A breve história das trilhas sonoras no cinema – e como elas podem te manipular

Aquilo que você escuta em frente às telonas também está carregado de sentido. Dos musicais da década de 1930 aos blockbusters da Marvel, entenda como trilhas podem mexer com quem assiste.

Trilha sonoras são nada além do que a aplicação da música e dos sons na construção de uma história — independente de ser no cinema, teatro ou TV. No primeiro caso, temos o áudio como parte ainda mais essencial da experiência. Afinal, pouco adianta ter uma tela gigante sem um som parrudo, certo?

A tecnologia mudou constantemente no século dos filmes projetados, é verdade. Mas a filosofia quase sempre foi a mesma: o áudio casa com a imagem e serve para te transportar para dentro daquela cena, seja em um roteiro de comédia, ação, aventura, terror ou um musical.

Em entrevista ao Bitniks, Dan Golding, compositor e professor da Universidade de Tecnologia de Swinburne, na Austrália, diz que música e a imagem são experiências complementares. “A música geralmente não acrescenta nada que não seja contado pela imagem. Mas ainda é importante por moldar o significado das coisas ao público”.

Ele compara dois tipos de música em um mesmo cenário. Primeiro, basta imaginarmos a cena de uma praia repleta de turistas. Se colocarmos a trilha de um violão tocando, a cena pode ter um tom relaxante e divertido. Do contrário, ao colocar o tema do filme Tubarão, a cena muda completamente. “Ambas as possibilidades estão na imagem (terror e tranquilidade), mas é a música que dita ‘o que’ você está olhando”, conta.

“O básico da música é a experiência musical. Seja como espectador de filme, seja na dança, a música sempre vai afetar a gente”, opina Graziela Bortz, professora de análise, teoria e percepção musical da Unesp (Universidade Estadual Paulista). “Independentemente da minha formação [enquanto indivíduo], há filmes que me pegam pela emoção, pois a música intensifica algumas cenas”. Em nossa conversa, a especialista explica a ótica de um musicista sobre o áudio do cinema. Porém, antes, é necessário voltarmos à raiz da sétima arte.

O papel das primeiras trilhas

De início, a aplicação da música nos filmes ficava restrita às trilhas musicais, posteriormente dando lugar para a mistura com as vozes. Elas eram tratadas com a mesma estética. Quando não havia diálogo, a música preenchia o buraco.

A apreciação alternativa de uma cena, guiada pelo áudio, não existia um século atrás, quando Thomas Edison decidiu sincronizar a exibição de imagens ao áudio de um fonógrafo. Na época, parte dos espectadores argumentavam que a voz pudesse nem sempre ser o foco da narrativa, já que isso poderia acarretar em uma “teatralização” do filme. Por que ir ao cinema se eles podiam ter uma experiência equivalente, com pessoas reais, no teatro?

The Broadway Melody, o primeiro grande musical falado (Reprodução/Variety)

Em meio a isso, há o nascimento do cinema com música, que levaria a filmes como O Nascimento de uma Nação, drama americano da Guerra Civil, até The Broadway Melody de 1929, o primeiro grande musical falado. Entre os anos 1930 e 1960, Hollywood viu o crescimento dos musicais, período que é tratado como a Era de Ouro. À época, Carmen Miranda, Frank Sinatra, Fred Astaire e Judy Garland estavam no auge de suas carreiras nas telonas.

Dan Golding conta que os “gêneros musicais do cinema” foram formados, em paralelo aos filmes musicais, nesse mesmo período. A origem dos clichês de terror, por exemplo, pode ser notada em A Noiva de Frankenstein, de 1935. Em meados dos anos 1960, tivemos mais exemplos criativos. 007 contra o Satânico Dr. No, o primeiro de James Bond, utilizou a canção do grupo The John Barry Seven – nossa referência atual para filmes de espião.

Na época, os filmes western (velho-oeste) também evocavam o espírito aventureiro. A Conquista do Oeste é um primeiro grande exemplo, mas você provavelmente vai se lembrar mais do tema de Três Homens em Conflito, que veio quatro anos depois:

Criatividade e reciclagem

Por incrível que pareça, foi somente em 1970 que surgiu o primeiro cargo oficial de “fazedor” de trilhas. Walter Murch precisou pensar na captação, edição e mixagem para o filme de ficção científica THX 1138. Quando trabalhou em O Poderoso Chefão, dois anos depois, começou a tratar o áudio como um complemento à imagem. Esse olhar está por trás da criação da inconfundível valsa que é assinatura do filme, e que, depois, viraria sinônimo da máfia e do contraste entre italianos e norte-americanos.

A supervisão de Murch serviu para guiar as composições do italiano Nino Rota. Trabalhos de forte vínculo entre criadores começariam a se firmar neste período, principalmente entre diretores e compositores.

Antes de Christopher Nolan ter seus filmes de ficção científica dos anos 2000/2010 temperados pela música de Hans Zimmer, outra parceria memorável da sétima arte é entre Steven Spielberg e John Williams. A dupla começou no primeiro filme de Spielberg, Louca Escapada, mas só ficou mais evidente na melodia de Contatos Imediatos do Terceiro Grau:

Williams, então, viria a criar algumas das trilhas mais memoráveis do cinema com o diretor: os temas de E.T. O ExtraterrestreJurassic ParkLista de SchindlerIndiana Jones e o já citado Tubarão são alguns exemplos. Depois disso, ele viria a trabalhar com outros cineastas (inclusive com George Lucas, introduzido pelo amigo Spielberg) e faria as músicas de Esqueceram de MimStar WarsSupermanHarry Potter e dezenas de outros títulos e franquias.

O inventor de temas tão populares merece todo o prestígio por sua criatividade, mas poucos fazem a associação com clichês subconscientes que dependem exclusivamente de nossa formação cultural. John Williams reaproveitou muitos padrões de música clássica e de outros compositores para o cinema, de gerações antes dele.

Voltando aos clichês, nada impressiona pegarmos Tchaikovsky no balé Quebra-Nozes, em 1892, e associarmos ao Natal ou à magia. O mesmo instrumento foi utilizado no tema de Harry Potter, escolha consciente de Williams, e Esqueceram de Mim virou um clássico natalino em parte por seu tema. Em outros filmes, como Em Cada Coração um Pecado, vemos a coragem impressa na abertura de Star Wars.

“Quando chegamos na década de 1970 (o que geralmente são os maiores blockbusters, como Star Wars Indiana Jones), todos dão um passo atrás e constroem sobre os gêneros musicais do cinema estabelecidos na década de 30”, pontua Dan Golding ao Bitniks. Esses gêneros foram criados por compositores vindos da tradição de concertos europeus, inspirados fortemente em outros grandes compositores como Richard Wagner, Ígor Stravinski, Gustav Holst e Johann Strauss.

Golding conta que Williams trata essa música como “estando profundamente imbuída de uma cultura artística ocidental coletiva. A trompa francesa nos dá um pouco de heroísmo; a trombeta vira uma fanfarra”. Há centenas de anos de uma associação cultural, variando de acordo com a experiência do espectador.

Graziela, professora da Unesp, explica que existem texturas na música, que criam uma correlação entre o número de instrumentos. Se a dinâmica (ou seja, a variação de intensidade das notas) for forte, a música pode ser contagiante. “A melodia também, sendo interconectada com essas progressões harmônicas, coisa que suscita muitas reações emocionais. Isso é importante, junto da aculturação/socialização que temos desde cedo”, afirma.

A harmonia, em seu significado mais simples, acontece quando temos vários instrumentos juntos tocando notas diferentes. Em um paralelo com a linguagem, é como se tivéssemos pontuações diferentes. Algumas cadências harmônicas pontuam frases e seções.

Graziela Bortz

Outro ponto lembrado pela especialista é repetição de pulsos, pois “há sempre um pulso constante independente das variações, criando um componente físico – até do nosso movimento”.

Por nós decorarmos os clichês, tal qual a nossa noção de música natalina, eles são códigos aplicados em diferentes contextos. Graziela dá exemplos: “temos uma música rápida, com as cordas friccionadas que você sabe ser um momento de tensão. Também tem um clássico, no Rei Leão, quando o Simba vai para o cemitério de elefantes e cria um clima tenebroso” que dá medo em qualquer criança.

Sob nova direção

Com ou sem clichês, George Lucas e Spielberg não foram nenhum caso especial ao direcionar (e dirigir) o “tom” de seus filmes. Décadas atrás, Stanley Kubrick optou por usar a introdução de Also Sprach Zarathustra (de Richard Strauss, feita em 1896) como parte da trilha de 2001 ao invés de uma composição original de Alex North, o mesmo compositor de Spartacus.

Bernard Herrmann, outro compositor renomado, era parceiro de Alfred Hitchcock em suas produções, como Um Corpo que CaiO Homem Que Sabia Demais Intriga Internacional. Herrmann ainda foi o criador da memorável música de Psicose, na cena do chuveiro — que, convenhamos, não seria nada sem os cortes rápidos de Hitchcock. E de Norman Bates, claro.

Os diretores dos anos 1980, principalmente os que ficaram famosos na “Era MTV”, como John Landis, David Fincher e Spike Jonze, apostaram em intercalar a produção de longa-metragens e clipes musicais. Por conta disso, como Golding explica, “muito da estética dos clipes chegou nos filmes, mas trabalhar de forma criativa para editar com trilha sonora foi algo que diretores franceses (como Godard e Varda), fizeram muito” na era New Wave.

Sobre diretores dos últimos anos que manipulam a música de formas criativas, pode-se citar Edgar Wright, um dos poucos que usa o casamento das trilhas e de ação física para criar comédia, especialmente em Todo Mundo Quase Morto. Um exemplo clássico europeu levantado por Dan é Jean-Luc Godard. Em particular, há uma cena de destaque na carreira do cineasta, gravada em um take único, de Banda à Parte:

“Isso é ainda mais radical do que qualquer coisa que os diretores de hoje estejam fazendo com a trilha sonora”, Golding arremata, sobre a técnica de cortar a música neste filme de 1964. Fato é que a Europa nunca deixou que o bom trabalho musical no meio audiovisual fosse hegemônico. “O cinema é um soft power tremendo e os Estados Unidos sabe disso muito bem”, diz Graziela.

“A Itália tem uma tradição melódica de bel canto e as trilhas refletem isso. Elas enfatizam a cena dramaticamente muito por conta disso”, prossegue antes de comparar a outra nação. “Em filmes espanhóis, quando você ouve uma guitarra flamenca, há uma dramaticidade muito particular daquele país”.

Por causa da diferença de “espaço” entre as notas (em uma escala do grave para agudo e vice-versa), as harmonias criadas ao redor do mundo foram se hierarquizando. “Os compositores ocidentais então deram preferência para as escalas maior e menor, mas havia muitas outras” distintas em dezenas de outras culturas, diz Graziela.

Na última década, tivemos uma mistura dessas influências, com um compositor sueco muito particular fazendo sucesso dentro e fora de Hollywood. Ludwig Göransson, vencedor do Oscar pelas músicas de Pantera Negra, tem uma relativamente curta para seus 36 anos de idade, mas já conseguiu evoluir as ideias de John Williams no universo de Star Wars com as músicas de Mandalorian.

Ludwig consegue ser criativo com clichês e padrões, em especial com o filme de ficção científica Tenet, lançado ano passado. Outro lugar que você talvez tenha ouvido as músicas de Ludwig é por conta de sua eterna parceria com o ator/rapper Donald Glover (aka Childish Gambino), nos sucessos This Is America e Redbone.

“Acho que ainda não vimos o potencial do que Göransson se tornará. Gosto muito da música dele, principalmente em Pantera Negra. Acho que ele tem um verdadeiro talento para texturas sonoras tal qual [Hans] Zimmer, em colaborações, particularmente tocando junto de Baaba Maal (com quem Zimmer também trabalhou), Massamba Diop e Amadou Ba”. Dan Golding refere-se ao que ouvimos na música Wakanda, no filme da Marvel:

O trabalho do hoje renomado Hans Zimmer não era o mesmo nos anos 1980. Antes de compor os inconfundíveis hinos modernos de O Rei LeãoPiratas do Caribe e vários filmes da DC (inclusive dirigidos Christopher Nolan, além dos filmes do Batman), ele criou as músicas de Conduzindo Miss Daisy e Dias de Trovão, ambos esquecidos no tempo.

“Hans Zimmer, como o autodenominado ‘revolucionário da música cinematográfica’, não emergiu até Gladiador, em 2000. Parte de sua genialidade tem sido a maneira como ele negocia e com quem ele também colabora. Não acho que ele negaria isso ser verdade”, diz Dan. De acordo com ele, Zimmer teria ganhado destaque por conta da transição da música feita para cinema no formato digital. “Portanto, a história do cinema sempre terá um lugar para ele por conta disso”, explica.

“Hoje, os compositores desenvolvem uma enorme compreensão de sintetizadores, de bibliotecas de software, samples e várias formas de trabalhar com gravações digitais. Devo dizer, porém, que mesmo na época do filme de [Ennio] Morricone, a música já havia mudado e se desenvolvido muito”.

Dan Golding

Softwares facilitam a compreensão dos compositores em um domínio multi instrumentista, pois não é necessário entender “fisicamente” como tocar certo instrumento, basta programar e ajustar o ambiente virtual conforme necessário. John Williams já falou sobre como seus primeiros dez anos de carreira foram basicamente conversas regulares com músicos de estúdio, a respeito de qual registro funcionaria para eles, se é fácil tocar em diferentes tons, e coisas do tipo”.

Mirando o futuro das trilhas no cinema, Dan diz que está interessado em acompanhar produções de compositores como Mica Levi (Sob a Pele), Johnny Greenwood (Sangue Negro), e Hildur Guðnadóttir (Coringa, vencedora do Oscar). “Existem várias vozes novas e empolgantes neste momento”, conclui. Vale a pena conferir o trabalho deles — de ouvidos bem abertos.

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