Onde o filme “A Chegada” acerta na comunicação entre alienígenas e humanos

O filme não presume uma tecnologia avançada de tradutor universal para alienígenas - em vez disso, ele explora como isso poderia ser criado.

por Ben Macaulay

Para nós, linguistas, é difícil explicar às pessoas o que fazemos e por que somos tão fascinados pelo assunto. Com A Chegada – que estreia nesta quinta (24) no Brasil – a cultura pop está enfim nos dando um ponto de referência.

O filme não presume que seremos capazes de nos comunicar com alienígenas com alguma tecnologia avançada. Em vez disso, ele explora como esse tipo de “tradutor universal” poderia ser criado em primeiro lugar.

Vamos examinar a linguística retratada em A Chegada, e como ela se relaciona com nosso trabalho.

A sensível ficção científica de ‘A Chegada’
Isaac Newton tentou criar um idioma próprio

Falando com aliens

Em A Chegada, a linguista Louise Banks (Amy Adams) está em um trabalho de campo: ela é apresentada a uma linguagem alienígena, documenta-a e usa seus dados para aprofundar a teoria linguística (com um acordo para escrever um livro).

O trabalho de campo linguístico é único porque, na maioria das vezes, os linguistas da documentação usam as mesmas ferramentas no campo enquanto trabalham em qualquer uma das 7.000 línguas vivas, antes que a maioria delas inevitavelmente deixem de existir.

Felizmente para Louise, essa metodologia também pode se aplicar à linguagem do anel de tinta lançada pelas lulas gigantescas e superinteligentes – os “heptapods” – que chegam à Terra em enormes OVNIs com formato de concha.

O primeiro estágio da coleta de dados mostra frustrações comuns no trabalho de campo: os alienígenas (heptapods) não podem dizer se Louise está tentando falar sobre si mesma ou sobre os humanos em geral, até que ela e seu colega Ian (Jeremy Renner) retiram seus trajes de segurança e gritam repetidamente os próprios nomes, como fazem os Pokémon.

Nesse momento, todos desistem da linguagem falada em favor do sistema de escrita, e Ian dá apelidos aos falantes para que ele não tenha que usar a linguagem deles.

Ambas são práticas não-recomendadas na linguística. A escrita é vista pelos linguistas como secundária à fala, pois a maioria das línguas não tem tradição escrita, e as crianças não aprendem a escrever sem instrução.

Além disso, os apelidos de Ian são desrespeitosos; existem situações na Terra onde as convenções de nomenclatura são incompatíveis com as línguas estudadas, mas em casos como este, o linguista seria o único a adotar um novo nome. (Por exemplo, a maioria dos linguistas estrangeiros em Taiwan adota nomes chineses.)

A metodologia de Louise é inspirada por uma série de devaneios sobre brincar com o filho dela, incluindo truques familiares como o uso de livros infantis ilustrados. A comparação entre um bebê tentando aprender a língua materna e Louise tentando entender os heptapods realmente mostra como a aquisição de linguagem é um feito monumental. É por isso que os linguistas fazem isso.

No meio do filme, o enredo linguístico se torna secundário ao drama político/sci-fi – o que é compreensível, porque eu sou o único membro da plateia que teria assistido 116 minutos de “ok, diga a palavra ‘tentáculo’ novamente, agora diga três vezes, fale mais perto do microfone…”.

Quando o filme entra em uma onda Dan Brown e começa a medir o espaço negativo entre as manchas de tinta, ele deixa o escopo do que eu posso analisar através do conhecimento linguístico. E, como se esperaria da vida acadêmica, Louise não é promovida mesmo vivendo meu sonho de salvar o mundo através da pesquisa.

Uma linguista (quase) real

A Chegada tem um conjunto impressionante de detalhes que fizeram Louise se parecer com e agir como uma linguista real. Para começar, seu escritório tem uma prateleira dedicada a cópias impressas de Language e um bom número de livros icônicos de Cambridge sobre Linguística.

Por outro lado, ela dá aula usando uma caixa de cereal que diz “Linguística”, e sua palestra sobre a língua portuguesa é do tipo que merece ser interrompida por uma invasão alienígena.

Há algumas imagens de Praat, a ferramenta preferida de quem analisa sons. Como acontece bastante em trabalhos de campo, há um pássaro que não para de cantar enquanto Louise tenta trabalhar.

Ela pode ter inventado uma história sobre a palavra “canguru” ser uma palavra australiana para “eu não sei”, mas isso reflete uma explicação comum da gíria étnica “gook”, em que americanos interpretaram mal “miguk” – a palavra coreana para América – como “me gook”. (O coronel Weber, interpretado por Forest Whitaker, lança uma piada racista sobre aborígines australianos para compensar isso.)

O que realmente me decepcionou com a linguística de A Chegada foi o abandono de Louise da linguagem falada dos heptapods. Como todas as línguas são faladas, mas a maioria não tem tradição escrita, os linguistas tradicionalmente se concentram na fala e veem a escrita como secundária.

Os sons dos aliens

A abertura do filme menciona algumas questões logísticas colocadas pelo discurso dos heptapods: Louise pergunta se os heptapods têm boca, e não pode dizer se um ou ambos os heptapods estavam falando ao mesmo tempo na gravação – ambas perguntas ficam sem resposta. Bem, é fácil se confundir: eu achei em mais de uma ocasião que a música de fundo dramática era a fala dos heptapods.

No entanto, a linguagem falada dos heptapods é algo que vale a pena examinar. Ao longo do filme, eu isolei quatro sons de fala usados ​​pelos heptapods:

– violino dramático
– algum tipo de trilo (alternância rápida de duas notas musicais vizinhas)
– [q], a oclusiva uvular surda (som articulado com a parte de trás da língua e sem vibrar as cordas vocais)
– cortador de grama

Para comparação, as línguas humanas com os menores inventários fonológicos (relatados) são Pirahã (10) e Rotokas Central (11).

As línguas com inventários menores geralmente têm que compensar a falta de contraste com palavras mais longas. Por exemplo, o cantonês contrasta 6-7 tons e tem um monte de palavras de uma sílaba. Em mandarim, que contrasta com 4 tons, essas mesmas palavras foram adaptadas para terem duas sílabas, porque senão muitas palavras diferentes pareceriam iguais.

Se os quatro sons de fala dos heptapods forem todos contrastivos (talvez o trinado e o cortador de grama sejam um único fonema), esperaríamos que as palavras dos heptapods fossem muito mais longas ou mais complexas do que ouvimos em A Chegada.

A linguagem dos heptapods também é tipologicamente estranha, dado que só tem uma consoante oclusiva, a [q], que só ouvi uma vez no filme. As oclusivas – sons como p, t, k, etc. – são encontradas em todos os idiomas falados na Terra, e por uma boa razão.

Uma vez que nosso discurso envolve a manipulação de fluxo de ar, a maneira mais simples de fazer isso é interrompendo esse fluxo. Dado que os sons de fala dos heptapods também envolvem o fluxo de ar (os trilos indicam isso), seus inventários de som devem espelhar os nossos na distribuição de maneiras de articulação.

a chegada (2)

O filme fornece alguma análise da sintaxe da linguagem dos heptapods, mas esta análise não corresponde ao que vimos. O sistema de escrita dos heptapods foi descrito como não-linear, na medida em que frases completas foram apresentadas de uma só vez sem correspondência entre som e símbolo. No entanto, os anéis de tinta preta usados ​​pelos heptapodos estavam divididos em componentes menores dispostos no sentido anti-horário.

Além disso, durante a primeira e última sessões de evocação, os heptapods apresentam conjuntos de anéis de tinta em sequências. Considerar o sistema de escrita não relacionado à linguagem falada nessa base é uma declaração muito estranha para Louise, que fala mandarim fluente.

No entanto, foi interessante ver um sistema de escrita adaptado às necessidades de seus usuários, e isso me lembrou os alfabetos brâhmicos que se tornaram mais “encaracolados” quando a escrita era feita em folhas, para evitar quebrar as folhas com linhas retas.

Uma questão mais geral na visão de A Chegada sobre a linguística é a natureza dos indivíduos entrevistados por Louise. O trabalho dela como intérprete persa, antes dos eventos do filme, bem como com os heptapods, mostra que o propósito de seu trabalho não é avançar o conhecimento linguístico, e sim interrogar ameaças políticas.

Embora Louise tenha uma visão mais otimista dos heptapods do que seus anfitriões militares, o trabalho linguístico real busca não perturba as comunidades que examina, muito menos explorar a estrutura de poder entre pesquisador e entrevistado.

Embora a situação de contato alienígena de A Chegada atraia de forma justificável a suspeita de seus colegas, o trabalho de campo de Louise tem carga política e uma semelhança infeliz com a antiga documentação de linguagem baseada em missionários. (Embora grupos missionários como o SIL ainda existam, eles abandonaram a tradução da Bíblia como seu objetivo principal.)

A documentação real de linguagem parece menos como um interrogatório, e mais como eu conversando com pessoas de idade comendo batata-doce.

Atenção, spoilers adiante!

spoiler warning

Uma hipótese curiosa

Alguns aspectos da linguística no filme estavam equivocados ou contrastavam radicalmente com o funcionamento dos linguistas. A maior é a menção da hipótese Sapir-Whorf, uma afirmação de que as propriedades da linguagem de uma pessoa moldam a forma como vemos o mundo.

Esta idéia foi popularizada na década de 1940 quando o linguista Benjamin Whorf se impressionou com o sistema de tempo verbal dos indígenas americanos Hopis, e como (apesar de ser algo irrelevante pelos padrões tipológicos atuais) isso era a prova de que os nativos americanos conseguiriam manipular o tempo.

Eu vi alguns colegas bem irritados com isso, e também não quero que este seja o aspecto científico legal que os não-linguistas levem do filme, mas também este filme é literalmente sobre seres místicos que manipulam o tempo.

Não é uma combinação perfeita, pois a hipótese Sapir-Whorf é mais sobre os efeitos de línguas específicas em pessoas de outra forma idênticas, e Louise está usando a linguagem dos heptapods mais como uma forma de tentar entender sua cultura.

O que é descrito como Sapir-Whorf em A Chegada está mais próximo das diferenças reais que as línguas têm baseadas nas culturas e ambientes em que são faladas (por exemplo, disponibilidade de nomes de plantas/animais, sistemas de formalidade etc.).

Tentar fechar o fosso entre a ciência e a cultura pop sempre terá falhas. Isso é necessariamente o caso: é inerente à ciência que tudo atualmente esteja no limite do conhecimento humano.

Nós não escolhemos o nosso capítulo favorito de um livro de graduação e vivemos os nossos dias com base apenas nele. Se fosse tão fácil se relacionar com os resultados da pesquisa atual de uma forma significativa, então não precisaríamos de anos de pós-graduação.

O filme me permite viver prazerosamente o sonho de ter meu trabalho validado como importante, relacionável, e digno de um escritório maior do que o meu quarto. Infelizmente, ainda estou lutando para que mais pessoas reconheçam isso, e não sou um ser místico que manipula o tempo.

A Chegada não pretende ser uma explicação detalhada da linguística de documentação, mas preenche o espaço deixado por qualquer ficção científica que possui um “tradutor universal”, e me dá uma boa referência para falar do meu assunto favorito.

Ben Macaulay está fazendo doutorado em Linguística, com foco em fonologia e documentação de línguas. Seu projeto atual é documentar a linguagem Pazeh a partir da última pessoa que fala esse idioma.

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