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Nuvem mortal: a ciência por trás do ataque com armas químicas na Síria

Acredita-se que semana passada o governo da Síria tenha assassinado centenas de seus próprios civis com armas químicas. Não sabemos qual arma foi usada, mas sabemos que foi uma dos químicos chamados agentes nervosos. Agentes nervosos foram inventados por acidente por um cientista da época nazista que tentava produzir um pesticida mais eficiente. É por […]

Acredita-se que semana passada o governo da Síria tenha assassinado centenas de seus próprios civis com armas químicas. Não sabemos qual arma foi usada, mas sabemos que foi uma dos químicos chamados agentes nervosos.

Agentes nervosos foram inventados por acidente por um cientista da época nazista que tentava produzir um pesticida mais eficiente. É por isso que essas moléculas são tão parecidas, estruturalmente, com a classe mais comum dos inseticidas, químicos chamados organofosforados porque eles contêm grupos baseados em carbono (“orgânicos”) combinados com um átomo de fósforo. E a forma com que um agente nervoso mata um ser humano é muito parecida com a que um pesticida organofosforado dá cabo de um inseto.

Parece que o massacre da semana passada poderá terminar em guerra (a Casa Branca fala em um ataque de mísseis). Com isso em mente, temos aqui uma visão da ciência do que aconteceu.

Este post foi publicado originalmente no Puff the Mutant Dragon e foi republicado com permissão.

Como sabemos que o governo da Síria usou agentes nervosos?

Os sintomas não deixam dúvidas. Por exemplo, as pupilas dos olhos das vítimas encolheram até virarem pequenas bolinhas. É exatamente o que aconteceu com o cientista alemão que inventou o tabun, o primeiro agente nervoso. As pupilas diminutas são uma marca do envenenamento por agentes nervosos. Não existe outra arma química que cause esse tipo de sintoma.

O que eles usaram?

Todos esses agentes nervosos causam sintomas similares, então não há como saber ao certo qual foi usado sem ter uma amostra para testes.

Da esquerda para a direita: Sarin, soman, VX e tabun. O átomo laranja é um fósforo; é por isso que são chamados “organofosforados”. O carbono é preto, nitrogênio é azul, oxigênio é vermelho, enxofre é amarelo e o flúor é verde. O átomo de fósforo é a parte da molécula que reage com o acetilcolinesterase.

A Reuters diz que a arma usada provavelmente foi o sarin, já que o governo sírio aparentemente tem estoques desse químico em particular. O sarin é um químico com uma história feia, aliás. Parece que nos anos 1950 o governo britânico testou ilegalmente o sarin em alguns dos seus próprios soldados de confiança a quem foi dito que eles participariam de um teste para uma nova vacina contra resfriados. Um desses soldados morreu no processo. O Guardian tem a história, em inglês, aqui.

Esses quatro químicos são mais difíceis de se fazer do que… digamos… metanfetamina. Não são coisas que você poderia preparar no quintal de casa. Porém, qualquer químico sintético-orgânico mais ou menos decente é capaz de produzi-los. Assim, é bem possível que qualquer governo que queira muito essas armas acabe por consegui-las… motivo pelo qual elas são tão problemáticas.

O que acontece quando você é envenenado por um agente nervoso?

Seu cérebro perde a capacidade de controlar seus músculos, incluindo os do diafragma que permitem a você respirar, então você acaba tendo convulsões (seus músculos se contraem incontrolavelmente), baba, perde o controle da sua bexiga, seu peito ficar apertado, você para de respirar e, por fim, morre de falência respiratória. Não é um jeito fácil de morrer. Qualquer um que decida disparar uma coisas dessas contra civis não é alguém decididamente insano.

Como os agentes nervosos atuam?

Seu cérebro envia sinais a seus músculos através de nervos chamados neurônios motores. Quando ele se encontra com o músculo, o neurônio libera uma substância chamada acetilcolina que diz para o músculo se contrair. A acetilcolina é quebrada por uma enzima chamada acetilcolinesterase. É uma “esterase” porque ela quebra uma ligação de “éster” na acetilcolina; um éster é duas moléculas de oxigênio ligadas a um carbono no meio de uma cadeia de carbonos. Ligações de éster tendem a quebrar lentamente na água, mas uma enzima como a acetilcolinesterase acelera essa reação para que ela aconteça rapidamente.

Isso é acetilcolina. Ela faz seus músculos se contraírem. A acetilcolinesterase a quebra rapidamente de modo que seus músculos não permanecem contraídos quando o sinal do seu cérebro dizendo para que ela faça isso é enviado.

Um organofosforado como o sarin se encaixa nas proteínas acetilcolinesterases como uma chave em uma fechadura — porque seu formato permite que ele se encaixe ali. Uma vez que esteja no local, ele reage com um aminoácido chamado serina na molécula acetilcolinesterase e passa a ficar preso a ela. Uma molécula de acetilcolinesterase que contém um organofosforado preso a ela perde a capacidade de quebrar a acetilcolina, então a acetilcolina fica por ali e seus músculos acham que o cérebro está dizendo para eles permanecerem contraídos porque a acetilcolina não vai embora — ela ainda está lá. Seus músculos se contraem e ficam assim — e a essa altura você já não consegue mais respirar. É por isso que as pupilas dos seus olhos encolhem (porque o grupo de músculos da íris se contraem e não conseguem relaxar).

A reação entre o sarin e a acetilcolinesterase é muito rápida e difícil de ser revertida. Por isso o sarin (e outros agentes nervosos) são mortais mesmo em pequenas doses — mesmo em baixa concentração os agentes nervosos reagem com a acetilcolinesterase muito rapidamente. Você pode absorver agentes nervosos pela pele. Esses compostos são, na realidade, líquidos à temperatura ambiente, aliás. Muitas pessoas os chamam de “gases nervosos” e com uma boa razão: eles são bem voláteis, o que significa que podem evaporar facilmente. Mas se pulverizá-los, liberará uma névoa de gotículas chamada aerossol, como aquelas latas que dão cheirinho no ambiente, ou inseticidas domésticos, e as pessoas inalarão essas gotículas muito facilmente.

Existe algum antídoto?

Sim. É um químico chamado 2-PAM, que se parece com isso:

Em uma das pontas, o 2-PAM é o que se chama de um grupo oxima, um nitrogênio duplamente ligado a um carbono com um OH nele. Este grupo é bastante polar (os elétrons não são distribuídos igualmente) e o OH é rico em elétrons, então ele reage com o fósforo do sarin que fica preso nas serinas do acetilcolinesterase. Quando faz isso, a acetilcolinesterase fica liberada para voltar a fazer seu trabalho.

Isso não funciona sempre porque um organofosforado que já reagiu com um acetilcolinesterase pode partir para uma reação subsequente chamada “envelhecimento”**, o que garante que ele não possa ser removido pelo 2-PAM. Essa reação de “envelhecimento” é devagar na maioria dos agentes nervosos, porém.

Normalmente, os médicos administram o 2-PAM em conjunto com atropina, um químico da erva daninha Jimson que bloqueia a acetilcolina de se combinar com um tipo específico de receptor nas células musculares. Isso ajuda na recuperação de envenamento por agentes nervosos.

Dependendo do agente e do tanto dele que foi inalado, a injeção de 2-PAM e atropina pode salvar sua vida — se o médico for rápido o bastante. Tenho a ligeira impressão de que o exército sírio não estava dando passagem para ambulâncias irem ao socorro dos civis.

Como eles foram inventados?

Por acidente. Um químico alemão estava tentando criar um poderoso novo pesticida. Ele não sabia nada dessas coisas sobre acetilcolinesterase; ele apenas sabia que alguns compostos de fósforo com grupos baseados em carbono combinados com eles pareciam fazer um belo trabalho de extermínio de insetos. Ele não sabia exatamente por que, mas sabia que tinha alguma coisa importante nas suas mãos. Então ele continuou aperfeiçoando esses componentes, fazendo pequenas alterações, acrescentando grupos de químicos diferentes e, em seguida, testando-os para ver se faziam um trabalho melhor matando insetos, até que um dia ele fez um negócio cujo cheiro lembrava vagamente o de maçãs. Ele deu uma cheirada e quase morreu.

Rumores sobre esse novo componente chegaram aos ouvidos do governo alemão. Um componente químico letal em pequenas doses e que tem cheirinho de fruta? Pode apostar que Hitler ficou bem interessado.

Por que pesticidas como o malation não matam humanos se sua estrutura é tão similar às dos agentes nervosos?

Dê uma olhada em um malation, abaixo:

Repare que ele se parece muito com os agentes nervosos, mas tem diferenças suficientes para se diferenciar deles, certo? Essas diferenças significam que pesticidas organofosforados são normalmente mais tóxicos para insetos do que para humanos, porque suas diferenças estruturais mudam a forma com que o químico é absorvido, metabolizado e assim por diante. O malation, por exemplo, não é muito tóxico para humanos porque seu corpo quebra e expele ele muito rapidamente*. Como a maioria dos pesticidas organofosforados, ele também se quebra muito rápido no ambiente.

Ainda assim, a maioria dos pesticidas organofosforados são altamente tóxicos para humanos. O paration, por exemplo, é tão tóxico que você pode considerá-lo um agente nervoso fraco. Fazendeiros são as pessoas em maior risco, e químicos como o paration têm, de fato, causado inúmeras mortes acidentais entre eles, especialmente em países mais atrasados. A maioria das mortes por químicos tóxicos usados na agricultural são culpa dos pesticidas organofosforados.

É notável o tanto de história que os pesticidas organofosforados e as armas químicas têm em comum. O VX, por exemplo, é baseado em um agente nervoso chamado VG, que era originalmente vendido como um pesticida até que alguém finalmente percebeu como ele era incrivelmente tóxico para seres humanos.

Existem alternativas para matar insetos que não sejam inseticidas organofosforados?

As alternativas seriam os pesticidas carbamatos, os organoclorados e e os piretróides.

O carbamato funciona derrubando a acetilcolinesterase do inseto. A forma com que ele desativa a acetilcolinesterase é um pouco diferente da dos organofosforados. De qualquer forma, alguns são igualmente perigosos para a saúde de humanos e animais — carbofuran é um dos que me vêm à cabeça. A maioria dos carbamatos tendem a quebrar rapidamente no ambiente.

Os pesticidas organoclorados são hidrocarbonetos ligados a átomos de cloro. O DDT é o mais conhecido. A maioria dos pesticidas organoclorados tendem a quebrar lentamente no ambiente. Como eles são solúveis na gordura do seu corpo e de outros animais, só conseguimos nos livrar dele lentamente, motivo pelo qual tende a se acumular na cadeia alimentar. A EPA (agência de proteção ambiental dos EUA) baniu ou restringiu o uso da maioria desses pesticidas devido ao seu impacto ambiental.

Os piretróides são compostos baseados em um químico que mata insetos encontrado no crisântemo. Eles funcionam de uma maneira completamente diferente da das famílias de organofosforados e carbamatos; seus alvos são os canais iônicos das células nervosas. Seu fígado quebra a maior parte desses rapidamente, e eles tendem a ser muito menos tóxicos a pássaros e mamíferos do que pesticidas organofosforados, o que tem ajudado a aumentar sua popularidade especialmente em locais cobertos. A maioria tende a se quebrar rapidamente no ambiente. Tudo isso não significa, porém, que sejam totalmente benígnos. Eles matam insetos “do bem”, como abelhas, e são extremamente tóxicos para peixes.

Existem outros inseticidas por aí, mas essas são as maiores classes.

Ok… Deu pra notar que nem todos os inseticidas são criados da mesma forma. Mas parece que até o menos nocivo deles ainda tem pontos negativos. Existe outra forma de matar insetos sem ser usando esses componentes?

Que bom que você perguntou. Existe, embora muita gente não goste dele. Voltarei a falar disso em um post futuro. Por ora, voltemos à Síria.

Sim, a Síria. O que devíamos fazer a respeito?

De certo, tenho minhas opiniões sobre o que deveria e o que não deveria ser feito, como qualquer pessoa. Mas este aqui não é um blog de política e minha humilde opinião sobre o tema não vale tanto assim. Sendo assim, deixarei essa parte para o debate aí nos comentários.

* O ponto importante aqui é que o malation é uma “pró-droga” se você quiser; dentro do fígado humano ou de um inseto, enzimas citocromo P450 o convertem em malaoxon, ou seja, aquele enxofre ligado duplamente é substituído por um oxigênio, e o malaoxon é o composto que de fato liga e desativa a acetilcolinesterase. Em humanos e outros mamíferos, as enzimas carboxilesterase quebram o malation rapidamente, o que limita a quantidade de malaoxon que é produzida. Alguns insetos parecem ter desenvolvido resistência ao malation através de mutações que resultaram em altos níveis de enzimas carboxilesterase, de modo que eles podem tolerar níveis mais altos de pesticidas.

** A verdadeira reação é a hidrólise de uma das ligações éster para o átomo de fósforo ligado à serina.


O Puff the Mutant Dragon é um químico analítico da área da biotecnologia com um histórico em bioquímica que mantém um pequeno blog que tenta espalhar as maravilhas da ciência e combater equívocos. Você pode ler mais sobre o trabalho dele(a) no blog.

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