Os problemas da ferrovia de 5.000 km que a China e o Brasil querem construir

Em fins de maio, a China anunciou que pretendia apoiar a construção da Ferrovia Bioceânica para ligar Brasil e Peru, passando pela floresta Amazônica.

Em fins de maio, a China anunciou que pretendia apoiar a construção da Ferrovia Bioceânica para ligar Brasil e Peru, passando pela floresta Amazônica. Este seria um dos projetos financiados pelo novo fundo sino-brasileiro de US$ 50 bilhões. A ideia é reduzir os custos de exportações para a China… mas parece que isso não vai acontecer.

Segundo o Estadão, uma análise feita pela União Internacional de Ferrovias mostra que não faz o menor sentido levar produtos do Brasil para o Peru e lá embarcá-los em um navio. Afinal, é mais barato despachá-los de navio a partir daqui:

… o custo do transporte de uma tonelada de soja de Lucas do Rio Verde (MT) até Xangai, na China, sai por US$ 120,43 se a mercadoria for embarcada no porto de Santos (SP). Saindo pelo porto de Ilo, no Peru, o frete sai a US$ 166,92. Uma diferença de US$ 46,49 por tonelada.

Por que isso? Bem, o frete de Santos é quase igual ao de Ilo, no Peru – e o custo para chegar da lavoura de soja até o porto é menor.

Vale notar que isso ainda não considera os custos de fazer a ferrovia! Mesmo sem levar em conta os 3.650 km da obra, dos quais 1.000 km passam pela cordilheira dos Andes, ela parece ser inviável economicamente.

Ainda por cima, a Bioceânica pode ter um impacto ambiental enorme, pois vai atravessar pântanos, florestas e comunidades isoladas. Por enquanto, a China diz apenas que vai ficar de olho nisso. Do China Daily:

Wang Guoliang, diretor do Departamento de Gestão de Negócios Internacionais na CREEC (China Railway Eryuan Engineering Group), diz que todas as avaliações, incluindo o impacto da ferrovia sobre a conservação de espécies raras, do solo e dos recursos hídricos, e sobre as relíquias culturais e a vida dos residentes locais, serão conduzidas de acordo com as leis ambientais.

A equipe vai tentar equilibrar as exigências técnicas, a viabilidade financeira, o benefício socioeconômico e a necessidade de ser amigável ao meio ambiente através de estudos aprofundados.

A Bioceânica terá 5.000 km no total: ela vai se integrar a ferrovias já existentes no Brasil e Peru, e colocar trilhos para conectá-las. A intenção é tornar o Peru um hub central para o oceano Pacífico na América do Sul.

O governo brasileiro estima que a parte da ferrovia a ser construída no país custará R$ 40 bilhões. Trechos da Bioceânica entraram no plano de investimentos que a presidente Dilma Rousseff anunciou este mês. No projeto original, a ferrovia começa no porto de Açu (RJ), passa por MG, GO, MT, RO e AC e, de lá, segue para o Peru.

O embaixador da China no Brasil, Li Jinzhang, chegou a falar em cinco anos para a construção da ferrovia. Será mesmo que a Bioceânica estará em pleno funcionamento em 2020?

Bem, é difícil acreditar. E uma coluna do jornalista Kennedy Alencar faz esse projeto parecer ainda mais distante.

Como dissemos por aqui, a China está financiando um canal transcontinental na Nicarágua para abrir novas rotas de comércio, pois o Canal do Panamá fica em um país com laços estreitos com os EUA. Sobre isso, Kennedy diz:

Ministros desconfiam que esse projeto [a ferrovia Bioceânica] possa ser usado pela China para pressionar a Nicarágua, onde há resistências ambientais e dificuldade de desapropriação de terras, a liberar a construção de um canal ligando o Mar do Caribe, no Atlântico, ao Oceano Pacífico. Ou seja, há risco de o Brasil acabar sendo usado como laranja.

Como foi um pedido da China, país que firmou acordos de cerca de US$ 50 bilhões com o Brasil no mês passado, a presidente Dilma Rousseff avaliou que não havia alternativa e colocou a obra no plano…

Talvez sejamos apenas uma pecinha em um plano maior da China, que já prometeu outros investimentos no Brasil e não cumpriu. O pior é que nem o canal da Nicarágua está indo bem: especialistas chamam o projeto de “um elefante branco”.

E agora? Bem, agora é bom relembrar o que aconteceu da última vez que o Brasil ficou ansioso por um projeto faraônico: o trem-bala entre Rio e São Paulo. A excelente reportagem “Um trem para Bangladânia” mostra todos os percalços que o projeto impossível teve em suas décadas de existência.

O trecho mais importante talvez seja este, mencionando todas as hipóteses falhas que o projeto assumiu:

Técnicos do TCU (Tribunal de Contas da União) estudaram as tabelas por meses e, ao fim, constataram problemas: “erro no cálculo da despesa com energia elétrica”, “utilização incorreta da alíquota do PIS/Cofins”, “exclusão da CSLL da base de cálculo do Imposto de Renda”. Diante das incongruências, o tribunal enviou uma diligência à Valec [estatal responsável pela construção de ferrovias no Brasil] em busca de respostas.

A estatal se comprometeu em corrigir o documento e o remeteu novamente ao TCU. Técnicos abriram o arquivo e destrincharam o projeto outra vez. Dezenas de falhas foram apontadas. Ainda assim, o estudo foi aprovado com ressalvas em abril de 2007.

As ressalvas viraram nota de rodapé na imprensa, onde o projeto ganhava força como aprovado. Mas um consultor legislativo da Câmara dos Deputados trabalhava em silêncio. Eduardo Fernandez Silva é mestre em economia e conhece bem projetos de engenharia financeira como os da Italplan…

Fernandez desossou os números como um açougueiro. Após 25 páginas, o consultor abriu suas conclusões. “A viabilidade da implantação do Trem de Alta Velocidade ligando Rio de Janeiro a São Paulo depende da ocorrência de hipóteses altamente improváveis, e as afirmações em que se baseia a conclusão oposta são frágeis”.

Um dos principais problemas era a demanda de passageiros prevista no estudo, estimada em 32,6 milhões por ano pela Italplan. “Em 2006, o número total de viajantes entre Rio de Janeiro e São Paulo, por ônibus, automóvel e avião, foi de 8,4 milhões”, calculou Fernandez…

Sobre os bilhões de impostos que seriam gerados: “carece de credibilidade: não há memória de cálculo e, no resto do mundo, os trens-bala são subsidiados. Os relatórios não dizem uma palavra sequer sobre porque no Brasil será diferente”.

O prazo de construção também foi criticado. “A Itália demorou 22 anos para implantar a sua primeira linha de trem rápido e prevê, hoje, melhorias em linhas férreas existentes — de forma a adequá-las ao trem rápido — ao custo de 28,8 milhões de euros por quilômetro. O Grupo de Trabalho aceitou a informação de que o trem-bala brasileiro seria implantado em apenas sete anos. Aceitou também que a sua implantação — a partir do zero –, custaria menos de 15 milhões de euros por quilômetro”, escreveu Fernandez. “As razões pelas quais se espera que os brasileiros sejam tão mais eficientes que os italianos não foram explicitadas.”

É melhor não deixar que a história se repita. Leia a reportagem completa aqui. [Estadão e Kennedy Alencar via InfoMoney]

Foto por kattebelletje/Flickr

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