A primeira “menstruação” em placa de petri pode revolucionar a medicina reprodutiva

Cientistas esperam poder dar um entendimento mais detalhado do sistema reprodutivo feminino e de doenças que o assolam

O ciclo menstrual feminino é um rito de passagem para a vida adulta que por séculos tem sido envolto em mistério e tabu. Plínio, o Velho, por exemplo, acreditava que o sangue menstrual podia tornar a terra infértil. No século passado, um cientista defendeu uma teoria que o sangue menstrual continha um veneno que fazia as mulheres transformarem vinho em vinagre. Não vamos nem comentar os rumores que um sapo queimado podem melhorar um fluxo forte.

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Agora, que já imaginamos ter tirado toda a mística do ciclo feminino de uma vez por todas, os cientistas da Northwestern University usaram culturas de tecido para criar um modelo 3D em miniatura do trato reprodutivo feminino: ovários, trompas de falópio e outros órgãos reprodutivos, conectados para imitar as funções de um ciclo menstrual de 28 dias. Essa simulação da sexualidade feminina, descrita em uma pesquisa publicada na Nature Communications, está envolta em plástico e não é muito maior do que um iPhone Plus.

O modelo é, essencialmente, uma menstruação em uma placa de petri. E os cientistas esperam que possam dar um entendimento mais detalhado do sistema reprodutivo feminino e de doenças que o assolam, assim como eventualmente pavimentar o caminho para tratamentos personalizados projetados para refletir a biologia individual de cada mulher.

“Isso é muito empolgante”, disse Christos Coutifaris, presidente da American Society of Reproductive Medicine e que não está associado à pesquisa. “A curto prazo, pode nos permitir entender muito sobre a variabilidade do corpo de cada pessoa. A longo prazo, é um passo em direção à medicina individualizada.”

Essa menstruação em placa de petri não é a primeira tentativa de modelar os órgãos do corpo humano em miniatura usando culturas celulares. Foi parte de um esforço mais amplo liderado pelo National Institute of Health para recriar o corpo humano inteiro em um “chip”.

Para cada segredo que a ciência revelou sobre a nossa biologia, existem centenas de outros desconhecidos. Testar drogas em animais ou células humanas em uma placa de petri pode apenas nos dizer um pouco sobre como essas drogas agem no corpo humano de fato, e órgãos de verdade são muito preciosos como transplantes para serem usados em experimentos. É aí que os “órgãos em chip” entram. Ao replicar muitas das funções dos órgãos humanos em miniatura, em microchips, os cientistas podem, em teoria, observar mais precisamente o que acontece nesses órgãos quando expostos a diferentes drogas e condições ambientais.

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Um time-lapse do sistema da menstruação em um chip (Imagem: Northwestern)

Lá em 2010, um cientista do Wyss Institute em Harvard desenvolveu o primeiro órgão em um chip, um pulmão. Desde então, os cientistas têm feito com sucesso pequenos modelos do pulmão, fígado, rins, coração, artéria, medula óssea e córnea. Em cada caso, pequenos tubos microfluídicos são revestidos de células retiradas do órgão em questão e organizados dentro do chip para imitar algumas das funções-chave daqueles órgãos. Quando nutrientes, drogas, bactérias ou outros materiais de teste correm através dos tubos do chip, os cientistas conseguem observar atentamente como processos celulares específicos respondem. Em 2015, por exemplo, cientistas da Universidade Estadual de Michigan usaram um chip para modelar como células endócrinas secretam hormônios na corrente sanguínea para testar um remédio de diabetes.

Órgãos em chips têm recentemente ganhado maior atenção. Em 2014, o NIH forneceu US$ 17 milhões para o programa Tissue Chip for Drug Screening para 11 instituições diferentes, uma segunda onda de concessões depois de financiar 19 outras organizações de pesquisa para fazer pesquisa com chips de tecidos em 2012. A DARPA tem seu próprio programa de chips de tecido. Cada vez mais, companhias de medicamentos estão usando os chips de tecido para testar novas drogas.

O problema com o órgão em um chip, no entanto, é que ele apenas permite aos pesquisadores observarem um órgão por vez, ao invés de um sistema fisiológico completo. A menstruação em um chip é o próximo passo. Ele permite aos pesquisadores observarem como diferentes estímulos impactam não apenas os ovários ou útero, mas o sistema reprodutivo inteiro de uma vez.

“Nosso maior desafio foi de certa forma apenas construir a tecnologia”, disse Teresa Woodruff, a investigadora líder e diretora do Women’s Health Research Institute na Northwestern. “Não podemos modelar tudo que acontece em um sistema reprodutivo em um único chip. Essa é uma nova forma de observar a função celular.”

A menstruação em placa de petri, chamada Evatar, parece mais um triste conjunto de peças de Lego do que uma coisa distintamente biológica. Cada “órgão” ocupa seu próprio cubo amarronzado, ligado por tubos que circulam o fluido entre eles. Folículos de ovário criados em cultura produziram os hormônios nesse sistema sintético para regular as funções do tecido no decorrer de um ciclo de 28 dias, fazendo os fluidos se moverem através dos órgãos. Um dos maiores empecilhos foi desenhar um meio que pudesse fluir através de todos os componentes desse sistema, agindo como o sangue age no corpo.

“O nosso corpo é composto de muitas células diferentes, e todas essas células estão se comunicando”, Woodruff disse ao Gizmodo. “Nós estamos basicamente modelando isso. Não é um órgão exato, mas é uma boa cópia de um órgão.”

A esperança é que esse trabalho permita aos pesquisadores fazer muito mais do que apenas testar novas drogas eficientemente, apesar dessa ser uma parte importante do trabalho. No estudo, pesquisadores detalharam a criação de um modelo usando culturas de célula de rato, mas em um futuro não muito distante a mesma abordagem pode ser usada para criar modelos de várias doenças reprodutivas humanas para melhor estudá-las. Pode também permitir aos pesquisadores estudar diferenças entre indivíduos no nível funcional, um dia levando a terapias personalizadas.

“A importância disso é que nem todo mundo é o mesmo”, Coutifari, do ASRM, disse. “Nós não somos uma estirpe específica de ratos onde cada rato reage da mesma maneira a uma droga, ou a um hormônio, o que seja. O próximo passo é entender as diferenças de mulher pra mulher e como elas podem responder a coisas como drogas.”

Por que, por exemplo, uma combinação de drogas resulta em uma fertilização in vitro para uma mulher e para outra não? Por que certas mulheres são mais suscetíveis ao câncer nos ovários? Que controle natal é o certo para você? Os cientistas não oferecem muito mais do que estimativas para essas questões. Órgãos em um chip podem ao menos conseguir oferecer um pouco mais de dados onde basear essas decisões. Usando as células-tronco de uma mulher, por exemplo, um médico pode um dia criar um modelo personalizado de seu sistema reprodutivo, testar várias drogas drogas de fertilidade diferentes no modelo e, desses testes, escolher a droga que mais provavelmente resultaria em óvulos férteis, possivelmente a poupando tempo, dinheiro e estresse emocional de várias rodadas de fertilização in vitro.

Woodruff disse que o próximo passo é melhorar o modelo do sistema reprodutivo feminino e desenvolver uma versão masculina. Eventualmente, muitos desses chips podem ser usados em conjunto para entender como uma droga, por exemplo, pode impactar todos os sistemas do corpo de uma pessoa.

Coutifaris advertiu sobre isso por agora, esses avanços são mais úteis para a pesquisa. Criar tratamentos personalizados com medicamentos usando órgãos em miniatura feitos sob medida em um chip, ele disse, ainda está bem distante.

“É importante sermos cuidadosos com as expectativas. Ainda há muito trabalho a ser feito aqui”, ele disse. “Mas apesar dessas coisas serem distantes do presente, nós precisamos sonhar.”

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