Opinião: A Folha segue encontrando novos limites éticos para o jornalismo –e arrebentando eles

Uma análise sobre o racismo sofrido pelos filhos negros de um casal brasileiro e a cobertura da imprensa
racismo
Imagem: Markus Spiske/Unsplash

É bastante provável que a esta altura a notícia do racismo sofrido pelos filhos negros de um casal brasileiro famoso tenha chegado a seu alcance –não vamos citar o nome deles aqui porque pouco importa, mas também porque, como observou a escritora Tatiana Nascimento,  junto com eles estava uma família angolana cujo nome até aqui foi ignorado, e que eu não sei qual é, portanto ignoraremos todos os nomes. A mãe em questão,  uma mulher branca, chamou às vias de fato (também conhecido como “encheu de  tapa”) a racista, que foi presa mas obviamente já foi liberada e disse que estava “embriagada”.

Parece inevitável que todos os veículos de imprensa busquem uma maneira de “participar” da história. É disso que temos todos vivido nos últimos anos, tentar participar das histórias ao mesmo tempo em que, pelo menos os sérios, tentamos também criar outras histórias. Este Gizmodo, por exemplo, falou nos últimos dias sobre atletas de vôlei que estão hitando nas redes, sobre Will Smith e Chris Rock, e não falou do episódio –mas poderia ter falado, na medida em que o assunto tivesse a ver com o que a gente cobre e que fosse do interesse do nosso público. É assim, e não tem nada de errado com isso. As pessoas escolhem sobre que assuntos querem ler, e a gente acha coisas que tenham a ver com o que elas querem ler e com o que a gente sabe falar.

O episódio, também infelizmente obviamente, começou a degringolar no domingo para análises profundas como um pires sobre o privilégio do casal, que é branco, mas este é assunto para um texto futuro. Neste começo de madrugada de segunda, as “suítes”, as sequências da história, o que os jornais vão fazer para manter o assunto vivo e dando audiência, são o casal falando, o que aconteceu com a mulher, outros casos de racismo em Portugal, enfim, vão ordenhar o assunto até onde der –e também está tudo certo, eu acho uma merda mas eu sou um leitor só e qualquer jornal seria idiota de se preocupar comigo e não com 100 milhões de pessoas que querem ler esse tipo de merda. (Antes que me acusem de elitismo: eu também gosto das minhas merdas, só são outras merdas.)

A Folha, porém, segue em sua perseguição incessante aos limites éticos e lógicos do jornalismo, e nós temos que tirar o chapéu pra ela. Se não por outro motivo, pelo simples fato de que estamos falando dela de novo –eu que não assino mais o jornal, e que agora parei também de seguir no Twitter, estou aqui repercutindo a Folha, que é exatamente o que parece ser a única coisa que importa atualmente para seus donos e gestores. Se não me engano, aliás, uma boa parte dos meus últimos textos antes deste longo hiato foi sobre a Folha (malditos).

Pois bem: é domingo, um dia depois do episódio, e a Folha tuíta: “Cantor Fulano duvida que filhos de Giovana sofreram racismo”, e aqui estamos chamando o cantor de Fulano só pra não chamar de Zé Bosta, que é o que o cara de fato é. Se algum dia foi famoso, eu não me lembro, e eu sou velho e tenho boa memória –eu me lembro de Nahim e Gilliard, se você tem mais de 45 anos entenderá o que eu quero dizer. Tanto faz, porém, mais uma vez parece óbvio. Se fosse um sujeito eliminado na primeira rodada de um reality show da Gazeta falando, a Folha publicaria, porque pouco importa quem disse, o que importa é que o que foi dito vai gerar revolta, repercussão, xingamentos e, portanto, audiência. Temos, de um lado, um fato incontestável, ou pelo menos incontestado por qualquer pessoa que tenha relação com o fato: uma mãe que viu seus filhos sofrerem racismo e reagiu a isto. De outro, um sujeito que ninguém sabe quem é, não estava presente no local dos fatos e, até onde se sabe, não tem qualquer relação com eles. Por que alguém publicaria o que esse sujeito tem a dizer sobre o assunto? Por que o maior jornal do Brasil publicaria? Foge à minha compreensão e até mesmo à minha capacidade imaginativa.

O Grupo Folha é dono do UOL (do qual, como se sabe, o Giz é parceiro), que durante muitos anos tinha um negócio no Esporte chamado “Belas da Torcida”. Era uma maneira de gerar audiência para Esporte com fotos de mulheres seminuas. Ninguém parecia ter muito problema com isto. Era condenável e discutível, mas tinha uma lógica, ainda que tosca, e eram outros tempos, em que se experimentava de tudo porque se sabia quase nada – antes que alguém se confunda, não estou defendendo, era tosco e misógino, apenas era possível identificar de onde vinha. O atual momento da Folha lembra aquele, mas só de leve. Primeiro porque hoje tudo é feito com base em dados e estatística, não tem mais tentativa e erro. Mas principalmente porque a Folha não é o UOL. O UOL produz (excelente) jornalismo, mas não é um veículo exclusivamente jornalístico, e se o Esporte naquela época cometeu algum erro esse erro foi tratar seu produto como entretenimento, e não como jornalismo. A Folha é um jornal, não é um portal. O que não parece mais fazer qualquer diferença.

A notícia sobre o cantor Zé Bosta é inacreditável por uma série de motivos, e a irrelevância do cantor e de sua opinião é só o primeiro, e menor. Porque se Zé Bosta se solidarizasse com o casal e dissesse que já sofreu preconceito por ser loiro ele seria apenas um idiota. No momento, porém, em que dá voz a um zé bosta que diz “duvidar” do relato de uma mãe que diz que seus filhos sofreram racismo, a Folha simplesmente abre a tampa do esgoto e manda entrar o cocô todo. Racistas, bolsonaristas, celibatários, a renca toda de rejeitados pela sociedade monta em cima e vai. Para deleite da Folha, que ganha alguns centavos com cada “repercussão” do tema.

O jornalismo morre aos poucos, e a Folha esfaqueia ele todos os dias ao misturar coisas que não se misturam e arrebentar limites que não podem ser arrebentados em nome de um sucesso efêmero e que corrói seu único ativo, sua reputação. Enquanto isto, aliás, o Estadão revela os podres do governo Bolsonaro. Um jornal, assim como uma escola ou um hospital, não é apenas um negócio que tem que dar dinheiro, e isto não envolve só aspectos morais e de função social, envolve também a lógica de negócios: não tem como dar tanto dinheiro!

Parece que a nova gestão da Folha está empenhada em descaralhar a porra toda, botar fogo nos antigos ídolos e ainda cagar na cortina.

Otavio deve ter sacaneado muito Luís pra ele estar fazendo isso, é a única explicação que eu consigo enxergar.

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Retomo com este texto minha colaboração quinzenal com o Giz, do qual também sou Diretor Editorial. Escrevo sobre mídia e posso ser encontrado no caiojatinha@gmail.com.

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Caio Maia

Caio Maia

Caio Maia é o publisher da F451 e do GizBr. Escreve a cada duas semanas sobre mídia, e quando os editores deixam escreve sobre outras coisas também. Passou pela Folha e depois fez Trivela, revistas ESPN e Sustenta! e uma lista longa de blogs, sites e podcasts.

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