Big Brother Apple e a morte dos programas

Há mais de 25 anos, um comercial nos alertava sobre o futuro dos computadores. Fechados. Censurados. Um "jardim de pura ideologia". Estranho: é exatamente assim que o futuro dos computadores da Apple parece ser, com a chegada da Mac App Store.

Há mais de 25 anos, um comercial nos alertava sobre o futuro dos computadores. Fechados. Censurados. Um "jardim de pura ideologia". Estranho: é exatamente assim que o futuro dos computadores da Apple parece ser, com a chegada da Mac App Store.

Uma das maiores novidades do OSX 10.7 — Lion — é a App Store para Mac. É a filosofia do iPhone e do iPad aplicada ao computador desktop, e isso pode ser incrível. Acabariam-se os vírus. Acabariam-se os programas instáveis. Um paraíso computacional, onde tudo funciona como deveria, onde as ruas são pavimentadas com alumínio escovado e os céus são sempre claros e nítidos como uma tela Retina. Uma Camelot eletrônica? Para alguns, talvez.

Quando programas se tornam "Apps"

Os computadores costumavam rodar aplicativos, ou programas, mas a Apple vem transformando lentamente tudo em "apps". A palavra é bonitinha. Curta, direta, simples. Inofensiva. Mas também banalizadora. Apps são descartáveis. A palavra "aplicativo" é mais cheia; ela tem certo peso e distinção — ao menos cognitivamente. Dá para chamar o Final Cut Pro ou o InDesign apenas de apps? Compras de impulso que você experimenta, dá uns toques e nem lembra mais que existem? O simples ato de etiquetar todos os programas de terceiros com a palavra "app" os torna muito menos significativos. Pequenos pedaços de conteúdo se abrigando fragilmente debaixo das asas da onipotente plataforma da Apple.

Atualmente, baixar e instalar um aplicativo é complicado — mesmo nos Macs, que se dizem tão simples: encontre o que você precisa. Compare opções. Vá ao site do desenvolvedor. Baixe uma imagem de disco. (Ou, se tiver sorte, um arquivo ZIP.) Monte-o. Puxe o aplicativo da imagem e solte-o na pasta de Aplicativos. Isso não é trivial, e muita gente erra. Então, uma App Store que simplifica radicalmente o processo de procurar, escolher e instalar programas pode ser uma ideia poderosa para tornar a computação melhor e mais fácil, certo? Para alguns, claro — é só olhar para o iPhone como um exemplo de como a acessibilização de uma tecnologia pode alterar radicalmente uma indústria.

A facilidade da App Store móvel mudou os smartphones para sempre. Legiões de aversos à tecnologia puderam jogar fora seus antigos feature phones (que tinham câmera, várias funções, mas não um sistema que permitisse tanta customização) e abraçar o smartphone mais incrivelmente fácil de operar até então. Eles se sentiram confortáveis e fortalecidos ao mesmo tempo. Mas a questão aqui é se as pessoas querem a mesma experiência nos seus computadores. Só porque a linha que divide um smartphone de um computador portátil está se tornando cada vez mais invisível, não significa que as duas tecnologias precisem ser tratadas da mesma forma.

Quando você só está tentando assistir a um vídeo, ler um livro ou jogar alguma coisa, ninguém quer complicação. Então, de certo modo, não tem problema que a Apple mantenha um controle tão firme sobre os apps do iPhone e iPad. Eles são tecnicamente computadores, sim, mas nós esperamos uma experiência bem diferente. É o preço que se paga pela computação sem complicações.

A Apple quer trazer esta experiência para todos os computadores pessoais. E isso é elogiável, sob vários aspectos. Mas parte do que torna um PC, Mac ou notebook mais poderoso do que um iPad é o fato de você poder os programas que quiser. Quaisquer programas. Um programinha de macro que automatiza a escrita de frases longas com apenas duas ou três letras. Um programa de notificações do qual todos os outros programas podem tirar vantagem. Um cliente de BitTorrent. Para o método da Apple funcionar, ela precisa controlar cada faceta da experiência de uso do computador, transformando a máquina em um sistema fechado. Uma Camelot eletrônica? Está mais para uma Stepford: quando você olha por baixo da superfície brilhante e limpinha da Mac App Store, é algo meio assustador.

Por dentro da App Store

Algumas das regras da Apple para a Mac App Store fazem sentido. "Apps que travem serão rejeitados". "Apps não podem transmitir dados de localização sem permissão do usuário". Estas são lógicas. Mas as regras ficam bem restritivas, e rápido: não serão permitidos apps em versões "beta", "demo", "trial" ou "teste". Apps não podem instalar ícones no dock. Não podem "drenar rapidamente a bateria do produto, ou gerar calor excessivo". Ah, e "apps que permitem compartilhamento ilegal de arquivos serão rejeitados". Ou seja, sem clientes de torrent. Ou betas, como o próprio FaceTime da Apple. Basicamente, programas poderosos que têm um grande alcance no sistema não se encaixam na definição de um app da Apple, mesmo podendo ser tremendamente úteis.

Mas o alcance da Apple vai além de controlar apenas a tecnologia: estão proibidos apps que "encoragem o consumo excessivo", ou que tenham nomes com variações dos produtos da Apple — como um "iTunz", por exemplo –, ou mesmo que se pareçam com os aplicativos da Apple. Apps com "metadados que mencionem o nome de qualquer outra plataforma de computação" também estão fora, assim como apps que repliquem programas pé-instalados, como o Mail. Apps também não podem carregar "imagens realistas de pessoas ou animais sendo mortos ou feridos", ou levando tiros. Adeus, Call of Duty. Apps no estilo "Chat Roulette"? Proibidos também.

O Futuro

É este o tipo de computador que nós queremos? Uma plataforma fechada, completamente controlada, que obedeça à visão de uma empresa sobre o que nós podemos assistir, baixar ou fazer? É assustadoramente fácil imaginar um Mac onde todos os seus apps precisam ser aprovados pela Apple; todas suas músicas, filmes e programas de TV vêm do iTunes, por streaming; todos os seus livros, do iBooks. E muitas pessoas estarão totalmente de acordo com isso, não verão problema algum. Mas à medida que o resto de nós se torna cada vez mais confortável em moldar a nossa experiência de computação de acordo com as nossas necessidades particulares, este ambiente tão estrito começa a parecerm claustrofóbico — chegando ao ponto do totalitarismo tecnológico. Ainda é chocante pensar que isso vem da mesma empresa que divulgou aquele comercial chamado 1984 há 25 anos, mesmo depois dos últimos anos da App Store no iPhone.

Por enquanto, os desenvolvedores de "apps" ainda podem vender e distribuir os seus programas da mesma forma que sempre fizeram, por fora da Mac App Store, e nós ainda poderemos baixá-los e instalá-los à moda antiga, à vontade. Mas os incentivos para que os desenvolvedores se submetam à App Store do Mac serão muito poderosos, possivelmente irresistíveis. Esta logo se tornará o principal caminho dos usuários para encontrar e adquirir aplicativos. Quanto tempo até se tornar o único? Parece inevitável, como a App Store cobrindo o OS X com a sua sombra. A Apple está lentamente começando a agarrar o resto do Mac com mais força para perseguir a sua visão do futuro da computação. Uma visão que é mais iOS do que OS X. Mais 1984 do que 2010.

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