
A Mata Atlântica em camadas
Gisele Marquardt / UFPR
Microalgas unicelulares com 20 a 50 micrômetros de comprimento, aproximadamente, têm sido capazes de nos transportar mais de 500 mil anos no tempo para revelar como era o clima da Mata Atlântica no período Pleistoceno Médio. As diatomáceas, organismos encontrados em ambientes aquáticos, têm uma parede celular rígida feita de sílica (semelhante ao vidro) que garante a boa preservação de sua estrutura nos sedimentos ao longo de milhares de anos. Além disso, diferentes espécies de diatomáceas vivem em condições ambientais muito específicas no que diz respeito ao tipo de água, profundidade, acidez e concentração de nutrientes, por exemplo. Isso faz com que sua presença funcione como um indicador preciso das características daquele ecossistema.
Foi com base nessas pistas microscópicas que a bióloga Gisele Marquardt, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), investigou as transformações ambientais ocorridas ao longo de centenas de milhares de anos na bacia de Colônia, situada na zona sul da cidade de São Paulo. A região, que abriga uma estrutura geológica circular de aproximadamente 3,6 quilômetros (km) de diâmetro, conhecida também como cratera de Colônia, é considerada um dos mais importantes sítios paleoclimáticos tropicais do planeta.
A análise dos sedimentos revelou um padrão recorrente ao longo dos ciclos climáticos: nos períodos glaciais, associados a temperaturas mais baixas e expansão das calotas polares (que não chegaram à América do Sul), predominavam condições de maior umidade e expansão dos corpos d’água, resultando em alagamentos. Em contraste, os períodos interglaciais, vinculados ao aumento das temperaturas, evidenciaram regimes climáticos mais secos e retração hídrica. “Conseguimos identificar como se deu a transformação do lago em turfeira na bacia de Colônia e que isto teria ocorrido em fases distintas, começando pela borda e só depois alcançando o centro”, destaca a pesquisadora, que é a primeira autora de um artigo publicado em dezembro na revista científica Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology.
Além das variações climáticas, a transição para turfeira – ambiente encharcado em que a água impede que a matéria orgânica receba oxigênio, tornando mais lenta a sua decomposição – também foi condicionada por fatores locais, como a geologia, a composição dos sedimentos e a cobertura vegetal, sugerindo que ecossistemas tropicais podem responder de maneira diferenciada às mudanças no clima. “Isso indica que se trata de um processo mais antigo do que se sabia – os dados são de 500 mil anos atrás – e mais complexo do que uma simples resposta às mudanças climáticas globais”, explica Marquardt, destacando que o achado pode contribuir para a identificação de futuras transformações em áreas úmidas, além de reforçar a importância de sua conservação e manejo adequado.
“A base de diatomáceas foi fundamental para entendermos como um lago se transforma ao longo do tempo. E isso é muito importante na atualidade: com as mudanças climáticas e o uso intenso da água para irrigação, muitos lagos estão evaporando e passando por processos semelhantes”, reforça a paleoecóloga francesa Marie-Pierre Ledru. Pesquisadora do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD), na França, ela é uma das autoras do artigo.
Para realizar a coleta das diatomáceas, os pesquisadores utilizaram um sistema de martelamento manual montado sobre um tripé, inserindo um tubo a 14,7 metros (m) de profundidade. As camadas mais antigas ficam no fundo do tubo e as mais recentes no topo. A partir desse núcleo de sedimento, foram retiradas amostras a cada 3 a 4 centímetros (cm), entre as profundidades de 14,7 m e 8 m. De cada segmento, foram extraídos pequenos volumes de solo, com apenas 0,5 cm³, totalizando 160 subamostras destinadas à análise das microalgas fossilizadas.
O material passou por um processo químico para remover matéria orgânica e carbonatos, permitindo a visualização ao microscópio das frústulas das diatomáceas – suas carapaças de sílica, cada uma composta por duas valvas. Em cada lâmina analisada, os cientistas contaram no mínimo 400 valvas, identificando espécies e classificando-as como planctônicas (que vivem suspensas na coluna d’água) ou bentônicas, que estão fixas no fundo ou sobre superfícies submersas como rochas, plantas e sedimento.
A presença das primeiras sugere que o ambiente era um lago ativo, com água abundante e movimentada, associado a períodos glaciais úmidos. Já a presença de bentônicas revela um ambiente raso ou em transição para turfeira, indicando fases mais secas ou com vegetação densa cobrindo a superfície da água. “Conseguimos determinar a identidade das espécies coletadas e descobrimos que há muita coisa nova na Colônia que nunca foi descrita. É um ambiente extremamente diverso”, destaca Marquardt.
Eduardo Cesar / Revista Pesquisa FAPESPA cratera, localizada em Parelheiros, tem cerca de 4 km de diâmetroEduardo Cesar / Revista Pesquisa FAPESP
Esse trabalho foi realizado quando a pesquisadora estava em estágio de pós-doutorado no então Instituto de Botânica de São Paulo, integrado em 2021 ao Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA). O projeto, financiado pela FAPESP, buscou avaliar as alterações nas comunidades de diatomáceas e utilizá-las como marcadores biológicos para reconstrução paleoambiental na bacia de Colônia.
Embora o foco da pesquisa estivesse no sítio paulista, os resultados publicados em dezembro foram comparados com registros do lago Titicaca, na região dos Andes. Apesar das diferenças em altitude e localização, ambos os ambientes apresentaram respostas climáticas convergentes frente às oscilações globais, com períodos mais frios coincidindo com maior disponibilidade hídrica e expansão dos corpos d’água, enquanto os intervalos mais quentes foram marcados por redução da umidade e diminuição do nível das águas.
No entanto, as diferenças nos tipos de diatomáceas encontradas revelam que nem tudo se explica apenas pelo clima global. Enquanto no lago Titicaca predominaram espécies bentônicas durante o período glacial, indicativas de águas rasas, na bacia de Colônia dominaram as planctônicas, associadas a ambientes mais profundos e turbulentos. Isso levou os pesquisadores a levantar a hipótese de que fatores locais, como relevo, vegetação e profundidade da água, podem ter influenciado a dinâmica ambiental tanto quanto, ou até mais do que, as variações climáticas globais.
“Os nossos modelos climáticos atuais contam com cerca de 40 anos de informação. Quando temos um testemunho como o apresentado nesse artigo, com toda essa história climática – inclusive revelando registros distintos dentro de uma mesma sub-bacia – isso se torna extremamente valioso”, enfatiza a bióloga brasileira Luciane Fontana, da Universidade de Lanzhou, na China.
Especialista em reconstruções paleoambientais, ela utiliza diatomáceas e outros marcadores ambientais em suas pesquisas, embora não tenha participado da publicação de Marquardt. Fontana ainda ressalta que “os modelos preditivos usados atualmente podem e devem incorporar esse tipo de informação para se tornarem mais robustos, uma vez que as diatomáceas são excelentes bioindicadores, pois respondem rapidamente a mudanças ambientais”.
Outro estudo, publicado em março na revista Review of Palaeobotany and Palynology, revela uma diversidade significativa de pólens e esporos fósseis preservados nos sedimentos da bacia de Colônia, também datados do Pleistoceno Médio (entre 530 mil e 370 mil anos atrás). O artigo, assinado pela paleoecóloga paraguaia Olga Aquino-Alfonso e por Ledru, apresenta 146 tipos de palinomorfos (partículas microscópicas orgânicas) que documentam a vegetação da antiga Mata Atlântica antes do ciclo glacial de 100 mil anos se instaurar no planeta.
O estudo combina técnicas de microscopia e análises ecológicas para revelar uma floresta úmida e diversa, com a presença de espécies hoje raras, como araucárias e podocarpos, e a ausência de outras, como acaena e efedra, que indicam mudanças ambientais drásticas ao longo do tempo. “Encontramos e descrevemos uma mistura de espécies de Cerrado com espécies que hoje são consideradas como de frio, do Pampa”, ressalta Ledru.
Ela explica que, durante as eras glaciais, o nível do mar era cerca de 100 m mais baixo, o que afastava o litoral e reduzia a umidade necessária para a formação da Mata Atlântica. “O litoral era mais longe. E aí as espécies mais secas começaram a se desenvolver e a se expandir, até a umidade voltar e o nível do mar subir de novo”, detalha. Esses registros, segundo afirma, mostram que os biomas precisam ser monitorados com atenção ante as mudanças climáticas atuais, uma vez que seus limites podem se alterar com mais rapidez do que se imagina.
Projetos
1. Alterações das assembleias de diatomáceas frente às mudanças climáticas e ambientais durante ciclos glaciais e interglaciais em região de Mata Atlântica situada em área urbana (nº 18/23399-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Carlos Eduardo de Mattos Bicudo (Instituto de Botânica); Beneficiária Gisele Carolina Marquardt; Investimento R$ 177.857,36.
2. Desafios para conservação da biodiversidade frente às mudanças climáticas, poluição e uso e ocupação do solo (PDIp) (nº 17/50341-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Programa Modernização de Institutos Estaduais de Pesquisa; Pesquisador responsável: Luiz Mauro Barbosa (Instituto de Pesquisas Ambientais); Investimento R$ 9.612. 432,65.
3. Dimensions US-Biota São Paulo: Integrando disciplinas para a predição da biodiversidade da Floresta Atlântica no Brasil (nº 13/50297-0); Modalidade Programa Biota; Convênio National Science Foundation (NSF); Pesquisadora responsável Cristina Yumi Miyaki (USP); Investimento R$ 4.517.876,44.
4. Reconstrução paleolimnológica da Represa Guarapiranga e diagnóstico da qualidade atual da água e dos sedimentos de mananciais da RMSP com vistas ao gerenciamento do abastecimento (nº 09/53898-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Temático; Pesquisador responsável: Carlos Eduardo de Mattos Bicudo (Instituto de Botânica); Investimento R$ 1.725.042,01.
Artigo científico
MARQUARDT, G. C. et al. From paleolake to peatland: Paleo environmental changes over glacial and interglacial cycles (Mid-Pleistocene) in the Colônia Basin, Brazil. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology. Vol 655, dez 2024.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.