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Afinal, como conseguimos domesticar os lobos? Estudo aponta respostas

Existem indícios arqueológicos que o processo tenha começado na era glacial durante a relação colaborativa entre humanos e lobos selvagens.

Um lobo cinzento ocidental. Imagem: Jacob W. Frank (AP)

Existem duas grandes teorias sobre a origem da domesticação dos cães. Uma sugere que os humanos pré-históricos costumavam ter os primeiros animais da família dos canídeos como parceiros de caça. A outra diz que eles eram atraídos por nosso montante de lixo. Contudo, novas pesquisas sugerem que ambas as teorias estão erradas e que a verdadeira razão tem a ver com a nossa capacidade limitada de digerir proteínas.

Durante a última era do gelo, entre 14.000 e 29.000 anos atrás, os lobos selvagens foram os primeiros animais a serem domesticados por humanos. Apesar de ambas as espécies serem caçadores em matilhas, geralmente com o alvo em uma mesma presa, é curioso o fato de humanos e lobos conseguirem ter uma relação colaborativa.

“A domesticação de cães aumentou o êxito de ambas as espécies a tal ponto que os cães são agora os carnívoros mais numerosos do planeta”, escreveram os autores de um novo estudo publicado na última quarta-feira (06) na Scientific Reports. “Como essa relação mutuamente benéfica surgiu e, especificamente, como a competição potencialmente feroz entre esses dois carnívoros foi amenizada, precisa ser explicado.”

As duas teorias prevalecentes sobre a origem dos cães – seja como parceiros de caça ou como animais interessados por nosso lixo – não são muito convincentes. Os lobos, mesmo quando domesticados, teriam sido péssimos companheiros de caça, pois não teriam as habilidades de comunicação colaborativa e avançada encontradas em cães domesticados. E claro, lobos selvagens provavelmente eram atraídos por restos humanos,  mas isso teria exigido algumas interações improváveis ​​entre humanos e lobos.

“Em nossa opinião, a domesticação não está totalmente explicada”, disse Maria Lahtinen, química e arqueóloga da Autoridade Alimentar Finlandesa e a primeira autora do novo estudo, por e-mail. “Os caçadores-coletores não necessariamente deixam lixo no mesmo lugar continuamente. E por que eles tolerariam um grupo carnívoro perigoso em seus arredores? Os humanos tendem a matar seus competidores e outros carnívoros. ”

Lahtinen e seus colegas dizem que há uma razão mais provável para a domesticação dos lobos, e tem a ver com a abundância de proteínas durante os invernos rigorosos da era do gelo, que posteriormente reduziram a competição entre as duas espécies. Isso, por sua vez, permitiu que humanos e cães incipientes vivessem em harmonia simbiótica, abrindo caminho para a evolução contínua de ambas as espécies.

Os pesquisadores “introduziram uma hipótese realmente interessante que busca abordar o mecanismo há muito debatido pelo qual ocorreu a domesticação precoce dos cães”, escreveu via email James Cole, um arqueólogo da Universidade de Brighton que não está envolvido no novo estudo. “A ideia é que as populações humanas e lobos poderiam ter vivido lado a lado durante as duras condições climáticas [da última era do gelo] porque os humanos teriam produzido proteína suficiente, por meio de atividades de caça, para manter ambas as populações alimentadas durante os longos meses de inverno.”

Parece difícil de acreditar, mas os humanos provavelmente tinham mais comida durante os invernos da era glacial do que podiam suportar. Isso se deve à nossa incapacidade de subsistir exclusivamente com proteína magra por meses a fio – algo que os lobos não têm problemas. Para os humanos, o consumo excessivo de proteínas pode levar à hiperinsulinemia (resistência à insulina), hiperamonemia (excesso de amônia no sangue), diarreia e em alguns casos extremos, até a morte, segundo os autores. Para superar essa limitação biológica, os caçadores do Pleistoceno adaptaram suas dietas durante os meses de inverno, visando partes de animais ricas em gordura, graxa e óleos, como membros inferiores, órgãos e o cérebro. E, de fato, “há evidências de tal comportamento de processamento durante o Paleolítico Superior”, de acordo com o artigo.

Consequentemente, lobos e humanos foram capazes de “partilhar seu esquema sem competição em ambientes frios”, disse Lahtinen. Isso, por sua vez, tornou possível aos humanos manter os lobos como animais de estimação.

Um filhote de lobo cinzento mexicano de 7 semanas. Imagem: Jeff Roberson (AP)

É muito possível, para Lahtinen, que os primeiros cães fossem filhotes de lobo. Os caçadores-coletores, disse ela, “aceitam animais de estimação na maioria das culturas e os humanos tendem a achar animais pequenos fofos”, então “não seria uma surpresa se isso tivesse acontecido”.

Então os cães existem porque os filhotes de lobo eram fofos e tínhamos muitas sobras? Parece uma teoria legítima, se você me perguntar.

Só mais tarde, devido a características introduzidas pela seleção artificial, os cães foram usados ​​para caçar, guardar, puxar trenós e entre outras atividades, segundo os pesquisadores. Essa teoria também pode explicar a complexidade da domesticação precoce dos cães, que parece ter ocorrido na Eurásia em vários momentos, com os cães continuando a cruzar com lobos selvagens. A nova teoria também pode explicar por que a domesticação de cães parece ter ocorrido nas regiões árticas e subárticas.

Quanto aos meses de verão, isso não era tão crucial para os humanos, dada a abundância relativa de alternativas alimentares. Durante os meses críticos de inverno, no entanto, “os caçadores-coletores tendiam a renunciar os seus animais de estimação se houvesse a necessidade de desistir de recursos humanos”, disse Lahtinen.

É importante ressaltar que Lahtinen e seus colegas não retiraram essa teoria do nada. Para chegar a essa conclusão, a equipe realizou cálculos de conteúdo de energia para estimar a quantidade de energia que sobraria de presas também caçadas por lobos, como veados, alces e cavalos. Os autores concluíram que se humanos e lobos tivessem que competir por esses recursos, haveria pouca ou nenhuma cooperação entre as duas espécies. Mas, seus cálculos mostraram que além de animais como doninhas, todos os animais predados por humanos teriam fornecido mais proteína magra do que o necessário.

“Portanto, os primeiros lobos domesticados poderiam ter sobrevivido vivendo ao lado de populações humanas, consumindo o excesso de proteína da caça que os humanos não podiam”, explicou Cole. “Por ter alimento suficiente para ambas as populações, o nicho competitivo entre as espécies é eliminado, abrindo caminho para a domesticação e os benefícios dessa relação para as duas espécies.”

Cole a descreveu como uma “hipótese realmente intrigante” porque fornece um “mecanismo que pode explicar a domesticação do lobo em uma ampla faixa geográfica e temporal”, e o faz “explicando como duas espécies carnívoras poderiam superar a competição sob condições climáticas adversas. ” Olhando para o futuro, Cole disse que uma abordagem semelhante seria útil para estudar as interações de humanos e outras espécies neste planeta ao longo do tempo.

Com renome no meio que atua, Cole é o autor de um interessante estudo científico publicado em 2017, que apresenta um argumento sobre os antigos humanos não terem aderido ao canibalismo para suprir sua nutrição. Usando uma abordagem semelhante a adotada no artigo de Lahtinen, Cole mostrou que a carne humana simplesmente não carrega a mesma quantidade de calorias que os animais selvagens e o canibalismo não valeria todo o trabalho.

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