Dois terços de todas as mutações causadoras de câncer são inevitáveis, sugere estudo

Dupla de cientistas alegam que há um terceiro fator incontrolável na incidência de câncer: o azar

Em um estudo que deverá atrair considerável controvérsia, dois pesquisadores estão alegando que cerca de 60% a 66% de todas as mutações desencadeadoras de câncer são resultado de erros aleatórios de cópias de DNA, o que os torna essencialmente inevitáveis. A nova pesquisa oferece visões importantes sobre como o câncer surge e como ele deveria ser diagnosticado e tratado, mas muitas questões permanecem.

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Por décadas, o paradigma entre pesquisadores de câncer tem sido de que o câncer surge como resultado de fatores hereditários ou ambientais ou uma combinação dos dois. Uma nova pesquisa do Johns Hopkins Kimmel Cancer Center sugere que há um terceiro fator que faz células mutadas começarem a se reproduzir fora de controle — erros de cópia aleatórios e imprevisíveis durante a replicação do DNA. A pesquisa mostra que esses erros ocorrem em pessoas que não têm histórico familiar de câncer e entre outras que vivem vidas bem saudáveis. Essa revelação sugere que métodos melhorados de detecção de câncer são necessários, especialmente nos estágios iniciais, quando o câncer é altamente curável.

“A razão pela qual (pesquisadores de câncer) não observaram isso antes é porque ninguém mediu isso anteriormente”, disse Cristian Tomasetti, coautor do estudo, durante coletiva de imprensa realizada nesta quarta-feira. “Isso é o que estamos apresentando a vocês hoje.”

Como concluem os autores do novo estudo, publicado nesta quinta-feira na Science, mutações aleatórias parecem ser responsáveis por aproximadamente dois terços de todos os casos de câncer. Os pesquisadores informalmente se referem a esses cânceres como cânceres “de azar”, porque evidentemente não há nada que possamos fazer para evitá-los. Porém, como os cientistas tão insistentemente apontam, isso não é desculpa para viver uma vida de abandono imprudente. Conforme mostram esse novo estudo e outros anteriores, aproximadamente 40% dos cânceres ainda podem ser prevenidos.

“É bem sabido que devemos evitar fatores ambientais, como fumar, para diminuir nosso risco de pegar câncer. Mas não é tão sabido que cada vez que uma célula normal se divide e copia seu DNA para produzir duas novas células, ela comete múltiplos erros”, explicou Tomasetti. “Esses erros de cópias são uma fonte potente de mutações de câncer que, historicamente, têm sido cientificamente subvalorizadas, e esse novo trabalho oferece a primeira estimativa da fração de mutações causadas por esses erros.”

Tomasetti, com seu colega Bert Vogelstein, chegou a essa conclusão usando um novo modelo matemático para avaliar dados de sequenciamento de DNA, além de descobertas epidemiológicas de todo o mundo. Dentre os 32 tipos de câncer estudados, os pesquisadores descobriram que aproximadamente 66% das mutações de câncer eram resultados de erros de cópia de DNA, 29% eram causados por fatores ambientais, e apenas 5%, hereditários.

Um estudo publicado em 2015 por Tomasetti e Vogelstein chegou a uma conclusão parecida, mas acendeu uma tempestade de controvérsias por excluir certas formas de câncer, apenas considerando pacientes norte-americanos. Considerando o papel que poluentes ambientais e outros agentes tóxicos têm no desenvolvimento do câncer, não era irracional sugerir que as causas do câncer podem variar globalmente. Além disso, os pesquisadores não conseguiram determinar a fração de mutações em cânceres causadas por erros de cópia de DNA; eles apenas compararam a incidência de câncer com o número total de divisões celulares nos órgãos em que ocorreram os cânceres.

“Os dois estudos são diferentes de várias maneiras, e (o novo) inclui coisas que não havíamos feito antes”, Tomasetti contou ao Gizmodo.

Desta vez, os pesquisadores incluíram cânceres de mama e próstata, que anteriormente haviam excluído por falta de dados suficientes, e coletaram dados de câncer de todo o mundo.

“O fato de que conseguimos mostrar uma correlação (entre divisão de células estaminais e o risco específico de câncer de tecido) é um importante passo para a frente, mas não é realmente o ponto mais importante (do estudo atualizado)”, disse Tomasetti. “A grande diferença é que no estudo de 2015 encontramos uma correlação entre as mutações de células estaminais e os índices de câncer, mas, como sabemos, correlação não implica causalidade. Este novo estudo é o primeiro em que alguém olhou para as proporções das mutações em qualquer tipo de câncer e designou três fatores de causa. Considero este um resultado completamente novo comparado com nosso antigo estudo.”

Tomasetti diz que os dados de sua equipe está de perfeito acordo com as estimativas epidemiológicas que mostram que 42% dos cânceres podem ser prevenidos, um lembrete de que “todo mundo deveria aderir a orientações de prevenção”.

Para o estudo, os pesquisadores compararam o número de divisões de células estaminais — uma importante fonte de mutações celulares — entre pacientes de câncer de 68 países listados em 423 registros monitorados pela International Agency for Research on Cancer (Agência Internacional para Pesquisa de Câncer). Tomasetti e Vogelstein encontraram fortes correlações entre a incidência de câncer e divisões celulares não influenciadas por fatores hereditários ou ambientais entre os tipos de câncer estudados, independentemente do ambiente ou da produção econômica de um país. Observando as mutações que levam a um crescimento celular anormal, os pesquisadores desenvolveram um modelo estatístico usando dados de sequenciamento de DNA do Cancer Genome Atlas e dados epidemiológicos da base de dados do Cancer Research UK.

Uma descoberta interessante foi de que são necessárias aproximadamente duas mutações genéticas por divisão celular para que tudo saia do controle e ela se torne cancerosa, mas nem todas as mutações resultam em câncer.

“Todas vezes que uma célula normal se divide, ela comete vários erros chamados ‘mutações'”, explicou Vogelstein, na coletiva de imprensa. Por serem aleatórias, essas mutações não são normalmente perigosas, afetando genes não relacionados a cânceres, disse. “Mas, de vez em quando, uma mutação ocorre em um gene que pode levar ao câncer, e isso é azar.”

Embora entre todos os tipos estudados esses cânceres “de azar” cheguem a cerca de dois terços de todos os casos, cada tipo de câncer tem sua própria história a contar. No câncer pancreático, por exemplo, 77% dos casos são resultado de erros de cópia de DNA aleatórios, 18% pelo ambiente, e os 5% restantes, por heranças genéticas. Para os de próstata, cerebral e ósseo, o fator “aleatório” dá um salto para 95%, sendo esses aleatórios definidos como mutações causadas por replicação normal de DNA, e não aquelas influenciadas por fatores genéticos herdados e/ou o ambiente. Maioria das mutações no câncer de mama foi atribuída à aleatoriedade, mas algumas foram por causa de fatores de saúde (obesidade sendo um desses fatores que contribuíram). O câncer de pulmão é bastante diferente, com o fator ambiental sendo responsável por 65% dos casos (atenção, fumante). Cerca de 35% dos casos de câncer de pulmão foram resultados de erros de cópia, enquanto o fator hereditário tem um papel virtualmente inexistente.

A razão para a discrepância de causas entre os 32 tipos de câncer estudados, dizem os pesquisadores, é que nem todos os tecidos são criados igualmente. Certas células, por razões ainda a serem determinadas, são simplesmente mais suscetíveis a mutação. Pode ser por algumas células replicar com maior frequência, produzindo mais oportunidades de mutação. “Quanto mais células estaminais, mais erros”, diz Vogelstein. “É por isso que cânceres colorretais são mais frequentes que, por exemplo, cânceres cerebrais. Não se trata da natureza das mutações ser diferente.”

Vogelstein espera que este trabalho inspire pesquisadores a entenderem melhor os fatores de risco envolvidos, desenvolvendo novas medidas de prevenção. Ele também diz que a prevenção secundária de câncer, ou seja, tratar o câncer logo que ele aparece, é um componente extremamente subvalorizado e pouco estudado dentro das pesquisas de câncer, e que esse estudo deveria servir como um alerta para isso.

Assim como em seu estudo de 2015, essa pesquisa certamente trará bastante atenção, e muito escrutínio.

“É um estudo interessante”, disse Song Wu, professor associada no departamento de Matemática Aplicada e Estatística da Stony Brook University, em entrevista ao Gizmodo. “Entretanto, assim como em seu primeiro estudo publicado em 2015, sinto que suas conclusões são meio ousadas demais. Agora eles estão retrocedendo de dizer que dois terços de todos os cânceres acontecem por processos intrínsecos, afirmando que dois terços das mutações acontecem por processos intrínsecos inevitáveis. Talvez eles voltem atrás dessa conclusão novamente, daqui a dois anos.”

Wu também está preocupado com o fato de que o estudo depende muito de um estudo epidemiológico do Cancer Research UK, ignorando uma grande quantidade de estudos epidemiológicos. “Por exemplo, estudos iniciais sobre imigrantes mostravam que o câncer de próstata claramente tinha um componente ambiental significativo, mas Tomasetti e Vogelstein simplesmente afirmam que o câncer de próstata tem efeito ambiental quase nulo.”

Colega e colaborador de WU, Yusuf Hannum, do Stony Brook Cancer Center, também tem uma certa apreensão sobre o estudo atualizado. “O defeito em sua lógica do estudo anterior persiste: a correlação entre a divisão de células estimais e o risco específico de câncer de tecido”, contou ao Gizmodo. Hannun aponta que a correlação não implica um papel de causa para células estimais quando se trata de câncer, e que mesmo se um papel de causa fosse mostrado, dificilmente isso significaria que as células estimais são o único fator envolvido. “Generalizar isso para dados dispersos geograficamente não desfaz essa falha”, acrescentou.

No ano passado, Wu e Hannun publicaram um estudo na Nature que chegou a uma conclusão bastante diferente. Os pesquisadores mostraram que o risco de câncer é altamente influenciado por fatores ambientais, responsáveis por cerca de 70% a 90% de todos os cânceres.

O estudo de Tomasetti e Vogelstein pode ser falho, e é, sem dúvidas, incompleto, mas a ideia de que certos cânceres vão além de nosso controle certamente é intrigante. Faz sentido que nossos corpos, fora dos fatores ambientais e de herança genética, irão produzir uma célula cancerosa que irá gerar mais cópias suas. Mais à frente, os cientistas têm a assustadora tarefa de descobrir como prever esses exemplos de câncer, se isso for possível.

Enquanto isso, você deve continuar fazendo seu melhor para evitar câncer: comer de forma saudável, manter um peso saudável, parar de fumar e evitar ambientes cancerígenos.

[Science]

Imagem do topo: Shutterstock

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