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Em 2030, você não será dono de nada. Tudo será na base do aluguel de serviços

O seu carro, a sua casa, o seu celular - tudo poderá ser alugado e nada será nosso, de fato. Absurdo? Nem tanto.

Ilustração: Angelica Alzona/Gizmodo

Ilustração: Angelica Alzona/Gizmodo

*Este é um artigo de autoria de Victoria Song, repórter do Gizmodo US. Algumas opiniões podem refletir a realidade apenas nos Estados Unidos.

Possuir coisas, sejam elas objetos, roupas, eletrônicos, livros ou peças para decorar o lar, costumava ser algo bem mais simples. Você ia até uma loja, pagava pelo produto, levava para casa e pronto — ele era seu para sempre. Só que isso mudou graças ao avanço da tecnologia. E é por ela que, até 2030, ter objetos para chamar de seu se tornará um conceito obsoleto.

Muitos artigos já foram escritos sobre como os Millennials não estão tão interessados ​​em possuir coisas como suas gerações anteriores, mas em como falam “mais da experiência” de alguma coisa do que bens físicos. Há um fundo de verdade nisso, mas a mudança para os serviços foi premeditada há muito tempo.

Em 2016, o Fórum Econômico Mundial (FEM) lançou um vídeo no Facebook com oito previsões para o mundo em 2030. “Você não terá nada. E você será feliz. O que você quiser, você vai alugar. E será entregue por drone”, dizia o clipe.

“Tudo o que você considerava um produto agora se tornou um serviço”, diz outro artigo do FEM publicado na Forbes. “Temos acesso a transporte, acomodação, alimentação e tudo o que precisamos em nosso dia a dia. Uma por uma, todas essas coisas se tornaram gratuitas, então acabou não fazendo sentido para nós possuirmos muito mais coisas”.

A previsão do FEM é excessivamente otimista, mas este é o futuro para o qual estamos avançando rapidamente. Alugo o meu apartamento e, portanto, todos os eletrodomésticos nele contidos. Se eu quisesse, poderia alugar os meus móveis e roupas. Claro, tenho computador e smartphones próprios, mas há muitas pessoas que usam aparelhos fornecidos por empresas. E se eu não quisesse isso, sempre poderia contar com aluguel de eletrônicos. Gosto de cozinhar e fazer compras, mas poderia me inscrever em um serviço de kit de refeição e encerrar o dia. Eu nem precisaria de gadgets como torradeiras, panelas de arroz, liquidificadores, fritadeiras ou qualquer coisa além de um micro-ondas. Para se locomover, existem apps como Uber e 99.

Você pode estar se perguntando: o que há de errado nisso? O consumismo é exaustivo e, no que diz respeito à habitação, a propriedade não é as mil maravilhas que parece ser. De certa forma, não possuir coisas é mais fácil. Você tem menos compromissos, menos responsabilidade e a liberdade de ir para onde e quando quiser. Existem vantagens em possuir menos. Porém, há um grande problema.

Você não é dono do software

Quando você não possui nada, está trocando autonomia por conveniência. Você só precisa olhar para a Internet das Coisas (IoT) para ver aonde a narrativa começa a rachar.

Para usar um exemplo recente, a empresa de aparelhos de atividade física Peloton fez um recall massivo de uma esteira depois que várias crianças, animais de estimação e adultos ficaram feridos usando a máquina. Parte da solução foi lançar uma atualização de software que requer uma senha de 4 dígitos para evitar o uso não autorizado. No entanto, houve um desentendimento online quando os usuários leram as letras miúdas: o recurso “Just Run” da esteira, que permitia aos proprietários do Peloton correr sem fazer aulas, mudou de um recurso gratuito para um modelo pago por assinatura.

E aconteceu o que já se esperava: usuários enfurecidos. A Peloton, então, afirmou que daria a todos os donos da esteira três meses grátis de assinatura enquanto trabalhava em uma maneira de habilitar o tal recurso sem exigir pagamentos. Indiscutivelmente, a maioria dos consumidores que adquiriram o produto nem estavam zangados com isso. Mas houve sim uma certa revolta daqueles que pagaram mais de US$ 4 mil por uma esteira que, tecnicamente, não cobrava a mais por qualquer outro recurso.

A realidade é que, quando você compra um dispositivo que requer software proprietário para funcionar, você não possui o sistema. O dinheiro que você entrega é uma taxa de inscrição, nada mais que isso.

Os Termos de Uso. Deles, não seus

Ao adquirir um produto ou assinar um serviço, você concorda com os termos e diretrizes de uso de outras pessoas ou empresas. Nunca teve nada a ver com os seus direitos.

Em 2020, a Sonos retirou do mercado seus alto-falantes mais antigos, muitos dos quais ainda funcionavam. Isso provocou indignação. Novamente, os usuários compraram hardware e esperavam que aquela compra única significasse que eles possuíam totalmente os dispositivos. Mas não foi o que aconteceu: ao comprar esses dispositivos, os consumidores compraram acesso aos serviços da Sonos, e a Sonos “alugou” o hardware para os clientes. Isso significa que a própria Sonos é quem define quando um determinado aparelho está no fim de sua vida útil, estipulando quando é a hora de retirá-lo do mercado — e também da casa do consumidor.

Outra empresa que faz isso é a Whoop, que tem um rastreador de fitness de recuperação. O acessório em si não custa nada, e a companhia envia o produto gratuitamente para qualquer cliente. O produto em si, na verdade, é o aplicativo da empresa, que cobra uma taxa mensal de uso de US$ 30.

Os dispositivos conectados requerem servidores. Os servidores custam dinheiro. Quando você, consumidor, paga uma taxa única, isso não ajuda a empresa a manter as coisas funcionando. É por isso que existe a obsolescência planejada — conceito este que a Apple, uma empresa que é conhecida por seu hardware, começou a adotar para seus serviços desde 2019. A Fitbit, por sua vez, lançou uma assinatura premium. E a Netflix já estuda formas de impedir o compartilhamento de senhas entre múltiplos usuários. Sem contar que praticamente todas as empresas de entretenimento estão lançando os próprios serviços de streaming.

Quando o hardware é apenas um recipiente para software e não uma coisa útil por si só, você realmente não consegue decidir nada. É a empresa que escolhe quando interromper o envio de atualizações vitais. Também pode decidir o que fazer com o produto depois que ele estiver “morto”.

Mesmo antes de a Sonos aposentar seus produtos, a empresa ofereceu um método para as pessoas reciclarem aparelhos antigos em troca de um desconto em modelos mais novos. No passado, quando você não queria mais um dispositivo, podia colocá-lo para revenda, doá-lo, jogá-lo fora ou deixá-lo acumular poeira dentro do guarda-roupa. No entanto, para obter esse desconto, você tinha que concordar em bloquear o dispositivo e enviá-lo de volta para a Sonos ou devolvê-lo a uma recicladora de lixo eletrônico. A Sonos reverteu essa decisão, mas só depois que consumidores reagiram contrários ao movimento.

Essa é a realidade de um mundo que prioriza o serviço. O poder mudou para que as empresas definam os parâmetros, e os consumidores, por sua vez, tenham que se contentar em escolher a alternativa de menor impacto negativo. Mesmo assim, os usuários não têm escolha. A internet agora é considerada um utilitário, e não é como se pudéssemos colocar os dispositivos conectados de volta na caixa de Pandora. Você pode cancelar um serviço agora, mas isso será cada vez mais inviável. Na verdade, você só tem a ilusão de escolha, mesmo quando as companhias nos dizem que temos mais opções do que nunca.

A raiz do problema: DMCA

A Seção 1201 da Digital Millennium Copyright Act (DMCA) basicamente torna ilegal contornar “bloqueios digitais” que protegem o software proprietário de uma empresa. É por isso que empresas de tecnologia podem anular sua garantia se você desbloquear determinados dispositivos ou forçar você a gastar mais dinheiro para consertar um aparelho quebrado em uma loja autorizada. Ativistas ganharam isenções para o DMCA nas últimas décadas, mas sempre há uma brecha na lei. O Copyright Office apenas analisa novas isenções a cada três anos, e três anos no mundo da tecnologia é muito tempo.

O ideal utópico do futuro proposto pelo FEM não pode existir enquanto qualquer pessoa puder ter ideias legalmente. As empresas têm argumentado por décadas que, por serem donas do software, você está licenciando apenas hardware. Se sua casa inteligente do futuro vier com o próprio endereço de e-mail e sistema operacional, o que acontecerá quando a empresa que a controla publicar uma atualização de que você não gosta? E se eles removerem um recurso que você ama e do qual depende? Mudar do iPhone para o Android, do Google Assistente para a Amazon Alexa ou do macOS para o Windows pode ser uma situação não muito agradável para todo mundo. Agora imagine fazer isso para toda a sua casa e tudo o que há nela que possa se conectar à Internet. Seu termostato, sua geladeira, suas lâmpadas, seus porta-retratos, suas TVs, suas camas e todos os aparelhos conectados que ainda não inventamos. Algumas pessoas terão força de vontade para fazer essas alterações manualmente. Mas a maioria de nós? Provavelmente vamos nos contentar com a escolha mais fácil.

Um exemplo: recentemente, me mudei para um novo apartamento. Graças ao preço em queda devido à pandemia de Covid-19, é um edifício com comodidades elegantes. Recebo e-mails sempre que chegam pacotes, tenho acesso a várias partes do edifício e não menos do que sete aplicativos separados para controlar portas, reservar um lugar na piscina, pagar aluguel e solicitar manutenção. Tem até uma mini rede social para moradores do prédio. É tudo muito conveniente até que não seja.

Um dia, o sensor que dá acesso para entrar e sair da garagem não funcionou bem. Meu marido e eu estávamos presos. Nossas opções eram esperar que alguém nos encontrasse ou buscar a ajuda de uma equipe. Eu esperei, ele procurou ajuda. Ele então ficou preso em um elevador porque, novamente, os controles não estavam funcionando. Por uma meia hora, ficamos separados, presos e tínhamos que torcer para que os funcionários da construção nos encontrassem. Foi um lembrete gritante de que, por mais que paguemos o aluguel, só compramos acesso temporário a este prédio. Não controlamos se a empresa de gestão vai mudar ou nos cortar dos aplicativos que nos permitem pagar aluguel, fazer solicitações de manutenção, conceder acesso a amigos e familiares ou reservar instalações comuns.

Mas esse é o problema do aluguel, certo? Certamente, aqueles de nós que podem pagar a casa própria estão livres desse absurdo. Até certo ponto. Um dia, no futuro, se você comprar uma casa física, provavelmente terá que alugar o software que a opera. Você não terá uma palavra a dizer sobre as atualizações que são lançadas ou os recursos que são retirados. Você terá menos voz quando renovar ou atualizar, mesmo se quiser continuar usando a casa como está. Você pode até não ter o direito de fazer reparos sozinho. Só porque você comprou uma máquina de lavar inteligente, não significa que terá permissão para consertá-la por conta própria se ela quebrar. Olhe para a Apple e General Motors: são empresas que se baseiam no argumento de que as pessoas que compram seus produtos não têm permissão para repará-los.

O mais assustador é que só parece terrível se você tiver energia mental para se preocupar com os princípios. Tomar decisões o tempo todo é difícil, e é mais fácil quando outra pessoa limita as opções que você pode escolher. Não é difícil fechar os olhos para um problema se, na maioria das vezes, sua vida é um pouco mais simples. Não é isso que toda empresa de tecnologia diz que está tentando fazer? Tornar sua vida um pouco mais simples? Quem sabe em 2030.

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