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Plano de construir uma Arca de Noé genética inclui impressionantes 66 mil espécies

Um consórcio internacional envolvendo mais de 50 instituições anunciou um projeto ambicioso para montar sequências genômicas de todas as 66 mil espécies vertebradas na Terra, incluindo todos os mamíferos, pássaros, répteis, anfíbios e peixes. Com um custo total estimado de US$ 600 milhões, é um projeto de proporções bíblicas. • Cientistas colocam tinta em formigas para […]

Um consórcio internacional envolvendo mais de 50 instituições anunciou um projeto ambicioso para montar sequências genômicas de todas as 66 mil espécies vertebradas na Terra, incluindo todos os mamíferos, pássaros, répteis, anfíbios e peixes. Com um custo total estimado de US$ 600 milhões, é um projeto de proporções bíblicas.

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Chamado de Vertebrate Genomes Project (VGP), ele está sendo organizado por um consórcio chamado Genome 10K, ou G10K. Como o nome indica, esse grupo havia inicialmente planejado sequenciar os genomas de pelo menos dez mil espécies vertebradas. Porém, agora, graças a tremendos avanços e reduções de custo em tecnologias de sequenciamento genético, o G10K decidiu subir a aposta, visando sequenciar indivíduos macho e fêmea de cada uma das aproximadamente 66 mil espécies vertebradas na Terra.

Cofundadores do projeto anunciaram o novo objetivo nesta quarta-feira (12), em um evento de imprensa durante a sessão de abertura da conferência Genome 10K 2018, sendo realizada atualmente na Universidade Rockefeller em Nova York. O projeto vai envolver mais de 150 especialistas de 50 instituições em 12 países.

O anúncio vem em conjunto com a divulgação de 14 novos genomas de alta qualidade para espécies representando todas as cinco classes vertebradas, incluindo genomas do morcego-de-ferradura-grande, lince-do-Canadá, ornitorrinco, da calypte anna (uma espécie de colibre), do kakapo (do qual existem apenas 150 indivíduos sobreviventes), da tartaruga do deserto, do rhinatrema (um estranho anfíbio sem membros que se parece com uma cobra) e do anabas testudineus.  Esses 14 genomas e aqueles compilados ao longo do projeto serão disponibilizados a cientistas para a realização de pesquisas.

De fato, o VGP é mais do que apenas o sequenciamento de genomas animais. Assim como o Human Genome Project, essa empreitada vai, sem dúvidas, produzir avanços em sequenciamento de alta resolução e em métodos de montagem de genoma, ao mesmo tempo em que resultará em menores custos e em menos erros.

O projeto vai tratar questões importantes em biologia e doenças, impactando imediatamente os campos da evolução, da genômica e da biologia da conservação. Nesse último ponto, um catálogo completo das espécies vertebradas da Terra poderia servir como uma garantia contra a extinção — tanto em termos de impedi-la quanto de possivelmente reviver espécies extintas no futuro.

Falando durante a coletiva de imprensa na quarta-feira (12), Oliver Ryer, cofundador do G10K e diretor do Instituto para a Conservação do Zoológico de San Diego, disse que o VGP tem o potencial de “transformar todos os reinos da biologia”. Ele disse que o projeto permitirá aos cientistas entender as razões por trás da extinção, incluindo a presença de mutações perniciosas, consanguinidade e efeito de gargalo. Como exemplo, Ryer descreveu a descoberta de um gene recessivo deletério entre condores-da-Califórnia, dizendo que “agora nós podemos identificar pássaros que são portadores desse traço letal”. Por fim, ele acredita que o projeto nos tornará “melhores administradores da vida na Terra” e possibilitará que nós “preservemos nossa herança biológica”.

Quando o G10K foi lançado dez anos atrás, seus membros não tinham ideia alguma de quanto tempo levaria para sequenciar genomas de qualidade suficiente para fazer boa ciência de maneira econômica.

“Estou incrivelmente empolgado por estarmos agora em uma posição de fazer isso direito”, disse David Haussler, cofundador do G10K e diretor do Instituto de Genômica da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, em uma reunião na terça-feira (11). “Agora é a hora de começar mesmo”, acrescentou, “não temos desculpa para não fazer isso”.

Para gerar conjuntos genômicos de alta qualidade, a equipe do VGP está enfatizando as “leituras longas” em detrimento das “leituras curtas”, o que significa que as tecnologias de sequenciamento que produzem partes mais extensas de dados genéticos contíguos serão favorecidas em comparação com aquelas que produzem dados mais curtos. Isso facilitará consideravelmente a montagem das sequências de DNA em cromossomos inteiros. Então, em vez de ter que trabalhar com um quebra-cabeça com milhões de peças, as leituras longas resultarão em um quebra-cabeça com milhares de peças.

Além disso, os pesquisadores se absterão de combinar cromossomos de macho e fêmea em um só genoma — uma prática comum que estava resultando em muitos erros. Em vez disso, a equipe vai montar tanto o DNA paternal e maternal de indivíduos em um processo conhecido como faseamento. Como disse Gene Myers, membro da equipe do VGP e pesquisador principal no Instituto Max Planck de Biologia Celular Molecular e Genética, cada espécie será um negócio “único”, o que significa que a qualidade das sequências será tão boa que o trabalho não precisará ser repetido no futuro. Dessa maneira, “podemos seguir em frente com a ciência”, afirmou.

Em termos de processo, os pesquisadores vão construir sequências de longa leitura com uma montagem inicial de pedaços de cromossomo chamados de “contigs”. Esses pedaços serão juntados para criar pedaços ainda maiores, chamados de “scaffolds“, que, por sua vez, serão ligados a outros para criar montagens ainda maiores, até chegar a cromossomos de tamanho completo. Mapas ópticos de DNA e algoritmos de computador vão ajudar no processo, garantindo a ordem sequencial adequada e sinalizando quaisquer erros estruturais.

“Os avanços em sequenciamento de leitura longa e tecnologias de scaffolding de longo alcance estão revolucionando do zero o sequenciamento de DNA”, disse Myers. “Depois de um hiato de dez anos, essa tendência me inspirou a voltar para a montagem de genoma, já que acredito que, em última instância, seremos capazes de produzir reconstruções genômicas quase perfeitas, telômero a telômero. E se as tendências de custo atuais continuarem, isso sairá por menos de US$ 1 mil em média por espécie vertebrada, drasticamente alterando o panorama da genômica.”

De fato, não faz muito tempo que custava milhões de dólares e anos de esforço para completar o genoma de um único animal. Novas tecnologias de sequenciamento poderão em breve possibilitar a criação de um genoma inteiro em uma única semana, disse Adam Phillippy, executivo do G10K e chefe do Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano do NIH. Agora, custa cerca de US$ 30 mil para sequenciar o DNA de uma nova espécie pela primeira vez.

As novas sequências serão armazenadas e disponibilizadas publicamente no banco de dados da Genome Ark, uma biblioteca de acesso aberto digital de genomas. Os patrocinadores corporativos DNAnexus e Amazon Web “têm sido fundamentais para fazer esse projeto decolar”, disse Phillippy.

“Esse projeto é estranho e escandaloso — mas é viável e inevitável”, disse Harris Lewin, membro da equipe VGP da Universidade da Califórnia em Davis, em um comunicado à imprensa.

Serão necessários cerca de US$ 600 milhões para completar todas as fases do VGP, segundo um comunicado de imprensa do G10K. Para financiar o projeto, o G10K está conseguindo dinheiro de instituições privadas e patrocinadores corporativos. Mas o consórcio também está fazendo crowdfunding, tendo coletado já US$ 2,5 milhões dos US$ 6 milhões necessários para a primeira fase do projeto (que vai envolver o sequenciamento de pelo menos um indivíduo de todas as 260 ordens de vertebrados existentes).

Hipérboles à parte, esse é um dos projetos mais ambiciosos que vemos em um bom tempo, rivalizando com o Human Genome Project (HGP), o Human Connectome Project (um esforço corrente para mapear todas as conexões do cérebro humano) e o projeto-irmão do VGP, o Earth BioGenome Project (EGP), que foi anunciado neste ano. O objetivo do EGP é sequenciar todos os eucariotos (existem cerca de 8,7 milhões de espécies no planeta), em um custo estimado de US$ 4,7 bilhões. Em e-mail ao Gizmodo, um porta-voz do G10K disse que o EGP vai funcionar como um corpo de coordenação, e os genomas de vertebrados do VGP serão contribuídos para o esforço geral de eliminar a replicação de trabalho.

Nenhum prazo foi dado para o projeto VGP, mas, como o HGP mostrou, um começo devagar não é necessariamente reflexo do ritmo geral de um projeto. À medida que o tempo passa e as tecnologias e técnicas melhoram, os pesquisadores do VGP devem começar a ver retornos acelerados, tanto em termos de velocidade quanto de redução de custos. Quando ele estiver completo, teremos um repositório notável à nossa disposição, um que deixaria Noé orgulhoso.

Imagem do topo: Make it Kenya/Flickr

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