Caso da “vacina vencida” mostra os limites da obsessão da Folha pelo escândalo
Na semana passada a Folha cometeu duas falhas graves de critério jornalístico. No primeiro caso, foi vítima de um “cavalo de Tróia” do governo, uma tentativa de emplacar uma narrativa diversionista na CPI por meio de uma denúncia de corrupção que depois facilmente se mostraria falsa. No segundo, o problema, embora reflita uma mesma falha de edição, tem consequências mais graves: na sexta-feira, o jornal publicou em sua edição online matéria com base em dados públicos afirmando categoricamente que “pessoas receberam doses vencidas de vacinas”. Durante o dia todo, prefeituras negaram o problema, dizendo que o erro estava na informação. Ainda assim, o jornal dobrou a aposta, e no sábado colocou a matéria, com o mesmo tom, na capa da edição impressa.
Esta coluna não é um ombudsman universal, sempre é bom lembrar. O objetivo aqui não é julgar ou criticar o jornalismo — poderia ser, não haveria problema nenhum, mas não é –, mas sim entender como este jornalismo se coloca em um contexto de novas mídias, velhas mídias em declínio e novos hábitos de consumo de informações.
Do ponto de vista jornalístico, parece haver dois problemas graves de edição no maior jornal do país, mas isso é problema para o grande José Henrique Mariante. No primeiro caso, parece, o governo é de tal forma incompetente que o Cavalo de Tróia deu errado e chamuscou o governo mais do que beneficiou. No segundo, porém, as consequências são claras, graves e duradouras, e assim serão ainda que a matéria esteja correta — no momento em que escrevo, tendo a acreditar que não está.
A história me fez lembrar de uma matéria que eu escrevi na Folha em 2003. Eu trabalhava em Esportes e cobria o Palmeiras na Série B do Brasileirão. Naquele ano, o campeonato tinha três fases: uma classificatória, que servia para definir os oito classificados para as fases finais, e depois mais duas fases em mata-mata em grupos. Na fase final da fase final, porque era um Brasileirão então isso existia, o Palmeiras enfrentaria três adversários em uma “mini-liga”, e quem fizesse mais pontos seria o campeão.
Eu era um total foca, não tinha nem seis meses de jornal, e tive uma ideia: comparar o desempenho dos times que tinham sobrado para esta fase final nos jogos entre eles. E o resultado era surpreendente: o Palmeiras contra aqueles times tinha ido mal, e ficaria em 3º nesta mini-liga contando os resultados da fase de classificação. O que isso queria dizer? Quase nada, obviamente, a não ser uma grande coincidência — e a prova disso é que o alviverde paulista foi o campeão do torneio depois da mini-liga. Mas havia uma informação ali que valia levar para o torcedor. O editor de Esportes à época, o também grande Melchíades Filho, deu a matéria pequena, e sem destaque — que é como ela devia ser dada.
A Folha tinha uma informação relevante: dados indicavam que pessoas podem ter tomado vacinas vencidas. Só que a obsessão pela “bomba” é sempre maior quando não há cuidado. Em vez de investigar mais profundamente ou de simplesmente informar o que sabia, que os dados indicavam algo, a Folha decidiu que os dados estavam corretos e publicou uma matéria que instalou o pânico em um terreno em que pânico neste momento é só o que não pode haver.
O fio do jornalista Rodrigo Menegat no Twitter resume as suspeições na matéria. Menegat mostra, a partir dos dados de Maringá, que é muito mais provável que os dados estejam errados do que que as vacinas estivessem vencidas. A análise dele foi feita justamente nos dados de Maringá, cidade natal dele e do líder do governo Ricardo Barros, envolvido no escândalo do número 1 acima. Era tentador demais para a Folha, certo?
Como disse Menegat, em outro tweet: “Eu acho que o banco de dados nacional de vacinação ser uma bagunça é digno de notícia, sim. Mas não foi isso que noticiaram hoje: noticiaram que milhares de brasileiros haviam recebido vacinas vencidas. Não temos elementos suficientes para afirmar isso.”
Outro aspecto importante do “escândalo” ignorado pelo jornal: as datas de validade da vacina em questão vêm sendo estendidas mundo afora, e com base em ciência, não em interesse político. Se sabia disso, o jornal não fez questão de deixar claro para o seu leitor.
Talvez você já tenha reparado que eu não dei nome de nenhum jornalista envolvido nas matérias e isso é deliberado. O repórter não tem culpa pelos erros do editor, nem tem culpa pela ênfase que o jornal coloca nos assuntos em suas redes. Aqui, o que queremos analisar não é o eventual erro do repórter, que, como observou a colega Nayara Felizardo, repórter do Intercept, têm que trabalhar cada vez mais, com condições cada vez piores.
Erro de repórter é normal, o que não é normal é não ter um editor vendo isso, e acima dele um editor-chefe para perceber que a denúncia tem potencial sanitário bombástico, pode pôr em risco todos os esforços de convencimento das pessoas a se vacinarem e a não escolherem vacina. Aliás é bom observar que este mesmo Gizmodo Brasil onde você me lê também deu a nota, com o mesmo enfoque original, e depois teve que atualizá-la mais de uma vez para refletir as dúvidas sobre a informação. Eu não sou o editor-chefe mas sou o tal do “acima dele”. A diferença, obviamente, é de alcance — o que não apaga o nosso erro.
Se os dados estiverem corretos, as pessoas têm o direito de saber que podem ter tomado uma vacina vencida. O grau de seriedade da denúncia, porém, demanda cuidados maiores do que os que o jornal teve.
Por fim, vale lembrar que a maior parte dos brasileiros não lê as matérias da Folha, e vai se pautar pelo título ou pelo Tweet. Os veículos jornalísticos precisam entender que a “chamada” é cada vez mais importante e precisa ser feita com muito mais critério quando estamos falando de saúde pública.
* Caio Maia é Diretor de Redação da F451, que publica o Gizmodo Brasil, e escreve sobre mídia.