As autoridades deveriam permitir que você venda seu rim?

Atualmente, existem 96.559 candidatos na lista de espera de um transplante de rim nos Estados Unidos. Nas grandes cidades, a espera média é de cinco a dez anos. Para aqueles na lista, existem poucas opções para sair dela. Eles poderiam receber uma doação de rim de um parente ou um amigo. Internacionalmente, alguns optaram por […]

Atualmente, existem 96.559 candidatos na lista de espera de um transplante de rim nos Estados Unidos. Nas grandes cidades, a espera média é de cinco a dez anos. Para aqueles na lista, existem poucas opções para sair dela. Eles poderiam receber uma doação de rim de um parente ou um amigo. Internacionalmente, alguns optaram por uma rota mais sombria. Em 2012, a Organização Mundial de Saúde relatou um aumento de pessoas que fazem “tours de transplante” para países como China, Paquistão ou Índia para realizar operações muitas vezes mal reguladas ou ilegais (atualmente, o Irã é o único país onde é legal vender seus órgãos, mas não para estrangeiros). A OMS estima dez mil operações envolvendo órgãos de “mercado negro” por ano.

Os números são nebulosos, mas um estudo de 2009 na Universidade da Califórnia mostrou que, de 33 turistas de transplante, 17 retornaram com infecções, e nove tiveram de ser hospitalizados. Há muitas histórias de horror de tráfico de órgãos: na China, uma suspeita de roubo de órgãos dos olhos de um jovem garoto, trabalhadores imigrantes sendo prometidos “um novo iPad!” por um rim, e a já conhecida, e desde então ilegal, prática da suposta colheita de órgãos de prisioneiros.

Mas existem novas alternativas raras a médicos incentivando doações altruístas. Uma ideia promissora é o novo programa de vales da UCLA “pegue um rim, deixe um rim”. Ele resolve o problema que os médicos estão chamando de “incompatibilidade cronológica” – amigos e familiares que estariam dispostos a fornecer rins para parentes que possam não precisar de um até depois do doador estar morto ou disponível para doar. Agora, eles podem pagar seus rins antes e obter um vale para o seu destinatário, que será capaz de pular de lugar na lista de transplante. Até agora, o programa tem estimulado pelo menos 25 doações. No entanto, 25 doações é pouco quando se considera que 13 americanos morrem todos os dias à espera de um rim, de acordo com a National Kidney Foundation.

Em um mundo perfeito, todo mundo vai para um lugar como a UCLA e consegue um excelente atendimento, junto com um parente ou amigo generoso e saudável. Mas este não é um mundo perfeito. E com o tráfico ilegal de órgãos, um comércio de órgãos descriminalizado e regulamentado em todo o mundo ainda provavelmente exploraria pessoas economicamente desfavorecidas. Tudo isso considerado, podemos ser autorizados a colocar nossos rins no Mercado Livre? Nesta semana no Giz Asks, conversamos com bioeticistas, médicos discordantes e a Organização Mundial de Saúde sobre suas opiniões.

Carolyn Neuhaus, Ph.D.

Pesquisadora no The Hastings Center (um instituto de pesquisa bioética)

Há um argumento de que as pessoas já são oprimidas e vão vender seus rins independentemente dos regulamentos. Então, legalizar a venda renal pode, pelo menos, dar-lhes proteção legal e melhores cuidados de saúde. Você acha que a legalização de venda de rins iria, no final, criar proteções gerais melhores e resultados de saúde?

Eu vejo prós e contras em ambos os lados, o que me deixa desconfortável em tomar uma posição dura. Há uma grande área cinza aqui, e não deve ser uma decisão fácil.

Existe uma grande quantidade de evidências de que a criação de um mercado legítimo, com regras e regulamentos, serviria para proteger as pessoas que já estão inclinadas a vender seus órgãos. Eu aprecio esse argumento, mas acho que existem outras maneiras de aumentar a oferta de órgãos que não exploramos totalmente. Por exemplo, através de uma melhor preservação dos corpos de pessoas que morrem em acidentes de carro e são doadoras de órgãos, mas não são elegíveis devido ao tempo até levá-las para o hospital. Há também pesquisas sobre tecido regenerado, mas é tudo muito especulativo e distante e não vai acontecer hoje.

Mas, ainda assim, eu sou mais a favor de trabalhar fora dessas soluções. Eu acho que nós precisamos trabalhar essas questões antes de seguir em frente (com a venda de rins).

É mais difícil defender essa posição para alguém que vai morrer?

Isso é muito difícil de fazer, e eu quero apoiar as pessoas que estão em situações muito dolorosas. Mas temos que reconhecer que a compra de um órgão no mercado negro vem com riscos de saúde para outras pessoas, assim como contribui para um sistema que também está servindo para prejudicar as pessoas. [Um sistema] que é grande é a rede de partilha. Por exemplo, meu irmão precisa de um rim, e eu não sou uma combinação, mas você pode entrar em uma rede e gostaria de doar para alguém. Eu acho que olhar para formas alternativas de doar aos entes queridos ou para pessoas que já morreram pode ser algo subutilizado. Imagino que a conversa deva surgir sempre que alguém entra na lista de transplante. Mas eu não estou a par dessas conversas.

Qual é o dilema moral quando você considera que barriga de aluguel pode ser tão perigosa quanto a doação de um rim?

A questão conceitual que vale a pena ser pensada é: “até que ponto carregar um bebê é diferente de doar um rim?”. Os riscos são os mesmos, quais são os efeitos psicológicos, quais são os riscos no final das contas?

A relação moral entre o bebê e os pais contra a relação moral [entre os doadores]… até que ponto ela é ou deveria [a doação de rim] ser vista como uma relação moral, contra um relacionamento transacional entre os vendedores e os participantes?

Tarik Jašarević

Relacionamento de Mídia, Organização Mundial da Saúde

Citando os “Princípios Orientadores da OMS sobre Célula humana, Tecidos e Transplante de Órgãos” endossados pela sexagésima terceira Assembleia Mundial da Saúde na resolução WHA63.22, em 21 de maio de 2010:

Células, tecidos e órgãos só devem ser doados livremente, sem qualquer pagamento em dinheiro ou outra recompensa de valor monetário. A compra, ou uma oferta para comprar células, tecidos ou órgãos para transplante, ou a sua venda por pessoas vivas ou parentes próximos para pessoas falecidas, deve ser proibida.

A proibição de venda ou compra de células, tecidos e órgãos não impede reembolso das despesas razoáveis e verificáveis incorridos pelo doador, incluindo perda de renda, ou pagar os custos da recuperação, processamento, preservação e fornecimento de células humanas, tecidos ou órgãos para transplante.

Comentário de Jašarević:

Pagar por células, tecidos e órgãos é susceptível de levar vantagem injusta sobre os grupos mais pobres e vulneráveis, vai contra a doação altruísta e leva à especulação e ao tráfico de seres humanos. Tal pagamento transmite a ideia de que algumas pessoas não têm dignidade, que são meros objetos a serem utilizados por outros.

Além de prevenir o tráfico de materiais humanos, esse princípio visa afirmar o mérito especial de doação de materiais humanos para salvar e melhorar a vida. No entanto, isso permite circunstâncias em que é habitual proporcionar a doadores sinais de reconhecimento aos quais não pode ser atribuído um valor em termos monetários. A legislação nacional deve assegurar que quaisquer presentes ou recompensas não sejam, de fato, formas disfarçadas de pagamento para as células doadas, tecidos ou órgãos. Incentivos sob a forma de “recompensas” com valor monetário que podem ser transferidos a terceiros não são diferentes de pagamentos monetários.

Enquanto os piores abusos envolvem doadores vivos de órgãos, perigos também surgem quando os pagamentos para as células, tecidos e órgãos são feitos para familiares de pessoas falecidas, a vendedores ou negociantes ou para instituições (como necrotérios) responsáveis pelos cadáveres. O retorno financeiro deve ser proibido a essas entidades.

Esse princípio permite compensações dos custos de fazer as doações (incluindo despesas médicas e perda de rendimentos para os doadores vivos), a não ser que eles funcionem como um desincentivo à doação. A necessidade de cobrir os custos legítimos de aquisição e de garantir a segurança, qualidade e eficácia de produtos e órgãos para transplante humano de células e tecidos também é aceito, desde que o corpo humano e suas partes, enquanto tais, não se tornem uma fonte de lucro.

Incentivos que abrangem itens essenciais que os doadores de outra forma seriam incapazes de pagar, tais como cuidados médicos ou cobertura de seguro de saúde, levantam preocupações. Acesso ao mais alto nível possível de saúde é um direito fundamental, não algo a ser comprado em troca de partes do corpo. No entanto, avaliações médicas periódicas livres relacionadas à doação e seguro de vida ou de complicações que surjam a partir da doação podem legitimamente ser fornecidos para doadores vivos.

As autoridades de saúde devem promover a doação motivada pela necessidade do recebedor e para o benefício para a comunidade. Quaisquer medidas de incentivo à doação devem respeitar a dignidade do doador e promover o reconhecimento social da natureza altruísta da doação de células, tecidos e órgãos. Em qualquer caso, todas as práticas para incentivar a obtenção de células, tecidos e órgãos para transplante devem ser definidas explicitamente pelas autoridades de saúde, de forma transparente.

Quadros jurídicos nacionais devem abordar circunstâncias particulares de cada país, porque os riscos para doadores e receptores variam. Cada jurisdição irá determinar os detalhes e método das proibições que vai usar, incluindo sanções, que podem abranger uma ação conjunta com outros países da região. A proibição de pagamento de células, tecidos e órgãos deve se aplicar a todos os indivíduos, incluindo pacientes transplantados que tentam burlar regulamentações domésticas ao viajar para locais onde proibições de comercialização não são aplicadas.

Dr. Gabriel Danovitch

Diretor médico e integrante do programa de transplante de pâncreas e rins na Escola de MedicinaDavid Geffen, na Universidade da Califórnia em Los Angeles e um dos arquitetos da Declaração de Istambul, uma declaração de princípios contra a venda de órgãos formada pela Sociedade de Transplantes e endossada por cem organizações de 78 países

Há muitas razões (pelas quais você não pode vender seu rim).

Você está dando uma parte do seu corpo. Você não precisa ser um médico para imaginar que, se você estava tão desesperado que você teve que vender seu rim, você iria se sentir bem sobre si mesmo? A medicina não é mecânica. Nós somos seres humanos, ela serve para melhorar a vida das pessoas, não deixá-la pior.

Em nenhum lugar do mundo existem programas robustos altruístas em acordo com a doação paga. É por isso que o Irã está tentando parar o seu programa. Parentes não estavam doando. Se eu precisasse de um rim e um dos meus filhos me oferecesse um rim, eu provavelmente iria chorar, dar um abraço e aceitá-lo. Mas eu consigo imaginar uma situação em que, se eu não quero fazer meus filhos passarem por isso, preferiria comprar um.

Se você está doando um rim, é necessária uma relação de confiança entre o médico e o doador. Eu preciso saber as coisas. Se eu estou dando ao meu filho ou à minha esposa, não vou mentir sobre minha saúde, porque eu não quero causar danos à minha esposa. O doador não se importa comigo, ele só quer receber o dinheiro.

O que precisamos fazer é tornar mais fácil para os doadores altruístas doarem. Remover obstáculos, pagar despesas, voos, despesas ocasionais, refeições, hotel, ter um tempo fora do trabalho. Há menos doações dos pobres do que dos ricos, porque é simplesmente mais difícil para eles.

Qualquer tentativa de regular um mercado, por definição, é não regular. Mercados não gostam de regulamentos. Digamos que fossemos permitir um mercado regulamentado, e um doador fosse receber US$ 30 mil. Estou apenas chutando isso. Por que Cingapura não diria que você pode conseguir 50? Em Doha, você pode conseguir 80? E por que os doadores não iriam ao redor do mundo para conseguir o melhor preço? Se nós fizéssemos isso nos Estados Unidos, seria um desastre.

Eu tenho trabalhado nos últimos 11 anos na Declaração de Istambul para proteger os direitos e a saúde dos dadores renais potenciais. É “dois passos para frente, um passo para trás”, mas as coisas estão melhores agora do que eram há uma década. A ideia de que somos responsáveis por proteger a saúde do doador é aquela que é universalmente aceita.

Tem havido um progresso claro na China. Não sabemos tudo o que está acontecendo lá, mas sabemos que eles estão em um caminho melhor. Estrangeiros costumavam fazer filas para receber doações. Eram nojentos, os crimes contra a humanidade. Eles não estão se acumulando mais lá. China e Filipinas têm basicamente fechado e melhorado, as coisas ficaram muito melhores na Índia e Israel, mas agora o Egito é o principal centro. Esse é o “dois passos para frente, um passo para trás”. Mas a imprensa ajuda a constranger países.

Dr. Arthur Matas

Professor de Cirurgia e diretor do Programa de Transplante Renal da Universidade de Minnesota, Minneapolis (Dr. Matas não defende diretamente a venda de rins, mas, sim, incentivos como reduções fiscais, matrículas na faculdade ou formação profissional, assim como o reembolso de salários perdidos e cuidados de saúde)

(O Dr. Danovitch) e eu somos amigos. Tivemos muitos debates públicos sobre essa questão. Já passamos por isso juntos um milhão de vezes.

Não há dados que confirmem que a doação caia (quando a venda de rins é legalizada)… E eu diria que, se o número total de doações sobe, quem se importa? Talvez você esteja eliminando algumas das pessoas que se sentem pressionadas a doar porque não há outra escolha. É por isso que eu sempre defendo que precisamos fazer um teste para descobrir algumas dessas coisas; se o número total de doações cai, em seguida, a resposta é clara. Mas e se o número total de doações de cônjuges e parentes caiu 10% e o número total de doações subiu 300%, será que isso importa?

O negócio de não cuidar de sua saúde… Eu não aceito isso. Nós fazemos um exame psicossocial e médico extraordinariamente detalhado sobre todas as nossas avaliações de doadores. Se você aplicar os mesmos padrões para os doadores incentivados, não haveria uma diferença. Gabe diria: “bem, as pessoas vão mentir”. Bem, as pessoas podem mentir hoje, por quererem tanto poder doar para o seu irmão.

Sessenta mil pessoas foram retiradas da lista de espera nos últimos dez anos, porque morreram ou ficaram demasiadamente doentes para o transplante [nota do autor: O Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos coloca esse número em 76.632 ao contar 2007-2017].

Estamos todos de acordo que os sistemas não regulados falharam, que é o turismo de transplante. Isso porque há um negociante, um homem intermediário que está obtendo lucro e abusando tanto do vendedor quanto do destinatário. Estou falando de um sistema regulamentado em que o governo fornece o incentivo, e as normas para a aceitação de um doador são exatamente as mesmas como elas são para os nossos doadores de hoje, e o rim vai para o paciente no topo da lista de espera. Então, não é o rico comprando o rim do pobre – o rim simplesmente vai para quem estiver no topo da lista. Por acaso, a maioria dos transplantes renais é para pessoas pobres, não pessoas ricas. [Devido à diabetes] e a pobres cuidados de saúde, acesso a cuidados e hipertensão. Se não é bem tratado, pode causar insuficiência renal.

Você poderia argumentar que as pessoas vão fazer isso de qualquer maneira, então elas deveriam se beneficiar recebendo cuidados de saúde e proteções legais. Você encontra uma disparidade nas diferentes esferas sociais em que essa questão é discutida?

Bem, não, mas a maioria das minhas conversas é com grupos médicos ou estudantes, mas você sabe… afinal de contas, nós apoiamos barrigas de aluguel e permitimos incentivos para óvulos, esperma e partes do corpo. Nós já praticamos isso neste país e em outros… O risco de carregar um bebê de nove meses não é menor do que ser um doador de rim. Eu não medi isso exatamente, mas o risco de ser um doador de rim em um grupo altamente seletivo de pessoas saudáveis é pequeno. Não é zero, mas é pequeno.

Dr. Jeffrey Veale

Diretor do Programa de Transplante de Rim da UCLA e cofundador da “cadeia”, o programa “pegue um rim, deixe um rim”

Parece uma daquelas coisas de que o dinheiro não deve fazer parte.

Vi dois pacientes de turismo de transplante, e não é bom. Eles receberam tratamentos ruins, uma senhora voltou e morreu. Posso dizer, não é o caminho a seguir. E se você como médico tinha um [potencial] doador de rim com uma pedra nos rins ou pressão arterial elevada, você pode ser tentado a dizer que sim se você sabe que eles realmente precisavam do dinheiro.

Existem 15 milhões de pessoas com problemas renais crônicos, e elas podem ter um doador disposto agora, mas por causa da gravidez ou da inevitável morte, pode não ser capaz de conseguir um. Eu vejo isso o tempo todo, pessoas estão dispostas a doar, mas não são compatíveis. Eu vi um marido que queria doar à sua esposa, mas não é compatível – agora, ele pode fazê-lo como parte do um programa de troca. Em outro caso, vi duas irmãs que se amavam muito; uma irmã parecia que não ia durar na diálise nem cinco anos, e a outra estava disposta a doar, mas provavelmente não seria capaz em cinco anos por causa da gravidez e porque ela estava se mudando para outro país. Nós temos que entrar na mentalidade de que as pessoas são simplesmente cronologicamente incompatíveis.

Acho que podemos ser capazes de ganhar esse jogo. Na verdade, a lista de espera está diminuindo – eu não consigo me lembrar da lista de espera diminuindo antes, desde que eu comecei a trabalhar neste campo.

Imagem: Elena Scotti/Gizmodo/GMG

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