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Os humanos do Paleolítico não viraram canibais por causa das calorias

Arqueólogo cria método comparativo de valores calóricos para descartar ideia de que a nutrição estava por trás do canibalismo do homem pré-histórico

Os humanos comem outros humanos desde o começo dos tempos, mas as motivações por trás dessa prática macabra são complexas e, frequentemente, incertas. Alguns antropólogos dizem que os canibais pré-históricos estavam apenas tentando arranjar um lanche nutritivo, mas uma nova pesquisa mostra que a carne humana — por mais gostosa que seja — não contém a mesma quantidade calórica que a de animais selvagens. Em outras palavras, o canibalismo não compensava a dor de cabeça, dadas as alternativas.

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Um novo estudo publicado na Scientific Reports é o primeiro a oferecer um destrinchamento calórico do corpo humano — dos pés à cabeça, passando por todas as partes deliciosas no caminho — para avaliar as motivações dos canibais pré-históricos. Único autor do estudo, o arqueólogo James Cole, da Universidade Brighton, usou esse dado para comparar o valor calórico de humanos ao de outros animais que viveram durante este periodo pré-histórico. Em geral, ele descobriu que o corpo humano tem o mesmo valor nutricional, em termos de gordura e proteína, que criaturas de tamanho equivalente, mas, quando comparados com uma presa maior, como mamutes e o rinoceronte lanudo, os humanos ofereciam significativamente menos calorias. O estudo sugere que qualquer interpretação de canibalismo durante o Período Paleolítico precisa levar outras considerações em conta, como práticas culturais, sociais e religiosas.

“Banquete canibal na Ilha de Tana”, por Charles E. Gordon Frazer (1863-1899) (Imagem: CC)

Durante o Período Paleolítico — que durou 2,6 milhões de anos e terminou dez mil anos atrás —, alguns bandos de humanos antigos e hominídeos (ou seja, espécies humanas extintas e todos os nossos ancestrais imediatos) se engajavam em práticas canibais, comendo a carne de seus próprios. Sabemos disso por causa das pistas que deixaram para trás — restos humanos exibindo traços de retirada da carne, marcas de cortes intencionais em torno das articulações, mordidas humanas e ossos quebrados para chegar à medula.

As razões para o canibalismo variam, indo de ritos religiosos e práticas mortuárias à intimidação de inimigo e à eliminação dos doentes e dos idosos. Alguns antropólogos, entretanto, acreditam que o canibalismo era feito principalmente por razões nutricionais (veja exemplos aqui, aqui e aqui). Mas há pouquíssima evidência para dar suporte a essa alegação, e nunca houve um bom método para os cientistas quantificarem os benefícios nutritivos do canibalismo. O estudo de Cole é o primeiro a corrigir esse lapso.

“É a primeira vez, pelo que eu sei, que alguém construiu um modelo calórico para o corpo humano”, Cole contou ao Gizmodo. “Isso foi feito para tentarmos conseguir uma compreensão melhor das motivações por trás desses episódios de canibalismo no Paleolítico.”

Para criar este rótulo sombrio e nada convencional, Cole pegou os pesos e os valores calóricos médios (de gordura e proteína) de cada parte do corpo. Isso foi feito por meio de uma análise de composição química, em quatro indivíduos masculinos. Os dados resultantes pertencem a humanos modernos, que não são exatamente como os do Paleolítico, ou a neandertais, cujo corpo maior permitia um pouco mais de massa muscular que o Homo sapiens.

A massa muscular total de um homem adulto (de 66 quilos) consiste de cerca de 32.376 calorias. Isso é suficiente para sustentar cerca de duas pessoas por uma semana. Algumas das partes do corpo mais nutritivas incluem o fígado (2.569 calorias), as coxas (13.354 calorias) e o conjunto da massa do tecido adiposo ou de gordura (impressionantes 50 mil calorias). Os dentes são um pequeno lanche, com 36 calorias a cada 0,04 quilos.

Armado com essas e outras informações, Cole comparou esses valores calóricos com aqueles de espécies de animais cujos restos foram encontrados em locais antigamente habitados por canibais paleolíticos, incluindo mamutes, rinocerontes lanudos, auroques, bisões, javalis, coelhos e espécies variadas de cervos. Ele descobriu que os humanos produziam valores nutricionais comparáveis a animais tamanho e peso parecidos, mas o corpo humano, sem surpresas, produzia significativamente menos calorias do que animais grandes. No caso mais extremo, a massa muscular de um mamute sozinha contém 3,6 milhões de calorias, estima-se. Um mamute de três mil quilos poderia sustentar 200 humanos por uma semana, apenas com sua massa muscular. Outras grandes fontes de calorias eram o rinoceronte lanudo (1,2 milhão de calorias), o bisão (612 mil calorias) e o cervo gigante (163 mil calorias).

“Em meu estudo, mostrei que os humanos e os hominídeos não têm um conteúdo calórico particularmente alto quando comparados com outros animais que são comumente explorados por nossos próprios ancestrais hominídeos, como o cavalo, por exemplo”, afirmou Cole. “Portanto, eu questionaria se a motivação para o ato de canibalismo era devido às necessidades nutritivas ou talvez algo mais motivado por questões sociais, como um recurso de defesa ou algo do tipo”.

Uma suposição subjacente do estudo é de que fazia mais sentido para os nossos ancestrais, de uma perspectiva de ingestão calórica, caçar ou prender animais em vez de se alimentar da população humana, independentemente desses humanos serem estranhos ou pertencerem ao mesmo clã.

“Eu argumentaria que caçar ou capturar um membro de sua própria espécie, que é tão inteligente e capaz de lutar quanto você, é provavelmente mais difícil do que caçar outra espécie da fauna, como um cavalo”, explicou Cole. Ambos são atos obviamente difíceis e desafiadores, mas suspeito que os hominídeos seriam mais desafiadores. Além disso, você só precisa matar um cavalo para ter a mesma quantidade ou mais de calorias que quatro a seis hominídeos.”

Dito isso, humanos pré-históricos provavelmente recorriam ao canibalismo como uma medida de sobrevivência durante tempos de seca ou fome. Cole diz que não podemos descartar esse tipo de canibalismo completamente. Ele também diz que precisamos abraçar a ideia de que outras espécies humanas podem ter sido tão variadas e complexas como a nossa própria espécie em relação ao canibalismo. “Neandertais, por exemplo, eram extremamente complexos comportamentalmente, eram uma espécie simbólica, com produção de joias, diversidade cultural em termos de fabricação de ferramentas de pedra e tinham uma atitude complexa em relação ao enterro de seus mortos”, afirmou. “Por que não teriam uma atitude igualmente complexa com os atos de canibalismo?”

Jerome Whitfield, biólogo da University College London e que não esteve envolvido no estudo, disse que Cole montou um estudo sólido e concordou que era improvável humanos antigos terem sido uma fonte primária de alimento para outros humanos antigos.

“Eles teriam sido presas perigosas, mas os retardatários podem ter sido mortos como um aviso a outros grupos para se afastaram dos recursos de um outro grupo”, Whitfield contou ao Gizmodo. “[Cole] aponta o baixo valor nutricional dos hominídeos em comparação com outras espécies, o que sugere, sim, que maior parte dos episódios de [canibalismo] deve ter sido relacionada a fatores não-nutricionais e deve ter exigido alguma capacidade simbólica.”

Dito isso, Whitfield afirma que teria valido a pena Cole observar a literatura extensa sobre o comportamento dos chimpanzés em relação a ritos mortuários e canibalismo para colocar essas práticas em uma perspectiva evolucionária.

Danielle Kurin, antropóloga forense na UC Santa Barbara e que também não esteve envolvida na pesquisa, diz que o estudo serve como um lembrete de que o ato de consumir a carne humana tem raízes profundas na história humana.

“O estudo de Cole demonstra que esse tipo de comportamento não é mero resultado de necessidades nutritivas, mas, sim, um processo profundamente imbuído de simbolismo e crenças bem enraizadas sobre como os corpos, e suas partes deveriam ser entendidas e lidadas na hora da morte”, Kurin disse ao Gizmodo.

O canibalismo, afirma Kurin, era frequentemente uma parte integral do processo de falecimento e um ato de compaixão. Em outros exemplos, era um gesto direcionado aos socialmente marginalizados, ou o ato dramático final de vencer um inimigo. Com apenas pilhas de ossos roídos para servir como evidência antropológica, provavelmente nunca saberemos as verdadeiras motivações dos humanos do Paleolítico. Isso não significa que canibais não recebiam benefícios calóricos do ato, só quer dizer que provavelmente esse não era o principal fator motivador.

“Que nossos ancestrais pré-humanos tenham se engajado nesse tipo de comportamento significativo e ritualístico, isso sugere uma necessidade de reavaliar a singlaridade do Homo sapiens como espécie, assim como as características que definem nossa própria humanidade, disse Kurin.

[Scientific Reports]

Ilustração do topo: Jim Cooke/Gizmodo

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