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A guerra interna do Brasil contra a China

Até a última quinta-feira, o shopping Monti Mare, em plena avenida Paulista, em São Paulo, era o clássico monumento à ilegalidade das grandes cidades do Brasil: dezenas de lojinhas com produtos falsos, DVDs piratas e eletrônicos contrabandeados vendidos em grande parte por imigrantes ilegais, dividindo espaço com meia dúzia de coisas legítimas. Por algum motivo […]

Até a última quinta-feira, o shopping Monti Mare, em plena avenida Paulista, em São Paulo, era o clássico monumento à ilegalidade das grandes cidades do Brasil: dezenas de lojinhas com produtos falsos, DVDs piratas e eletrônicos contrabandeados vendidos em grande parte por imigrantes ilegais, dividindo espaço com meia dúzia de coisas legítimas. Por algum motivo aleatório, a justiça parou de fazer vistas-grossas e, em uma operação que envolveu dezenas de órgãos diferentes, encheu caminhões com mais de 3 mil sacos de produtos sem nota fiscal e fechou 350 lojas.

Durante todo o dia de operações os policiais comemoravam; um guarda ria da situação “dos china”, como dizia, e prometia encher muitos caminhões ainda. Do outro lado da rua, nas calçadas, vários comerciantes, muitos que mal falam português, dois dias e noites de vigília, esperando que o lugar abrisse as portas para poder recuperar suas coisas (de objetos pessoais ao dinheiro do caixa) e ver o tamanho do estrago em mercadorias apreendidas. Eles não se aproximavam das “autoridades”, com medo.

Seria hipocrisia dizer que eu compartilhava a comemoração dos fiscais e policiais. Eu moro perto e já comprei ali de pilhas recarregáveis a um Xbox 360. E fiquei por lá longas horas conversando com os caras para ver o lado deles na história.

Até conseguir que falassem, de fato, demorou. Só ficou claro para eles que eu não era “inimigo” quando alguém que já me vendeu uns R$ 1.000 em jogos de PS3 me reconheceu. “Eu estou do lado de vocês”, me apressei para ser aceito. “Não tem ‘lado’ pra escolher. A gente faz o que eles mandam. Se é pra fechar, a gente fecha. Se é pra ir embora, a gente vai, se manda morrer, a gente morre. A gente não pode escolher, a gente sabe disso”, falou um dos comerciantes mais antigos, um chinês de sotaque que mora aqui há anos e tem filhos brasileiros. Ninguém quis se identificar, com medo. No início da operação, ainda na manhã de quinta, alguns chineses foram reclamar com “as autoridades”, que exigiam documentos. Quatro foram encaminhados para a Polícia Federal para serem deportados – a notícia se espalhou e logo ninguém mais ousava perguntar algo a pessoas fardadas. “É melhor você perder a mercadoria do que perder a vida”, aconselhava um brasileiro a um chinês que bufava, olhando para os guardas, querendo entrar de volta.

Não havia como voltar. Era inútil. Tudo estava fechado, com policiais e seguranças. Ninguém do lado de fora sabia quando – e se – o shopping iria reabrir – pediam informações para mim. Já os brasileiros tinham estimativa melhor. “Lá pra quarta-feira tudo reabre. Eles vão catar tudo que é falsificado e sem nota. Eles me trataram com educação, mostrei o que tinha e consegui tirar algumas coisas. Mas com os ‘china’ eles não querem papo, vão apreendendo tudo”, me confidenciou um brasileiro que tem um estande no Monti Mare. Um chinês disse que não havia critério para apreensão, que os policiais entravam nos estandes e confiscavam tudo, sem saber o que tinha ou não nota. “Mercadoria não grita, não tem como saber o que é legal”, disse outro, que já calculava o valor das mercadorias perdidas.

Os inspetores que estavam na operação negaram o tratamento diferenciado, mas ele era bastante nítido. Pela não-comunicação entre os grupos, ficava claro que havia duas nações ali. Depois da meia-noite de sexta-feira, um comerciante brasileiro buscava tudo que tinha dentro de sua loja, carregando seu carro, tranquilamente – a porta só estava aberta para ele -, enquanto os chineses só olhavam. Minutos depois, quando os estrangeiros se juntaram para combinar não sei o quê, um inspetor chegou perto, desconfiado. “O que é isso aqui? Vai ter rebelião? Fica de olho nos caras aí, soldado”. Parecia um cena de filme, com aquele sargento vigiando os aliens aparentemente inofensivos.

No fim de semana os chineses foram para casa e a galeria continuou fechada. Mas segunda-feira eles voltam para ver quando que poderão reabrir seus negócios. Mesmo sabendo do risco de perder tudo, nenhuma das pessoas com quem eu falei disse que pensava em ir embora de vez. Houve um investimento ali. Pelo que sondei, um ponto no shopping popular em área nobre vale algo entre 100 e 150 mil Reais. O aluguel do cubículo sai na faixa dos R$ 6 mil, e para abrir o negócio ali é preciso pagar mais luvas de R$ 25 mil, pelo menos.

É muito dinheiro para um negócio absolutamente arriscado, você pode pensar. E eles têm total consciência que são absolutamente ilegais. “Coisa brasileira tem nota-fiscal, coisa que não é daqui não tem”, simplificou um deles. E se eles estão ali é por uma simples questão de oferta e demanda. “Faça uma enquete. Veja se alguém aí da rua quer que a gente feche. Ninguém tem dinheiro para comprar em shopping”. No que ele tem absoluta razão. Mas e a questão do “certo”?

Uma vez tive uma longa discussão com um amigo advogado sobre se era “ok” comprar os jogos (originais) nos tais xing-lings, pagando 40% a menos que nas lojas, ou em lojas online adeptas do importabando (pacote subfaturado como “presente”). Minha defesa era que eu continuava dando dinheiro aos fabricantes e desenvolvedores, então estava tudo certo. E minha negação em pagar impostos sobre isso era um caso de “desobediência civil”. Ele disse que o meu conceito era errado, mas eu gostei do termo, e passei a usar.

Ninguém acha que os chineses estão “do lado certo”. Mas essa perseguição é hipócrita, para dizer o mínimo: não conheço quem não compra ali. E se fecharem de vez esta galeria aqui, abrirão outra em outra rua. Eu não as defendo incondicionalmente, que fique claro. Quem vende produtos piratas ou cópias falsas tem de ser autuado, mercadorias apreendidas. E para todo o resto, não dá para defender: eles levam vantagens excessivas por não pagarem impostos. Mas nós nos acostumamos a eles. Assimilamos totalmente a existência. Quando minha mãe quis uma câmera nova, apresentei tr6es opções: esperar que a amiga fosse para os EUA, onde poderia comprá-la por uns R$ 1.200 (tascando um nada a declarar na alfândega, naturalmente); pagar R$ 1.700 no xing-ling da esquina (esse que fechou) ou encomendar da BHPhoto, que cobra um frete alto, mas que implica certamente  na sonegação de impostos alfandegários, mas demora um pouco mais. Os quase R$ 6.000 na Fnac, única loja “oficial” com o produto disponível, naturalmente não era uma opção.  As opções racionais (em relação ao preço original do produto) eram, em maior ou menor grau, ilegais. E achamos normal.

Perseguir os chineses, assim, sem fiscalização nos portos ou revisão das alíquotas de importação primeiro, é bobagem, é tapar o sol com a peneira. Mas não tenha dúvidas de que operações assim serão cada vez mais frequentes, pois, se o tratamento diferenciado dessa serve como exemplo, o Estado parece ter achado nos chineses “inimigos” do Fisco. E não são os únicos: veja os turistas brasileiros, que estão gastando rios no exterior. Eles não terão policiais para repreendê-los, mas deverão ser desestimulados com aumento da alíquota do IOF para compras no estrangeiro. No fundo nós que fazemos a feira nos EUA e os chineses que vendem muamba aqui são dois lados da mesma moeda: a nossa busca por atalhos para fazer com que nosso dinheiro valha o mesmo que o de habitantes de outros países quando vamos comprar eletrônicos. Só isso. Quem está mais errado?

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