Como o couro está matando lentamente as pessoas e lugares que o produzem

A indústria moderna do couro produz um chorume de produtos tóxicos que está, ao mesmo tempo, matando o meio ambiente e as pessoas que trabalham na área.

Nós, humanos, ainda enfeitamos nossos corpos, transportes e lares com a pele de animais, ainda que nos consideremos superiores a nossos ancestrais das cavernas. Mas, diferentes de nossos antepassados, a indústria moderna do couro produz um chorume de produtos tóxicos que está, ao mesmo tempo, matando o meio ambiente e as pessoas que trabalham na área.

O mercado do couro está se expandindo: são mais de dois bilhões de metros quadrados produzidos anualmente, que valem US$ 77 bilhões de acordo com estimativas recentes. Sapatos de couro são, de longe, o maior mercado para o material, avaliado em US$ 47 bilhões, mais de 60% do total das negociações mundiais entre 2009 e 2010.

O segundo maior mercado, o de artigos e produtos de couro (incluindo luvas), valia cerca de US$ 12,3 bilhões e formava 15,9% do total das negociações mundiais. Roupas de couro, estofados de automóveis, móveis domésticos e outros usos completam o mercado restante, estando suas partes entre 8% e 14%.

China e Índia estão entre os líderes mundiais na exportação de couro processado, com mais de 600 milhões e mais de 180 milhões de metros quadrados, respectivamente, em 2013. Os salários muito baixos que prevalecem nas nações mais pobres do Sudeste Asiático, e a inexistência em geral de regulamentos de segurança ambiental ou de trabalho, atraem empresas que trabalham com couro curtido para vendê-lo nos EUA e Europa.

De onde vem o couro

O tipo de couro produzido em uma região depende muito da fonte dominante disponível. Nas Américas, é a pele de gado bovino, complementada por cabras, ovelhas, avestruz e búfalo.

Couros mais exóticos também estão se tornando mais comuns. Cangurus são frequentemente empregados nos couros de chicotes e motocicletas, graças a sua leveza e resistência à abrasão. Peles de cobra, jacaré e crocodilos são populares também. Até mesmo a pele de arraia pode ser transformada em couro – algo frequente em lugares como a Tailândia, onde as arraias são muito comuns.

O processo de curtimento

O curtimento serve basicamente para mumificar uma pele e estabilizar o material resultante, para que ele não endureça demais nem apodreça. O processo de fazer isso primeiro envolve preparar a pele, raspando-a para retirar qualquer carne, gordura ou pelo. Opcionalmente, também se aplica pasta de cal, branqueador ou produtos para matar as bactérias na pele.

A diferença entre o couro curtido e o cru é visível nas reações deles ao calor e à água. O couro cru endurece no calor e apodrece quando molhado novamente. O couro curtido, por outro lado, continua flexível no calor e não apodrece quando molhado. Existem vários métodos de curtimento, que dão formas e utilidades diferentes ao couro. São eles:

  • curtimento vegetal: utiliza taninos encontrados em vegetais, cascas de árvore e outras fontes naturais derivadas de plantas. Este método produz um couro macio e marrom, que é ideal para ser entalhado e estampado, mas é muito instável na água. Quando banhado em água quente, o couro curtido em vegetais irá encolher e endurecer bastante. Por isso, ele já foi usado como uma forma ancestral da armadura em placas, e também para encadernar livros.
  • couro curtido sinteticamente: usa polímeros sintéticos, como Novolac, Neradol e Melamina. O processo foi inventado durante a Segunda Guerra Mundial, quando os taninos vegetais foram racionados. É fácil descobrir esse tipo de couro por sua cor branca e cremosa.
  • couro curtido em alume: ele não é geralmente considerado “curtido” porque apodrece na água. Esse método utiliza sulfatos de alumínio misturados com agentes que dão liga naturalmente, como farinha e gemas de ovos. O alume consegue cores bem mais claras do que os curtimentos vegetais, ainda que o produto resultante seja bem menos maleável.
  • couro curtido em cromo: a forma mais popular de produzir couro hoje em dia, e uma das mais nocivas. Ele utiliza uma lama tóxica de sais de cromo e uma solução de curtimento para produzir um produto maleável e, frequentemente, de cor azul clara. As peles preparadas são primeiro acidificadas em uma cuba de cromo até que o pH do material caia para algo entre 2,8 e 3,2. Então, elas são transferidas para uma cuba secundária, cheia de solução de curtimento. Uma vez que a solução tenha sido completamente absorvida por igual, o pH da cuba é aumentado para algo entre 3,8 e 4,2. Isso fixa o material de curtimento ao couro em nível molecular, e ajuda a diminuir o encolhimento que ocorre quando o couro é submerso em água quente.
  • couro curtido em aldeído: a principal alternativa ao curtimento que usa cromo. Aqui, em vez dele, é usado um aldeído glutárico ou oxazolidina. Tal qual o couro curtido sinteticamente, o curtido em aldeído é branco. Ele também absorve bem a água, é macio e pode ser lavado na máquina, o que faz dele perfeito para ser usado em camurça.

Depois que acaba o curtimento propriamente dito, o couro é colocado para secar. Então, começa o processo de “encrostamento”. O couro pode ser afinado, curtido novamente e lubrificado antes de ser colorido, amaciado e cortado.

Couro (2)
Foto por Apurva Madia/Shutterstock

O couro está matando o meio ambiente

A indústria do curtume representa muitos perigos tanto para o ambiente quanto para as pessoas que trabalham nele. A maior ameaça ambiental envolve o despejo de lixo sólido e líquido, que contêm restos de cromo e outros componentes prejudiciais. Isso acontece muito em regiões sem fortes padrões de proteção ambientais, o que inclui as principais regiões onde o couro é curtido – China, Índia e Bangladesh.

Mesmo em instalações completamente modernizadas e cuidadosamente gerenciadas, é quase impossível recuperar todos os poluentes gerados pelo processo de curtimento. Como regra geral, curtir uma tonelada de couro costuma resultar de 20 a 80 m³ de água com concentrações de cromo de 250 mg/L e concentração de sulfeto de mais ou menos 500 mg/L.

E ainda há a carne putrefata na fase de preparação, mais os pesticidas que reduzem o crescimento de fungos durante o transporte até o curtume. 70% da pele não tratada é, cedo ou tarde, descartada como lixo sólido. Os pelos, a gordura, a carne, os tendões – vai tudo direto pro lixo. E a água usada para lavar o couro tem resíduos – pedaços de carne, pelos, bolor, cocô e outros subprodutos animais – que não é descartada de forma apropriada.

Claro, há formas de amenizar esses impactos. Como aponta a ONUDI (Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial), usar técnicas comprovadas pela indústria, como a reciclagem direta (que usa a mesma tina de cromo para curtir o couro duas vezes) pode reduzir em 21% os níveis de cromo na água a ser jogada fora. Além disso, é possível recuperar o cromo quimicamente – seja precipitando-o, seja retirando-o lentamente com o óxido de magnésio. Assim, dá para recuperar pelo menos de 25% a 30% do cromo em uma cuba. E, como sugere um estudo de 2002 feito em 540 curtumes indianos, uma mistura com 70% de cromo novo e 30% de cromo recapturado produz um resultado praticamente idêntico ao uso de 100% de cromo novo.

De qualquer forma, como escreveram os autores do estudo da ONUDI, “mesmo que a poluição por cromo possa ser diminuída em 94% com a introdução de novas tecnologias, o acúmulo residual mínimo de 0,15 kg/tonelada de pele crua ainda pode causar dificuldades, por usar aterros sanitários e compostagem de lodo das estações de tratamento de esgoto, por conta das regulamentações de alguns países”. E mais, para serem implementadas, todas essas avançadas técnicas de recuperação custam dinheiro, esforço e tempo — mas principalmente dinheiro. E as nações em desenvolvimento não costumam ter recursos sobrando para proteção ambiental. Então, nas regiões onde as leis são frouxas ou facilmente dribladas com algumas propinas, os curtumes ainda contaminam o ambiente com cromo.

Muitas plantas e animais regulam suas funções metabólicas através de doses mínimas de cromo. No entanto, em doses maiores – vindas do lixo contaminado com cromo – ele pode causar problemas respiratórios, infecções, infertilidade e deficiências congênitas. Ele também pode ferir as guelras dos peixes e até causar alguns tipos sérios de câncer em animais, ao longo da cadeia alimentar.

Ele também está prejudicando quem trabalha na área

O próprio trabalho no curtume já é cheio de perigos, geralmente porque os trabalhadores têm proteções inadequadas ou inexistentes. Os riscos incluem escorregões e quedas no chão indevidamente drenado; exposição ao cal, à solução de curtimento, ácidos, bases, solventes desinfetantes e outras químicas nocivas; ferimentos causados pelo maquinário pesado ou lâminas de esfola; e até afogamento, ser fervido vivo ou queimado por cal. Todos são perigos assustadoramente reais.

Ainda assim, a parte mais perigosa do curtume moderno é o cromo. Em humanos, o cromo causa diversas doenças, dependendo de como é absorvido.

Quando inalado, o cromo age no pulmão como irritante e cancerígeno, afetando o sistema respiratório superior, obstruindo a passagem do ar e aumentando as chances de câncer no pulmão, na cavidade nasal e nos seios paranasais do rosto. O cromo normalmente é inalado como um pó de partículas finas, produzido quando os couros crus e curtidos são lustrados, amaciados e cortados. O cromo está ligado ao aumento em casos de asma, bronquite, pólipos do trato respiratório superior, faringite e no aumento de linfonodos e da região da raiz do pulmão.

Além disso, as peles cruas também são terreno fértil para o antraz, doença infecciosa que causa problemas respiratórios graves, por vezes fatais. Ela alcança facilmente os humanos ao se misturar com a poluição no ar. Esse efeito foi praticamente eliminado na indústria do curtume ocidental, agora que as peles são desinfetadas antes de serem enviadas para o processamento.

O cromo também não se dá bem com a nossa pele. Uma vez absorvido ao ser manejado de forma desprotegida, o cromo pode deixar a pele seca, rachada e escamosa; e pode causar ulcerações que se recusam a sarar direito, conhecidas como “buracos de cromo”. E se alguém for sensível à exposição ao cromo, o contato com ele resultará em inchaço e na inflamação conhecida como dermatite alérgica.

E ainda tem o câncer

Nos anos 80, ninguém fora da indústria do curtume tinha qualquer suspeita de que o trabalho estava deixando os curtidores doentes. De fato, um estudo um estudo de 1981 da Agência Internacional para a Pesquisa sobre o Câncer (IARC) não encontrou qualquer ligação entre o processo de curtimento e o câncer das cavidades nasais em trabalhadores de curtume.

No entanto, nos anos seguintes, relatórios e estudos começaram a descobrir uma ligação não apenas com o câncer das cavidades nasais, mas também com o de bexiga e dos testículos, que estava associado com as tintas e solventes empregados no final do processo. Em meados dos anos 90, o câncer em outros órgãos, incluindo pulmão e pâncreas, estavam associados ao pó do couro e ao curtimento. No começo deste século, pesquisadores descobriram outra ligação entre os compostos de cromo hexavalente (Cr(VI)) e um maior risco de câncer respiratório.

O cromo hexavalente é elemento cromo no estado de oxidação +6, uma forma puramente manufaturada do minério, que não é encontrada na natureza e é inerentemente mais instável do que o estado natural de oxidação, +3. Antes comum em toda indústria de curtume e na indústria automotiva, o Cr(VI) foi classificado como cancerígeno aos humanos pela Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA), pela IARC e pela Organização Mundial da Saúde. Desde então, ele foi estritamente regulamentado e quase completamente banido.

Isso é bom porque, como vários estudos sugerem desde os anos 80, o Cr(VI) parece ser mais tóxico à medida que se acumula no corpo: mais problemas graves se desenvolvem e pioram com os anos de exposição.

O que se pode fazer?

O problema, como você pode ter concluído, não está nos curtumes rigidamente controlados dos países de primeiro mundo, e sim nas nações em desenvolvimento que fazem a maior parte do trabalho.

Muitas regiões estão se esforçando para limpar essas indústrias poluidoras. Porém, o progresso é lento. Por exemplo, temos Kampur, na Índia, a autoproclamada “Cidade Mundial do Couro”. A cidade já foi lar de mais de dez mil curtumes que, em 2003, jogaram mais de 22 toneladas de lixo no rio Ganges todos os dias. A cidade agiu em 2009, fechando 49 dos curtumes mais poluidores da cidade — de uma lista de 404 grandes poluidores.

Em nações pobres como Bangladesh, onde essa indústria gera 600 milhões de dólares em exportação todos os anos, a saúde dos trabalhadores e do ambiente são pensamentos adiados para muito mais tarde. 90% dessas exportações são produzidas em Hazaribagh, bairro de Daca, capital do país. Ano passado ele foi classificado como um dos cinco lugares mais tóxicos e pesadamente poluídos em todo o planeta pelo Blacksmith Institute.

Como ilustra um post recente do Ecologist, as pessoas desse bairro frequentemente estão tão poluídas quanto a água:

Venkatesh, 51, trabalhou toda sua vida em curtumes, removendo o pelo das peles em poços de cal. Seus braços e mãos, de cor marrom escura, estão pontilhados de cicatrizes brancas, por causa de uma doença de pele causada por produto químico. “[Durante] os últimos quatros anos eu não trabalhei mais do que dez dias por mês. Se eu trabalho mais, a coceira começa. É insuportável. A pomada do médico não ajuda muito. Mas eu tenho que trabalhar, para a minha família poder viver”, diz Venkatesh. Ele ganha o equivalente a R$ 7 por dia de trabalho no curtume Saba e equilibra as despesas comprando comida na loja local para famílias pobres, subsidiada pelo governo. “Agora eu sempre uso luvas, mas o cal entra nelas de um jeito ou de outro”, ele disse ao The Ecologist.

Próxima à rodovia Nehru, a clínica particular do Doutor G. Asokan está cheia. Quinze pacientes aguardam pacientemente pela sua vez na sala de espera, a garagem do médico. “Eu tenho entre seis e oito pacientes por semana vindos dos curtumes com doenças de pele ou asma. O curtimento também pode causar alergias, bronquite e pneumonia. Eu estimo que 40% dos trabalhadores dos curtumes têm problemas de saúde por estarem em contato direto com os produtos químicos”, ele diz. Nós ouvimos afirmações similares de outros médicos locais. Então, até que ponto chegam esses problemas de saúde na indústria indiana do curtume? Não é fácil encontrar estatísticas. O curtimento de couro é um grande negócio, curtumes poderosos têm muita influência e pesquisas sobre problemas de saúde podem causar problemas para a indústria.

Um professor explica que, por pressão da indústria, teve que cancelar um projeto de pesquisa sobre o cromo como causa de doenças entre os trabalhadores dos curtumes. Outro professor, estudando o impacto do cromo nas pessoas e no ambiente, cancelou um encontro conosco após falar com os curtumes. “O maior problema com a indústria do curtimento não são mais as questões ambientais”, diz Dietrich Kebschull, representante da Business Social Compliance Initiative (BSCI) na Índia. “Aqui foram feitos bons avanços, especialmente com as estações de tratamento de efluentes comuns. Um problema que eu ainda vejo está ligado à saúde e a segurança nas condições de trabalho. Aqui, os governos da Índia e de Tamil Nadu exige que os trabalhadores usem botas e luvas longas, aventais e máscaras”.

“Esse é um produto usado no mundo inteiro para artigos de luxo, mas para os trabalhadores que os estão produzindo, nem os donos nem o governo estão olhando por nossa saúde e por nossa segurança”, disse Abdul Malek, líder do Sindicato dos Trabalhadores dos Curtumes, à Al Jazeera English.

Infelizmente, se não houver uma arbitragem da ONU ou um enorme boicote internacional contra o couro curtido com cromo, não parece haver muito estímulo para o fim dessas práticas. Enquanto o primeiro mundo continuar exportando esse trabalho para nações empobrecidas e em desenvolvimento, facilmente exploráveis, nosso desejo por um couro macio e acessível vai carregar um preço exorbitante, pago em sofrimento humano.

[WikiScribes Guild JournalIntertekAl-JazeeraNational Institute of HealthILOCDCLenntechIARCThe EcologistONUDI – Worst Polluted28th WEDC Conference]

Foto por Philip Lange/Shutterstock

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