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A criação de órgãos humanos em animais deu grande passo com esses embriões de porcos

Com as longas filas para transplante nos hospitais, avanço é importantíssimo, mas caminhada ainda inclui vários outros passos e questões éticas

Várias dezenas de embriões em um laboratório que parecem diretamente tirados de um filme do David Lynch — parte porco, parte humano. É apenas o primeiro passo em uma estranha jornada que, um dia, pode levar a uma nova maneira de criar e desenvolver órgãos humanos.

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Órgãos humanos são uma commodity escassa, e quase 80 mil pessoas estão na fila para um transplante, apenas nos Estados Unidos — no Brasil, este número era de 42.500 até junho do ano passado. Alguns cientistas vislumbram um futuro em que os órgãos humanos cresçam em porcos ou outros animais de fácil “colheita”, da mesma maneira como conseguimos a carne que consumimos. Neste caminho, um estudo publicado nesta quinta-feira no periódico Cell alcançou um importante primeiro passo — a criação de embriões de porcos que contenham células humanas. Mas os resultados sugerem que há muito mais trabalho e considerações éticas à frente na caminhada.

“Esses experimentos com animais grandes, como porcos e vacas, são realmente incríveis”, disse ao Gizmodo Carlos Izpisua Belmonte, investigador principal do Salk Institute for Biological Studies, na Califórnia. “Não temos as instalações nos diferentes laboratórios, precisamos ir às fazendas. Isso nos levou quatro anos, e foi uma proeza conseguir reunir todas essas pessoas”, afirmou, em referência ao grupo de pelo menos 40 pesquisadores envolvidos na criação de embriões de porcos com células humanas.

Esses cientistas experimentaram com diversas quimeras diferentes, incluindo células de rato injetadas em embriões de camundongos e de porcos e células humanas colocadas em embriões de porcos, com variados níveis de sucesso. As quimeras de camundongo desenvolveram vesículas biliares feitas inteiramente de células de rato, mesmo que a evolução tenha acabado com vesículas biliares em ratos. As quimeras de rato e porco não funcionaram nem um pouco.

Mas vamos focar nas quimeras de porcos e humanos por enquanto. No ano passado, noticiamos que esses mesmos cientistas estavam injetando células-tronco humanas, as células “em branco” que podem se transformar em outros tipos de célula, em 1.500 porcos que estavam sendo desenvolvidos, quando eles eram apenas bolas de célula proto-embrionárias chamadas blastocistos. Essa nova pesquisa mostra os resultados dos implantes.

Inicialmente, as células humanas parecem se anexar e crescer, mas uma vez que os fetos de porco haviam se implantado nas paredes uterinas das porcas “mães de aluguel” e crescido por quatro semanas, os pesquisadores mediram apenas alguns traços das células humanas.

“Células humanas (verdes) foram encontradas em parte de um embrião de porco de quatro semanas. A cor azul (DNA) indica ambas as células de porco e humanas.” Imagem: Jun Wu

“O objetivo final é gerar células para tecidos humanos”, disse Izpisua Belmonte. “Sentimos que, devido aos primeiros resultados que conseguimos, estamos muito longe.”

Então, por que a quimera porco-humana não funcionou tão bem quanto a variação rato-camundongo? Eles estão muito mais próximos na árvore evolucionária do que humanos e porcos, para começar. Embriões de humanos e porcos também levam tempos diferentes para crescer, então conseguir que uma quimera prospere exige uma coordenação fastidiosa — os cientistas precisam injetar as células-tronco no momento certo.

Mesmo a escolha correta das células-tronco pode mudar o quanto o tecido humano irá se desenvolver, segundo o que nos contou Paul Tesar, professor de genética da Case Western Reserve University, que não esteve envolvido na pesquisa. Mas nada disso significa que está na hora de desistir, ele acrescenta. E os estudos ainda são importantes, por razões além da criação de órgãos.

“Ele oferece uma base e um pouco de esperança de que essas quimeras humanas inter-espécies possam ser possíveis”, afirmou Tesar. “Esses estudos também oferecem uma compreensão de desenvolvimento poderosa, particularmente de desenvolvimento humano e do que controla estes processos iniciais de desenvolvimento.”

Questões éticas e direitos dos animais

Se um órgão criado em um porco te deixa enjoado, você não está sozinho. A ideia existe desde a década de 1970, e as pessoas têm há muito tempo, expressado suas preocupações sobre a possibilidade de humanos contraírem doenças de animais, sem falar nos direitos animais. “Os cientistas devem estar tendo estas conversas agora, para que não fiquem trabalhando em pesquisas que, posteriormente consideraríamos antiéticas”, contou Carolyn Neuhaus, especialista em ética médica na New York University, ao Gizmodo.

“Se você tem um cenário a longo prazo em que você tem uma fábrica de órgãos em porcos sob demanda, isso seria diferente de criar porcos para outros propósitos”, disse. “Não acho que isso seria moralmente pior do que a maneira como criamos porcos para o abate, mas minha intuição me diz que a criação deles para retirada de órgãos exigiria que abandonássemos a maneira como ele são criados hoje (para pesquisa).”

Se uma célula cerebral humana de alguma forma crescesse dentro do cérebro de um porco, poderíamos estar lidando com questões éticas muito mais estranhas. Será que os porcos de repente seriam mais humanos?

Até que isso aconteça, esses porcos não são humanos e não deveriam ser pensados como tal — são porcos que por acaso têm células que poderiam ser usadas para tratar humanos. “Ativistas de ética animal são importantes, e há um espaço na mesa para eles”, disse Neuhaus, mas “outra voz importante seria aquela das pessoas que precisam de órgãos.”

Feto quimérico de um rato-camundongo. Em vermelho, as células de rato. Imagem: Jun Wu

Os cientistas responsáveis pelas novas quimeras porco-humanas mantêm a posição de que entendem as implicações éticas de seu trabalho. “O objetivo da pesquisa é sermos cuidadosos antes que levemos qualquer coisa para a frente”, contou Jun Wu, autora principal do estudo. Os pesquisadores apenas estudam os animais nas primeiras semanas de desenvolvimento, para evitar preocupações de lidar com fetos de porco mais completos, por exemplo.

Então há um longo caminho, tanto eticamente quanto cientificamente, antes que vejamos fazendas de porcos “criadores de órgãos”. Wu e Izpisua Belmonte estão atualmente investingando métodos envolvendo a edição de genes CRISPR, para determinar quando exatamente as células-tronco humanas deveriam ser introduzidas e quais órgãos podem ser criados. Mas pelo menos há um primeiro passo sólido, que é: agora, células humanas já quebraram a barreira de crescer em embriões de porcos.

“Acho que o estudo está bem feito. É uma quantidade enorme de trabalho, e o número de embriões que eles testaram aqui é uma façanha incrível”, disse Tesor. “O resultado final pode não ser o que estão esperando, mas agora podemos seguir em frente com esses estudos e nos basear neles para chegar ao próximo estágio de análise.”

Imagem do topo: Jun Wu

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