têm implicações, logo se você assiste a vídeos, baixa apps ou compra músicas na Amazon americana, é bom ficar atento.

No meu caso, que só consumo livros, foi tranquilo. A exemplo do mecanismo de compra facilitado da loja, a migração também só exigiu um clique. Simples, rápido e indolor. Meus ebooks continuaram onde estavam, inclusive nas posições deixadas anteriormente e com todas as notas e marcações, e todos os apps (uso o Kindle também no Android e iOS) foram atualizados instantaneamente para acesso à loja brasileira. Até o cartão de crédito associado à minha conta foi importado, mas senti falta do histórico de compras na área dedicada — é o caminho mais fácil para dar notas e deixar resenhas dos livros lidos. Nada que uma busca na própria loja não resolva, mas uma comodidade a menos.

A rapidez e completude do processo talvez expliquem a facilidade com que a Amazon permite transitar entre os dois países, mas de qualquer forma é um ponto muito positivo. Não é raro pintarem promoções nos dois locais (aquele Infinite Jest ali, do David Foster Wallace, saiu por US$ 1,99 em uma dessas, e já promoções diárias e semanais nas duas), de modo que para quem lê em português e inglês poder aproveitá-las todas é um grande plus.

As compras, como era de se esperar, são tranquilas. A única “anormalidade”, no sentido estrito da palavra, foi a loja ter pedido meu CPF na primeira compra em ambiente verde e amarelo. Compreensível. Salvo pelo acervo e programas mais específicos (como o de parcerias para sites), há pouco o que reclamar da Amazon brasileira quando o assunto é Kindle. Até mesmo o Direct Publishing, programa para aspirantes a escritores poderem vender suas obras na Amazon em um regime similar ao das lojas de apps para smartphones e tablets, já fala português do Brasil.

Com os pés bem firmes no Brasil

A Amazon demorou um bocado para estrear no Brasil e, quando o fez, limitou-se ao Kindle. Dado o preciosismo com que Jeff Bezos gere seus negócios, não é de se estranhar que a entrada no mercado nacional tenha sido assim. No pouco que oferece, a Amazon daqui não fica devendo em nada para a norte-americana.

Claro, tem a questão do suporte, não experimentada nesta análise. E é bom ficar ligado que, embora tenha sua loja aqui, a Amazon não vende bens físicos, nem mesmo os Kindles: a venda dos dois modelos, o simples testado por nós (R$ 299) e o Paperwhite (R$ 479), fica a cargo da Compra Fácil e do Ponto Frio.

Por R$ 299, aliás, o Kindle básico não chega a ser tão caro. O preço é mais elevado que o do produto nos EUA, onde essa versão, sem anúncios, sai por US$ 89. (Na cotação de hoje, isso dá R$ 196.) Considerando encargos e outros vilões habituais do preço baixo para gadgets, ele foge da categoria “absurdo!”, recentemente elevada a novos patamares com o Galaxy Note 3 e seu incrível valor de R$ 2.800. O aparelho é simples, mas cumpre bem o que promete. Como todo gadget dedicado, desempenha sua única função sem sobressaltos, sem sustos.

A garantia de poder voltar a comprar na loja norte-americana a qualquer momento, com apenas um clique, é um incentivo e tanto para pelo menos experimentar a loja nacional — e, de quebra, dar aquele incentivo para a operação local. O nosso mercado não é mais receptivo para o comércio de livros, logo, iniciativas na área são louváveis e merecedoras da nossa atenção.

O bom companheiro

No fim das contas, o Kindle é o resumo de um bom companheiro: dificilmente ele lhe dará dor de cabeça, não abre um rombo no seu bolso (o que aumentaria a responsabilidade de ser incrível) e não chega com o nariz empinado dizendo “o papel está morto” – ele sabe coexistir muito bem com os livros físicos, e pode até fazer a dobradinha com eles. Além disso, o Kindle reforça a ideia de um aparelho que faça apenas uma coisa muito bem. Estamos abandonando cada vez mais essa ideia em prol do multitarefa, mas nem sempre isso é bom – quantos gadgets com mil funções passam por aqui e, na hora de viver com eles, ficamos decepcionados pelas funções capengas? O retorno ao básico, ao essencial (e ler é muito essencial para sermos pessoas melhores) é importante, e o Kindle faz isso muito bem, inclusive no Brasil, onde ele tentou chegar sem fazer muito alarde (típico daquele bom companheiro mais quieto, até tímido), mas já aparece como um dos aparelhos que podem fazer sua vida ser diferente, no bom sentido.

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