Como o desafio do balde de gelo ajudou na pesquisa para combater a esclerose

O desafio do balde de gelo levantou fundos para estudos sobre a esclerose lateral amiotrófica. Mas como exatamente ele ajudou as pesquisas?

No ano passado, o desafio do balde de gelo ficou bastante popular quando diversas celebridades jogaram um balde cheio de gelo na própria cabeça para ajudar no combate à doença de Lou Gehrig – ou esclerose lateral amiotrófica, conhecida como ELA. Alguns chamaram a ação de “slacktivism” (um ativismo preguiçoso), mas pesquisadores nos dizem agora que o dinheiro ajudou em uma descoberta científica. Será que o ativismo de sofá funciona mesmo?

No começo desse mês, Nicholas Kristof escreveu um editorial no New York Times irritado com as críticas de que esse tipo de campanha é ineficaz e sem sentido. Afinal, cerca de 14 milhões de pessoas participaram do desafio, e a ALS Association diz ter levantado US$ 115 milhões em seis semanas.

Dinheiro não significa que descobertas científicas virão, claro. Mas no começo de agosto, pesquisadores da Universidade John Hopkins (EUA) anunciaram uma potencial terapia revolucionária para ELA. Philip Wong, da universidade, disse à imprensa que “o financiamento [conseguido com o desafio do balde de gelo] certamente facilitou os resultados que obtivemos.” Isso parece ir de acordo com o que Kristof disse, mas será que é tão simples assim? Queríamos saber mais.

A descoberta

Em primeiro lugar, vamos ver qual é essa tal grande descoberta que apareceu na Science. Ela tem como principal personagem uma proteína chamada TDP-43, conhecida por formar aglomerados no interior das células cerebrais da maioria das pessoas com ELA (97%), assim como em 45% dos casos de demência. Mas a função exata dessa proteína, ou quais os efeitos desses aglomerados, eram desconhecidos.

Os pesquisadores descobriram que, em pessoas saudáveis, a TDP-43 protege células garantindo que segmentos defeituosos de RNA não sejam incluídos no “modelo” de produção de outras proteínas. (Como Francis Crick observou: “DNA faz RNA, RNA faz proteínas, e proteínas nos fazem.”) Mas quando esses aglomerados são formados, a TDP-43 não funciona mais como deveria. É como se a proteína não estivesse mais presente e as células não conseguissem mais ler o “modelo”. E sem essa proteção, essas células cerebrais começam a morrer.

A equipe de cientistas conseguiu até salvar algumas células que estavam para morrer ao conectá-las a uma proteína diferente e personalizada para imitar o funcionamento da TDP-43. E deu certo! As células danificadas voltaram ao normal.

“Podemos pela primeira vez fazer essas células zumbis em um lugar que elas não tenham nenhuma TDP-43 mas consigam sobreviver”, disse um dos autores do estudo Jonathan Ling ao Gizmodo. “Ninguém conseguiu fazer isso até agora.” Então agora há um caminho a ser seguido em direção ao desenvolvimento de uma terapia genética eficiente no combate à ELA.

Uma questão de timing

Isso tudo é bem empolgante. Mas podemos realmente apontar uma ligação de causa e efeito direto entre esse estudo e o dinheiro levantado no desafio do balde de gelo? A resposta é um pouco mais sutil do que isso.

Grandes descobertas não acontecem do nada. São meses, anos, algumas vezes até décadas labutando na obscuridade até aquele grande momento do eureka!. O programa de pesquisa da Universidade John Hopkins sobre a TDP-43 já estava em andamento muito antes de o laboratório receber financiamento extra do desafio do balde de gelo. Foi o timing desse financiamento que parece ter feito a diferença, de acordo com as declarações de Wong para a imprensa.

Ling confirmou ao Gizmodo que a grana que o laboratório recebeu do Robert Packard Center for ALS Research “foi de grande ajuda na finalização do estudo, foi ótimo ter aquele dinheiro naquele momento”. (Eles também receberam recursos adicionais da ALS Association relacionados ao desafio depois que o estudo estava completo.) Eles coletaram dados o suficiente para garantir um processo de avaliação de uma revista científica para o projeto, mas isso levaria vários meses. E os colaboradores queriam fazer mais experimentos antes de liberar o artigo científico para ser publicado, o que consome algum dinheiro.

Ling reconheceu que eles poderiam ter dado um jeito para conseguir um pouco mais de financiamento sem o desafio, mas não havia garantia de sucesso, especialmente considerando que diversos cientistas estavam céticos em relação à hipótese deles. Então muito trabalho já tinha sido feito em cima dessa proteína em particular; claro que se tivesse algo muito importante aqui, dizia a razão, alguém já teria encontrado. “Esse é o problema com a ciência”, diz Ling. “Uma vez que as pessoas definem o pensamento, o ônus é seu” de provar o contrário.

A tecnologia usada nesse experimento em particular é chamada RNA-Seq (sequenciamento de RNA), que aumenta a velocidade do processo de sequenciamento de informação genética. Mas essa tecnologia também é ridiculamente cara – e pode demorar alguns meses até que amostras sejam processados porque há uma lista de espera longa para o uso dessas máquinas raras e que custam milhões de dólares. “É um grande risco apostar todas as fichas de uma vez”, diz Ling. “Se você tentar entrar em um experimento de alto risco e alta recompensa, e não der certo, você fica sem dinheiro para fazer o que deveria fazer.”

Então o financiamento adicional pode não ter levado diretamente a essa nova estratégia terapêutica, mas foi esse dinheiro que acelerou o progresso do laboratório, permitindo que eles fizessem um experimento caro que talvez não pudesse ser bancado. Ling estima que eles precisariam de mais dois ou três anos sem essa grana. Não é muita coisa no mundo da ciência, mas é uma eternidade para quem sofre de ELA, que mata a maioria dos pacientes dentro de dois a cinco anos. Então assim podemos dizer que o desafio do balde de gelo foi um sucesso.

Futuro

Por mais empolgante que o resultado do experimento pareça ser, não se trata de uma cura “mágica” para ELA – nem mesmo uma terapia completamente desenvolvida. O experimento foi feito em células cultivadas em laboratório, não em organismos vivos. O próximo passo para os cientistas é testar a proteína que imita a TDP-43 em camundongos. Se funcionar, pode então ser testada em humanos. A boa notícia é que a TDP-43 funciona da mesma forma em humanos e camundongos – e praticamente em qualquer organismo de ordem superior, segundo Ling. Ela só faz as coisas em lugares diferentes.

“Apesar dela estar em 97% dos pacientes, ainda não sabemos se é a causa ou apenas um mero sintoma da doença,” explicou Ling. “O que sabemos é que se você remover a TDP-43 de um neurônio, esse neurônio morre. Talvez estejamos apenas desacelerando as coisas.” A única maneira de saber com certeza é realizando um ensaio clínico. E ensaios clínicos são caros.

Talvez seja a hora de jogar de novo baldes de gelo na cabeça.

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