Bactéria causadora da hanseníase estava na América antes dos europeus

Principal espécie, Mycobacterium leprae, foi trazida por europeus, mas M. lepromatosis já estava no continente há pelo menos mil anos

Ahanseníase tem uma longa história na América, de acordo com estudo publicado esta semana (29/5) na revista científica Science. Há mais de mil anos, antes da ocupação europeia, a bactéria Mycobacterium lepromatosis provavelmente estava no continente inteiro.

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É uma novidade porque até 2008, quando a espécie foi descrita, se conhecia apenas o principal agente causador da doença, M. leprae, responsável por cerca de 200 mil novos casos a cada ano no mundo todo. A espécie teria sido trazida para o Novo Mundo a partir do final do século XV, de carona com os europeus e os escravizados trazidos da África. Esse entendimento permanece.

A história começou a ganhar outros contornos porque o geneticista e bioinformata argentino Nicolás Rascovan, pesquisador do Instituto Pasteur, na França, em 2018 detectou M. lepromatosis ao sequenciar DNA antigo de uma amostra humana coletada em um sítio arqueológico no Canadá e mantida no Museu Canadense de História. Mais recentemente ele obteve amostras armazenadas no Museu de La Plata, na Argentina, de dois sítios arqueológicos na Patagônia, que analisou com anuência das comunidades indígenas locais. E ali também encontrou material genético da mesma espécie de bactéria. Em conjunto, esses achados permitem dizer que há cerca de mil anos M. lepromatosis estava no norte e no sul do continente. Seria, portanto, improvável que não existisse nos 10 mil quilômetros que separavam um local do outro.

“Também detectamos M. lepromatosis em uma amostra atual do Brasil usando uma técnica chamada PCR, mas não foi possível obter sequências genômicas”, detalha Rascovan em e-mail a Pesquisa FAPESP. “Tanto as evidências contemporâneas de pacientes brasileiros quanto as do estudo publicado agora sugerem que essa bactéria esteve – e talvez ainda esteja – muito mais amplamente distribuída do que pensávamos”, completa. Para preencher essas lacunas, o geneticista defende um mapeamento mais abrangente que permita investigar a diversidade histórica e atual do microrganismo. “Nosso trabalho deve incentivar dermatologistas, hospitais e pesquisadores a dedicarem mais recursos e esforços ao monitoramento e à detecção desse patógeno, tanto em humanos quanto em animais.”

Não é possível, com os dados disponíveis, reconstruir o histórico de disseminação pelo continente. A bactéria pode ter chegado há mais de 10 mil anos com as populações humanas que vieram da Sibéria e se espalharam da América do Norte para o sul, ou ter infectado esses primeiros americanos a partir de animais já presentes no continente. Fora da América, M. lepromatosis só foi encontrada em esquilos do Reino Unido. Uma hipótese ainda especulativa é que tenha sido transmitida em algum momento dos últimos três séculos por esquilos de outra espécie introduzidos a partir dos Estados Unidos. “Ou algum outro animal, inclusive seres humanos”, completa Rascovan.

Passado e presente
O estudo analisou 389 amostras antigas – sequenciadas agora ou usando dados disponíveis em bancos públicos – e 408 contemporâneas, colhidas de pacientes com hanseníase em cinco países: Estados Unidos, México, Guiana Francesa, Brasil e Paraguai. Em 36 dessas amostras atuais, a maior parte do México, o agente patogênico era M. lepromatosis. Uma delas era brasileira, de Pernambuco.

A maior parte das amostras brasileiras vinha de pacientes da região amazônica – Pará e Amazonas – onde está o grupo do médico dermatologista e hansenologista Claudio Salgado, da Universidade Federal do Pará. Além de atender pacientes, ele também lidera um curso de especialização para hansenologistas. “Não formávamos gente há 40 anos”, afirma.

O médico ressalta a importância do trabalho de monitoramento constante, que lhes permite contribuir para um estudo amplo como o liderado por Rascovan. O Brasil é o segundo país em número de casos, atrás da Índia. Em 2023, de acordo com boletim do Ministério da Saúde lançado no início deste ano, foram registrados quase 23 mil novos casos, um aumento de 16% em relação a 2022. A maior parte deles se concentra nas regiões Norte e Centro-Oeste. Os sintomas se manifestam na pele, com manchas, nódulos e perda de sensibilidade, e a doença pode afetar o sistema nervoso, causar um quadro de fraqueza generalizada e levar à deficiência física.

Dente escavado em sítio arqueológico argentino, com bandeira representando povos indígenas locais: fonte para a extração de DNA antigoNicolás Rascovan / Pasteur

Salgado considera essencial ajustar os protocolos para buscar M. lepromatosis. “Por enquanto os casos estão concentrados no México, mas deve haver mais por aí.” Como a espécie ainda não foi suficientemente estudada, ainda nem se sabe quais as diferenças do quadro clínico em relação à doença causada por M. leprae, muito mais comum. Para Salgado, a presença de diferentes espécies da bactéria pode ser em parte responsável por manifestações diversas da doença e pela atuação limitada da medicação para alguns pacientes – além da necessidade de se atualizar o antibiótico usado, o mesmo há décadas. “As bactérias evoluem e adquirem resistência”, alerta o médico.

É uma doença bastante negligenciada, em parte por causa da população que atinge, caracterizada por pobreza e exclusão, de acordo com a médica veterinária Patricia Rosa, do Instituto Lauro de Souza Lima, em Bauru, no interior paulista, também coautora do estudo e colaboradora habitual do grupo paraense. “A hanseníase não mata e está carregada de estigma, talvez por isso atraia pouco investimento, mas é complicada pelas manifestações no organismo que se tornam crônicas”, explica ela.

O grupo de Rosa estuda Mycobacterium leprae em modelo animal, inoculando em camundongos. É uma forma de entender melhor como a doença atua, como o organismo reage à medicação e também de manter cepas da bactéria, que, diferentemente de outras, não sobrevive em meio artificial.

O estudo em animais é importante, ainda, para entender a disseminação da doença. “Se não sabemos quais são os outros hospedeiros, não temos como conter a cadeia de transmissão”, afirma Rosa. Alguns grupos no Brasil buscam fazer esse rastreamento em busca dos reservatórios das duas espécies de Mycobacterium. Um deles é o da médica epidemiologista Rita Donalisio, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que não participou do estudo da Science. Um estudo publicado em 2024 na revista Acta Tropica descreve os resultados da amostragem de 78 tatus, coletados em um trabalho que levou a equipe por 40 mil quilômetros de estradas em todos os biomas do país em busca de animais atropelados. “Esperávamos achar M. lepromatosis, o tatu é um reservatório conhecido para a hanseníase”, conta a pesquisadora, que ficou frustrada por não encontrá-la. Já Mycobacterium leprae se comprovou frequente nesses animais. “É importante porque em muitas regiões as pessoas têm contato próximo com tatus, para alimentação e diversos usos da carapaça.”

Donalisio explica que falta muito esforço de diagnóstico de M. lepromatosis no Brasil. Como as manifestações clínicas são parecidas, seria necessário disseminar análises moleculares para detectar a bactéria. Para ela, a descoberta de que a espécie já circulava na América em tempos pré-colombianos é importante para aumentar o conhecimento sobre a bactéria e torna ainda mais provável a existência de reservatórios animais, que é preciso localizar. “Na perspectiva da Uma Só Saúde, One Health, incluir animais-sentinela na vigilância epidemiológica é um recurso importante para alertar que um patógeno está circulando em uma região”, propõe.

Mais do que completar o conhecimento, o artigo da Science revela o quanto ainda há por descobrir. Para Rascovan, do Pasteur, é bem provável que haja espécies desconhecidas de Mycobacterium por aí. “Em nosso estudo detectamos linhagens muito antigas e raras de M. lepromatosis, o que sugere que outras ainda não identificadas possam estar circulando no continente, possivelmente em reservatórios animais ou em regiões onde o diagnóstico genético não é realizado de forma sistemática”, sugere.

O grupo também detectou uma separação de quase 1 milhão de anos entre o surgimento das espécies M. leprae (provavelmente na Eurásia) e M. lepromatosis, na atual América. “Isso nos obriga a repensar em que contexto temporal e em qual região geográfica essa diversificação ocorreu, se outras espécies ou subespécies também podem ter se ramificado desde então e onde estariam hoje.” O pesquisador argentino deixa um recado final: o trabalho mantém os achados anteriores de que M. leprae foi trazida às Américas pelos europeus e teve um impacto significativo sobre as populações indígenas.

Artigos científicos
LOPOPOLO, M. et alPre-European contact leprosy in the Americas and its current persistenceScience. On-line. 29 maio 2025.
MONSALVE-LARA, J. et al. Prevalence of Mycobacterium leprae and Mycobacterium lepromatosis in roadkill armadillos in BrazilActa Tropica. v. 258, 107333. out. 2024.

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