Como a anestesia fez muitos médicos pararem de se importar com a sua dor

Com a invenção da anestesia, a experiência subjetiva da dor foi deixada de lado na medicina. Após séculos, a internet ajuda a mudar esse quadro.

A romancista inglesa Frances Burney descreveu, em 1812, o crescente terror que sentia enquanto se preparava para passar por uma mastectomia sem qualquer anestésico. Tendo duas horas para esperar até o temido evento (segundo ela, sua “execução”), ela caminhou pela sala onde aconteceria a operação e “desistiu”. Em um esforço para controlar seu medo, ela andou “para lá e para cá até calar as emoções e ficou, aos poucos, quase abobalhada, entorpecida, sem qualquer sentimento ou consciência”.

Então chegaram sete homens, todos vestidos de preto, e começaram a posicionar dois “colchões velhos” e a cobri-los com um “lençol velho”. Burney começou “a tremer violentamente, mais com repugnância e horror pelas preparações do que pela dor em si”. Quando eles pediram que ela deitasse na cama, ela parou “em suspensão por um momento, [pensando] se não deveria sair correndo. Eu olhei para a porta, as janelas… eu me sentia desesperada”.

Mas era preciso ceder. O cirurgião colocou um lenço de cambraia sobre o rosto dela e pegou a faca. Burney foi consumida por um “terror que ia além de qualquer descrição”. Quando “o pavoroso metal mergulhou no seio, cortando veias, artérias, carne, nervos”, ela escreveu: “Eu não precisei que me dissessem pra não conter meus gritos. A agonia era tão excruciante que comecei um grito contínuo durante toda a duração do incidente e quase me espanto que ele não esteja soando nos meus ouvidos até agora!”

Burney passou por uma cirurgia mais de três décadas antes do primeiro uso de anestésicos modernos na medicina. Acreditava-se amplamente que descrever a dor trazia pistas para as causas reais de sofrimento. Os manuais de medicina estimulavam médicos a pedir a seus pacientes um relato detalhado de suas dores.

Em 1730, por exemplo, o influente médico Bernard Mandeville lembrava um paciente que perguntou a seu médico se ele não estava cansado de ouvir “um relato tão tedioso” sobre dor. O médico murmurou suavemente: “Sua história é tão interessante que eu sinto uma abundância de prazer com ela, e sua forma engenhosa de contá-la me dá um conhecimento maior do que você imagina sobre sua enfermidade.”

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Um século depois, os médicos assumiram uma visão muito diferente sobre relatos de dor. Em 1860, Peter Mere Latham (médico a serviço da rainha Vitória) inverteu o comentário de Mandeville, reclamando que “a queixa de cada pessoa é interessante para ela própria, que a descreve de forma demasiado longa e pouco edificante”.

Lathan lamentava que “entre as classes mais altas, nós somos obrigados a ouvir as histórias dos pacientes”, provavelmente porque o status social deles garantia que pudessem opinar. Mas Lathan confessava que “nós geralmente cortamos [as explicações sobre a dor] ao mínimo possível, de modo a chegarmos logo a nossas perguntas”.

Com a invenção do clorofórmio, nos anos 1840, os médicos celebraram que os “gemidos e gritos dos que sofriam sob as facas e serras dos cirurgiões foram todos silenciados”, segundo o cirurgião dentista Walter Blundell. Ele escreveu em 1854 que os cirurgiões agiam como se estivessem trabalhando em “formas sem respiração ou vida”. Os anestésicos transformava os pacientes em corpos passivos e inconscientes, despidos de sensibilidade, de ação e – o mais grave – de palavras.

A “diluição” emocional e estética da linguagem clínica continuou desde então, fazendo com que a experiência subjetiva da dor ficasse de lado na medicina. A fMRI (imagem por ressonância magnética funcional) promete erradicar de vez a subjetividade da pessoa com dor: ela não vai precisar falar, nem mesmo apontar onde dói. A dor é pouco mais que “um estado cerebral alterado”. As complexas histórias de antigamente sobre dor foram rejeitadas de forma decisiva.

Os pacientes em si não ficaram menos eloquentes acerca de sua dor, a despeito das recentes abordagens sobre ela. Pegando alguns exemplos das últimas décadas na literatura médica, jurídica e acadêmica, um paraplégico explicou que sentia como se “uma família de cobras” estava se “enroscando” em seus glúteos. Outro paciente descreveu a dor “como uma intimação do fiscal de impostos da Rainha”.

Uma mulher que tinha dor no membro fantasma depois de ter o braço amputado observou que a sensação parecia com “bolhas e borbulhas de champanhe”. Um homem com dor crônica nas costas disse: “minhas costas doem tanto que sinto como se tivesse uma grande toranja na região lombar”. Ainda mais criativa era a mulher que dizia que sua dor de cabeça parecia “uma tigela de pipoca doce estourando forte atrás da minha testa”.

No final do século XX e início do XXI, essas comunidades de pessoas com dor vêm sendo reforçadas pela internet. Sentindo-se menosprezados ou ignorados por seus médicos (que, para sermos honestos, encaram imensa pressão para tratar seus pacientes de forma eficiente), as pessoas com dor se voltaram às redes sociais e comunidades online. Esses sites oferecem uma linguagem para enquadrarem sua dor; permite que comuniquem sua dor aos outros; e proporciona a eles uma comunidade na qual sentem que suas experiências são válidas. Isso permite que os corpos em dor se libertem das restrições geográficas, de regimes de poder médicos e do estigma social.

O trecho acima foi extraído, com permissão, deste artigo da Aeon Magazine. Para ler a versão completa, em inglês, clique aqui.

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Imagens por Orbis/Flickr e Wellcome Images

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