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Para liberar Boeing 737 Max no Brasil, Anac exigiu treinamento que EUA e Europa julgaram desnecessário

A queda de um Boeing 737 Max 8 na Etiópia no domingo (10) causou a morte de 157 pessoas e levantou preocupações sobre a segurança do modelo. Afinal, foi o segundo evento trágico com uma aeronave desse tipo em cinco meses. Relatórios preliminares das investigações sobre o primeiro acidente com uma aeronave desse tipo, ocorrido […]

Boeing 737 Max voando

Getty Images

A queda de um Boeing 737 Max 8 na Etiópia no domingo (10) causou a morte de 157 pessoas e levantou preocupações sobre a segurança do modelo. Afinal, foi o segundo evento trágico com uma aeronave desse tipo em cinco meses. Relatórios preliminares das investigações sobre o primeiro acidente com uma aeronave desse tipo, ocorrido na Indonésia em outubro de 2018, mostraram problemas que levaram o novo software do avião a abaixar o nariz da aeronave.

De acordo com uma matéria do New York Times, pilotos americanos e europeus não tiveram treinamento específico para operar esse novo sistema. No Brasil, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) exigiu treinamento para liberar o avião no País.

Como se trata de um episódio recente, não se sabe quais foram as causas da do acidente com o voo 302 da Ethiopian Airlines. Relatórios preliminares da investigação sobre queda do voo 610 da Lion Air no mar da Indonésia em outubro de 2018 mostraram problemas nos controles de voo e defeitos nos sensores de ângulo de ataque (que indica a inclinação da aeronave) e de velocidade em relação ao ar em voos anteriores.

Esses problemas, junto com uma falha de projeto no sistema de software que comanda a aeronave, teriam impedido que os pilotos controlassem adequadamente a aeronave — o avião jogou o nariz para baixo contra a vontade deles.

Segundo o New York Times, os pilotos não seguiram o script para recuperar o controle da aeronave das mãos do software. Não saber o que fazer, porém, pode não ser culpa exclusiva deles.

A reportagem, publicada em fevereiro — posterior ao acidente da Lion Air na Indonésia, mas anterior à queda do avião da Ethiopian Airlines, portanto — pelo jornal nova-iorquino, diz que a Autoridade Federal de Aviação dos EUA (FAA, na sigla em inglês) dispensou a necessidade de treinar os pilotos com o novo sistema.

A matéria diz que a capacidade de persuasão da empresa fabricante de aviões fez com que companhias aéreas, consumidores e principalmente órgãos reguladores dispensassem a obrigatoriedade de treinamento para o novo sistema da aeronave — isso, segundo o NYT, seria custoso e atrasaria a liberação da aeronave. Diz o texto:

No negócio brutalmente competitivo de jatos, o anúncio no final de 2010 de que a Airbus apresentaria uma versão mais econômica em relação ao consumo de combustível de seu campeão de vendas A320 representou um ataque frontal ao 737 da rival Boeing.

A Boeing se esforçou para contra-atacar. Em alguns meses, surgiu um plano para uma atualização própria, o 737 Max, com motores que proporcionariam uma economia de combustível similar. E nos anos que se seguiram, a Boeing insistiu não apenas em projetar e construir o novo avião, mas também em persuadir seus clientes de linhas aéreas e, fundamentalmente, a Administração Federal de Aviação, que o novo modelo voaria com segurança e manejo semelhantes aos do modelo existente, e que os pilotos não precisariam passar por um caro retreinamento.

(…)

A estratégia da Boeing desencadeou uma série de decisões de engenharia, negócios e regulamentação que, anos depois, deixariam a empresa enfrentando questões difíceis sobre o acidente ocorrido em outubro no Lion Air 737 Max, na Indonésia.

Mas a tragédia tornou-se um foco de intenso interesse e debate nos círculos da aviação por causa de outro fator: a determinação da Boeing e da FAA de que os pilotos não precisavam ser informados sobre uma mudança introduzida no sistema de controle de voo do 737 para o Max, uma codificação de software que se destinava a compensar automaticamente o risco de que o tamanho e a localização dos novos motores pudessem levar a aeronave a perder sustentação sob certas condições.

Esse julgamento da Boeing e de seu órgão regulador foi, pelo menos em parte, resultado do esforço da empresa para minimizar os custos de treinamento dos pilotos. E isso parece ter deixado a tripulação da Lion Air sem uma compreensão completa de como lidar com um defeito que parece ter contribuído para o acidente: dados incorretos indicando erroneamente que o avião estava voando em um ângulo perigoso, levando o sistema de controle de voo a repetidamente empurre o nariz do avião para baixo.

A reportagem também diz que autoridades europeias de aviação civil tiveram preocupações, mas acabaram por seguir a decisão da FAA e dispensar pilotos de treinamentos.

No Brasil, porém, a decisão foi diferente. A Agência Nacional de Aviação Civil considerou que o sistema da nova aeronave da Boeing era diferente do 737 anterior e, por isso, exigiu o retreinamento dos pilotos para liberar a operação do avião no País.

Procurada pelo Gizmodo Brasil, a assessoria da Anac confirmou o retreinamento e enviou o seguinte comunicado:

Antes de entrar em operação no Brasil, todo novo modelo de aeronave estrangeira é avaliado pela equipe de especialistas da ANAC. Na avaliação desse modelo, em outubro de 2017, a ANAC identificou diferenças entre os modelos da família Boeing 737 e solicitou treinamento do sistema de aumento de características de manobra (MCAS) para operação do modelo 737-8 MAX. A comprovação do treinamento foi exigida para o início das operações com a aeronave no país.

O novo modelo possui um novo posicionamento para os motores, mais alto e distante da fuselagem, o que faz com que a aeronave tenha a tendência a subir. Daí a necessidade de um software para “compensar” e corrigir a trajetória, o chamado Maneuvering Characteristics Augmentation System (MCAS, ou sistema de ampliação de características de manobra, em tradução livre).

O MCAS foi incluído no 737 Max 8. O software foi descrito por engenheiros da própria Boeing como “algumas linhas de código” escritas no sistema de comando da aeronave. Segundo a Boeing, o MCAS não entra em atividade em condições normais de voo, apenas melhora o comportamento da aeronave em condições fora do normal.

No acidente com o voo 610 da Lion Air, em outubro do ano passado, na Indonésia, dados apontam que o nariz da aeronave foi jogado para baixo mais de vinte vezes nos 12 minutos entre a decolagem e a queda. O Boeing 737 Max 8 mergulhou 5 mil pés (cerca de 1,5 km) e colidiu com o Mar de Java a 720 quilômetros por hora.

Segundo o New York Times, é provável que o piloto e o copiloto desconhecessem o sistema e o que ele estava fazendo. O jornal dá mais detalhes sobre isso:

Informações do gravador de dados de voo mostram que o nariz do avião foi lançado mais de duas dúzias de vezes durante o breve voo, resistindo aos esforços dos pilotos para mantê-lo voando. Se o MCAS estava recebendo dados errôneos que indicavam que o avião estava inclinado para cima em um ângulo que arriscava um estol, como é chamada a perda de sustentação — e os resultados preliminares da investigação sugerem que ele estava — o sistema teria automaticamente empurrado o nariz para baixo para evitar a parada.

O checklist padrão para lidar com esse tipo de emergência na versão anterior do 737 se concentra em inverter os interruptores de trim do estabilizador e usar os controles manuais para ajustar os estabilizadores.

A Boeing afirmou que os pilotos no penúltimo voo do mesmo avião da Lion Air encontraram um problema semelhante, embora menos grave. Eles resolveram isso desligando os interruptores do trim do estabilizador, seguindo o que prevê a lista de verificação de emergência. Ainda assim, investigadores indonésios descobriram que os pilotos fugiram do roteiro, ligando os interruptores novamente antes de desligá-los pelo resto do voo. Esse voo, com pilotos que não eram os mesmos do voo que caiu, pousou com segurança.

Os 737 mais antigos tinham outra maneira de resolver certos problemas com os estabilizadores: puxar o manche, ou coluna de controle, um dos quais fica imediatamente na frente do piloto e do co-piloto, cortaria o controle eletrônico dos estabilizadores, permitindo aos pilotos controlá-los manualmente.

Esse recurso foi desativado no Max quando o MCAS foi incluído — outra mudança que os pilotos provavelmente não sabiam. Após o acidente, a Boeing disse às companhias aéreas que, quando o MCAS é ativado, como parecia ter sido no voo Lion Air, puxar para trás o manche não faz parar o chamado estabilizador de fuga.

Os resultados preliminares da investigação, com base nas informações do gravador de dados do avião, sugeriram que os pilotos do voo condenado tentaram várias maneiras de puxar o nariz de volta para cima mais de duas dúzias de vezes. Isso incluiu a ativação de interruptores no manche que controlam o ângulo dos estabilizadores na cauda do avião — e quando isso não conseguiram parar o problema, puxaram o manche para trás.

Não há indicação de que eles tentaram girar as chaves de corte do estabilizador, como sugere o checklist de emergência. As descobertas do gravador de vozes da cabine de comando podem estabelecer com mais detalhes sobre que culpa, se houver, cabe aos pilotos da Lion Air.

Na matéria do Times, a Boeing se defende, e diz que os pilotos deveriam ter sido capazes de lidar com os controles mesmo que não soubessem do novo sistema. Diz o texto:

A Boeing assumiu a posição de que os pilotos do voo da Lion Air deveriam saber como lidar com a emergência, mesmo que não soubessem sobre a modificação. A empresa sustentou que apropriadamente seguir procedimentos de emergência estabelecidos — essencialmente, um checklist — desde muito conhecido dos pilotos de seus antigos 737 deveria ter permitido que a tripulação lidasse com um mau funcionamento do chamado sistema de aumento de características de manobra, conhecido como MCAS, mesmo que eles não soubessem que ele existia no avião ou não.

A Boeing disse que vários sistemas, tanto no Max quanto em sua geração anterior 737, podem empurrar o nariz para baixo. “Independentemente da causa”, disse a empresa, a tripulação de voo deve seguir o checklist, “que está contido nos procedimentos existentes”.

A empresa disse que, ao desenvolver materiais de treinamento para o 737 Max, seguiu práticas estabelecidas há muito tempo. “O processo garante que as tripulações de voo tenham todas as informações para operar o avião com segurança”, disse a Boeing, “e que os chefes de manutenção e frota entendam como garantir a manutenção dos aviões”.

Depois do acidente da Lion Air, segundo a BBC, a FAA emitiu uma diretiva de emergência para alertar pilotos sobre as diferenças do sistema de controle da aeronave. O canal britânico também informa que fontes da aviação dizem que os pilotos da Ethiopian Airlines provavelmente receberam instruções adequadas para manejar a aeronave.

As investigações do acidente do dia 10 de março com o Boeing 737 Max 8 da Ethiopian ainda estão em seu início e não é possível afirmar quais as causas do acidente. No entanto, peças encontradas no local do acidente sugerem que a aeronave mergulhou em direção ao solo, assim como o voo da Lion Air. Além disso, ao comunicar a decisão de manter aviões deste modelo no solo, a FAA disse que dados de satélite indicavam uma situação parecida com a da aeronave que caiu na Indonésia.

Neste momento, os voos com o 737 Max 8 estão suspensos em praticamente todo o mundo. A decisão começou com China e Indonésia, foi aderida por grande parte da Ásia, Oceania e, posteriormente, da África e da Europa e chegou ao Brasil, onde a Gol possui sete aeronaves do modelo.

Por fim, ela determinada pela FAA também nos EUA, com o apoio da Boeing — em comunicado, ela diz que tomou a decisão “por extrema cautela e para tranquilizar os passageiros sobre a segurança da aeronave”. A Boeing também anunciou uma atualização no software da aeronave para o mês de abril.

[New York Times, BBC 1, 2]

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