#AgoraÉQueSãoElas: a internet foi feita para as mulheres?

Gisele Truzzi é advogada especialista em direito digital, sócia-proprietária de Truzzi Advogados e colaboradora jurídica do site Think Olga.

A campanha #AgoraÉqueSãoElas foi criada por Manoela Miklos e sugere que homens cedam seu espaço para que mulheres falem sobre seus direitos e questões relacionados a gênero. O Gizmodo Brasil resolveu participar com a publicação de artigos de mulheres que atuam na área de tecnologia e que têm feito a diferença.

A autora do nosso terceiro texto da série é Gisele Truzzi, advogada especialista em direito digital, sócia-proprietária de Truzzi Advogados e colaboradora jurídica do site Think Olga.

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A internet parece-me não ter sido feita para as mulheres.

Aliás, questiono-me quando o mundo foi feito para elas, apesar de elas gerarem o mundo…

Não é de hoje que as mulheres sofrem preconceito, discriminação, e inúmeras formas de violência, em todos os meios pelos quais circulam. Mas parece-me que a violência virtual alcançou proporções gigantescas, e cresce a cada dia.

Toda semana eu recebo ao menos um e-mail de mulher que foi vítima de revenge porn – divulgação de conteúdo íntimo sem autorização – ou que sofreu com ameaças e difamações pela internet. Sem contar aqueles casos dos quais fico sabendo por intermédio de alguma pessoa que eu conheço. Ah! E também tem um grupo virtual de amigas do qual participo, com cerca de 25 a 30 mulheres, onde mais de 80% já relataram episódios de abuso sexual.

A cada dia que passa, casos de violência contra a mulher chegam com mais frequência até meus ouvidos. E o que antes ocorria com pessoas que eu até então desconhecia vem eclodindo em meus círculos sociais.

Com dez anos de atuação na área do Direito Digital, cheguei à seguinte estatística: cerca de 90% dos casos de “pessoa física” que já atendo são revenge porn. Desses casos, em 98% deles, as vítimas são mulheres. Até então, só atendi 2 homens na condição de vítimas.

Esse tipo de ocorrência só cresce.

A SAFERNET, entidade não-governamental que recebe denúncias de crimes eletrônicos, divulgou recentemente estatísticas comparativas dos atendimentos efetuados. Em 2012, foram recebidos menos de 10 casos relacionados a compartilhamento de conteúdo íntimo, definidos pela SAFERNET como sexting – envio de mensagens de texto com conotação sexual – e exposição íntima. Já em 2014, esse número aumentou para cerca de 230 casos.

Sim, a internet, assim como as ruas, parece não ser um lugar seguro para nós, mulheres. E quanto mais nos omitimos contra as investidas dos agressores, mais violência existirá.

A violência sofrida pelas mulheres na internet pode não ser física, mas é uma violência psicológica, que deixa marcas tão graves quanto as demais formas de agressão. E essa violência psicológica pode chegar no limite físico, quando o agressor passa a perseguir a vítima no “mundo real”, e então acaba por ferir sua integridade física. São os casos de “linchamento virtual” que resultam no linchamento físico propriamente dito. Ou então, a violência psicológica sofrida pela vítima após uma exposição indesejada na internet é tamanha que ela acaba se suicidando.

E a vítima de revenge porn não tem rosto. Já atendi jornalistas, empresárias, advogadas, estudantes, menores de idade, donas de casa, administradoras, modelos, mulheres que nunca enviaram uma foto sensual para alguém, mas que se viram vítimas de montagens fotográficas feitas por alguém cujo divertimento seria somente difamá-la.

Mulheres que tiveram sua intimidade exposta na rede por um desconhecido que foi executar manutenção no seu computador, ou por um amigo que usou seu computador, ou um colega de trabalho que aproveitou um momento de ausência e pegou o celular de cima de sua mesa…

Exemplos de mulheres vítimas da violência na internet não me faltam. São tantas as mulheres que choraram em meu escritório, relatando o ocorrido, que muitas vezes esses relatos me tiram o sono. E é um trabalho árduo esse de ser portadora de segredos e ser responsável pela recuperação de sua reputação. Sim, esse tipo de crime acaba com a imagem que a sociedade tem dela, e também com a imagem que a pessoa faz de si, pois não desejava se ver exposta dessa forma. Fere o seu íntimo, deixando cicatrizes que muitas vezes não irão desaparecer.

Essas mulheres se culpam pelo ocorrido, e a família e a sociedade também se fazem de carrasco. Mas qual o crime que elas cometeram?! Elas não são culpadas, são vítimas! O culpado é o agressor, é aquele que violou sua privacidade, atropelou seu consentimento e arrancou-lhe a dignidade.

Nessa rotina pesada, meu maior reconhecimento é poder devolver-lhes sua dignidade, é saber que agora elas poderão dormir em paz. Poderão ser conhecidas novamente pelo seu nome, pelo seu trabalho, e não pelo julgamento que a sociedade lhe impôs por conta de um link indesejado.

Por que ser mulher é ter que provar sempre algo a alguém?

Desconfiam de nossa capacidade intelectual se somos bonitas, ou jovens, ou se somos minoria em nossa área de trabalho. Como se inteligência, beleza e experiência fossem atributos que não pudessem ser encontrados juntos em uma mulher.

É frustrante subir em um palco para ministrar uma palestra e ter que ouvir “fiu-fiu” da plateia, predominantemente masculina, e isso ocorrer mais de uma vez, em Estados diferentes. É cansativo lutar pela sua vez de falar em uma mesa de debates em um evento quando a maioria dos debatedores são homens. É desgastante perceber os olhares atravessados dos homens e a insistência em cortar sua fala quando você é a única mulher em uma reunião de negócios. É aterrorizante ter que ligar o GPS do celular e avisar o seu marido quando você desconfia do trajeto do taxista. É irritante receber mensagens e e-mails de estranhos com intuito nitidamente “galanteador”. É constrangedor ouvir “cantadas” na rua e nos espaços por onde você circula. É absurdo participar de uma matéria televisiva sobre assédio sexual e sofrer represálias via internet dos espectadores. Isso tudo é invasivo, indesejado, anormal.

Tenho certeza de que se o protagonista dos relatos desse artigo fosse homem, ele não teria essas histórias para contar.

É uma pena que isso tudo faz parte do cotidiano da maioria das mulheres. E muitos homens infelizmente não percebem o quanto precisamos do vosso apoio nessa questão, não notam o quanto somos excluídas e invadidas. Sabe por quê? Porque quando você é maioria, não percebe a minoria.

Mas nas últimas semanas, parece que surgiu uma centelha de esperança.

A campanha #primeiroassédio, de iniciativa da Juliana de Faria, fundadora do Think Olga e também responsável pela campanha “Chega de Fiu-Fiu”, movimentou o Twitter e outras redes sociais, contabilizando 82 mil tweets de relatos de mulheres sobre os assédios que sofreram. Pelos tweets contabilizados, a média de idade das mulheres ao sofrerem o 1º assédio foi de 9,7 anos.

Muitas mulheres quebraram o silêncio e resolveram falar sobre o primeiro assédio que sofreram somente agora. E muitas ainda foram repreendidas por homens que comentaram nas redes sociais que isso não passava de “mimimi”. Depois do assédio sofrido na vida real, vem a violência virtual daqueles que julgam que lutar pela igualdade de nossos direitos é irrelevante.

Com esse movimento nas redes sociais, associado ao tema da redação do ENEM sobre a questão da violência contra a mulher, nas últimas semanas a realidade da mulher brasileira passou a ocupar os espaços nas mídias, tanto impressa, quanto online. Deram voz àquelas que nunca deveriam ter ficado silentes.

Os temas: feminismo, aborto, pílula do dia seguinte, violência contra a mulher e revenge porn passaram a integrar as rodas de conversas entre amigos, o espaço do café na empresa e a sala de casa. Não dá mais para fazer “vista grossa” a esses assuntos, eles estão ali, sendo esfregados na cara de todos nós.

E é normal que as pessoas mais conservadoras tenham ressalvas em falar sobre isso e inclusive sobre ouvir o outro lado. E então surgem novos ataques àquelas que são protagonistas de uma mudança social mais do que necessária.

As mulheres estão ocupando os cargos políticos, o poder, a mídia, a internet. Ninguém pretende tomar o direito alheio, mas sim exercer o direito que também a nós foi concedido.

Assim como ocupar os espaços públicos traz maior segurança à população, perceber a igualdade de direitos e permitir que as mulheres ocupem a internet também é uma forma de tornar a rede um lugar mais seguro. Ter empatia com o que passamos no nosso cotidiano também é uma forma de ajuda.

Ataques e violência sempre existirão. Mas de agora em diante, percebemos o quanto nós, mulheres, ficamos à mercê da História contada pelos vitoriosos, e não pretendemos nos calar frente aos abusos sofridos no cotidiano.

Eu não desistirei. Afinal, pra que calar, se nasci gritando?

Espero que você, também não desista. Afinal, ser omisso ou conivente com casos de violência contra a mulher é uma violação aos Direitos Humanos. É deixar de ser humano.

Foto por StartupStockPhotos/Pixabay

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