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A tecnologia fantasmagórica do show de Cazuza convence — mas não, não pode ser chamada de holografia

O espectro de Cazuza surgiu às 22 horas de sábado, dia 30, nos fundos do palco do Parque da Juventude, em São Paulo. De óculos escuros, a faixa vermelha na cabeça, dançava em um retângulo preto, enérgico, ora para a esquerda, ora para a direita — nunca para frente ou para trás. Sua figura opaca, […]

O espectro de Cazuza surgiu às 22 horas de sábado, dia 30, nos fundos do palco do Parque da Juventude, em São Paulo.

De óculos escuros, a faixa vermelha na cabeça, dançava em um retângulo preto, enérgico, ora para a esquerda, ora para a direita — nunca para frente ou para trás. Sua figura opaca, um jogo de luzes e espelhos, era fantasmagórica. Músicos de carne e osso o acompanhavam. Apontavam-lhe as guitarras, sorriam.

Ao fim de cada música, blecaute. Cazuza desaparecia.

O público presente não se inibia; aplaudia, assobiava. Durante as cinco músicas em que a projeção atuou, entre sumiços relâmpagos e dissincronia labial, milhares de pessoas — a organização do evento estima 30 mil — cantavam e vibravam, a maioria com câmeras e smartphones nas mãos.

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“É muita emoção sentir a presença dele”, disse na primeira fila Viviane Oliveira, de 25 anos, professora de Educação Física. Fã desde o lançamento do filme O Tempo Não Para, de 2004, era a primeira vez que assistia ao vivo um show do cantor, morto em 1990. Ao seu lado, Julio “Cazuza” Silva, um segurança de 35 anos que faz covers do artista por bares da capital, comemorava o resgate do que vira na infância. “Ele tava 30 anos na frente do tempo”, disse, com a mesma vestimenta do ídolo.

O projeto tecnológico que trouxe a imagem de Cazuza de volta aos palcos — o GVT Music Live: Cazuza — custou R$ 8,5 milhões. Parte do montante foi obtido via incentivo da Lei Rouanet (a captação autorizada foi de R$ 1,8 milhões) e o resto por meio da empresa de telecomunicações GVT, que busca inflar suas recém-iniciadas operações em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde ocorrerá o próximo show, na praia de Ipanema, dia 19 do próximo mês.

A inspiração vem de fora: a projeção do falecido rapper Tupac Shakur durante o festival Coachella 2012, em abril do ano passado, nos Estados Unidos. As tecnologias adotadas foram quase idênticas. Primeiro um ator cover teve os movimentos capturados por câmeras — corpo e cabeça separados; depois, programadores juntaram a performance à imagem computadorizada do cantor, uma técnica similar a usada em personagens animados de Hollywood, como Gollum, de O Senhor dos Anéis. Em seguida houve o trabalho de engenharia de som para sincronizar na animação. Por fim, no dia do show, um projetor reproduziu a imagem em um espelho rente ao chão, que a refletiu em uma tela transparente a 45º.

Com todo esse aparato, criou-se um avatar realista que, ao ser iluminado e refletido, passava ao público a sensação de profundidade.

O espetáculo é divertido, convence. Mas — sempre o mas… — a terceira dimensão não é tão eficaz assim. Em diversos ângulos, sobretudo pelas laterais, não funciona. E é por causa disso que não podemos chamar de holograma. A ciência explica.

Holografia de mentira

As técnicas usadas nos shows de hoje, dizem os físicos, são falsos hologramas. “São projeções ordinárias em telas translúcidas, quase transparentes. Ou reflexos em vidro fino de uma TV que está no chão”, diz José Joaquín Lunazzi, professor de física da Unicamp e dono de duas patentes em aplicações de telas holográficas. “Quem senta perto vê logo a diferença.”

Ele afirma que um holograma de verdade traria a ilusão de presença do objeto em todos os ângulos, mesmo para quem chega perto dele. A reprodução de todas as perspectivas da imagem seriam reproduzidas de maneira natural e contínua, o que não ocorre com as projeções vistas nos shows de Tupac e Cazuza. Nelas há uma limitação angular. De perto e nas beiradas do palco, a sensação de profundidade inexiste.

Nessas atuais projeções de falecidos artistas, afirma Lunazzi, há uma série de restrições para que o espectador consiga ter a sensação de profundidade. Uma pessoa presente no palco não pode passar por trás da tela, pois faria sombra; também não pode passar pela frente, já que pisaria na TV ou se chocaria com a tela que está a 45º graus. O projetado Cazuza, por sua vez, tem os movimentos limitados. Não é tão Cazuza assim.

Mikya Muramatsu, professor de física da Universidade de São Paulo, diz que parte da confusão de nomear tais projeções como holograma está na própria origem do termo, que é bastante ampla. “Holo” seria todo; e “grafia”, registro. O registro do todo. Numa definição mais precisa, diz, a holografia pode ser explicada como o registro e reprodução (“congelamento”) dos raios luminosos, que é diferente do jogo de espelhos da projeção 3D. No holograma true, “congela-se” a luz de um objeto em um plano para, depois, reproduzí-la no espaço na forma de imagem perfeita e tridimensional. (1. A explicação detalhada está no rodapé.)

Por que então a técnica da holografia não é adotada? As razões seriam o alto custo e as, digamos, limitações dos recursos necessários — ligados à mecânica quântica. “Na verdade, o maior problema na gravação de hologramas é o tipo de filme utilizado. Este deve ter uma resolução muito acima das resoluções dos filmes fotográficos convencionais”, diz Carlos Raimundo Andrade de Lima, professor de física da Universidade de Juiz de Fora.

Outro fator, mais complexo, seria o controle das vibrações mecânicas durante a gravação do holograma. “Atualmente é impossível fazer ou observar hologramas usando sistemas de gravação digital”, diz Andrade de Lima. “O tamanho dos pixels dos sensores são imensamente maiores do que a resolução dos filmes holográfico”. Por essas razões, afirma, um holograma grande hoje não teria o movimento de um vídeo — seria no máximo uma pequena sequência, um gif.

Para os físicos, a holografia só deve se tornar algo possível e popular com o desenvolvimento da nanoeletrônica em dez ou mais anos. Com o avanço, poderíamos ver a verdadeira imagem holográfica: com profundidade, visão lateral completa e sem precisar de qualquer acessório como óculos. Cazuza, então, não pareceria esse fantasma meio tímido que a tela mostrou.

Um novo mercado se projeta no horizonte

Ainda que a projeção de Cazuza não tenha sido tão realística, a apresentação mostrou que a tecnologia atual pode trazer inovações à indústria fonográfica. A produção do evento foi a pioneira a montar um espetáculo com videografismos, luzes e uma banda própria, ao vivo, para acompanhar as bem trabalhadas gravações dos vocais do cantor.

Responsável por extrair as falas e os vocais usados no show, o produtor e músico Nilo Ribeiro passou meses limpando, equalizando e acertando detalhes de centenas de gravações. “É trabalhoso fazer todas as conversões e as interações, mas o resultado faz valer a pena”, afirma Ribeiro. A vivacidade dos sons impressionou o público — à grade, o que mais se via eram rostos cheios de lágrimas. “Você vai numa peça para ser enganado”, diz. “Nesse tipo de show é a mesma coisa. O feedback do público é que dá o tom.”

O idealizador e produtor Omar Marzagão acredita que as projeções bem trabalhadas podem se tornar um novo mercado do show business. “São três fatores que precisam estar alinhados: o artístico, o operacional e o tecnológico”, diz. “Exige estudo.” Ele pretende adotar novos recursos, “diferentes e criativos”, para os próximos shows. “Recebemos umas propostas para projetar outros artistas e vamos procurar inovar outra vez.”

O desafio deve ser financeiro. Fazer um show com projeções, luzes e extrações de sons originais demanda tempo e grande investimento. Se faltar incentivo e patrocinadores, torna-se inviável.

Nas entrevistas feitas depois de Cazuza ser desligado do palco, o público se dividiu ao responder se pagaria ou não pelo ingresso de um show com projeções. “Eu pagaria se fosse um artista que eu gostasse muito”, disse o estudante Leonardo Freitas, de 21 anos. Ele citou Beatles, Jimi Hendrix e outros artistas pop. Mas confessou: “Só se fosse bem barato”.

Nos Estados Unidos e na Europa, diversas empresas oferecem o serviço de “falsos hologramas” — ainda que não o chamem de falsos. O custo é caro, mas a aposta dos pesquisadores é que o preço vá diminuindo conforme a aplicação aumente. Além de apresentações musicais, a tecnologia é usada por empresas de arquitetura para mostrarem suas construções, por médicos para projetarem o corpo humano e até por marcas de roupa e cosméticos que buscam manequins mais hi-tech.

Se de fato se firmar como tecnologia útil nos próximos anos, os falsos hologramas devem servir como alternativa aos verdadeiros — e muito mais caros — hologramas que chegarão a partir da próxima década.


Notas de rodapé

1. O princípio do holograma pode ser explicado pelo experimento do húngaro Dennis Gabor, que inventou quase por acaso a técnica, em 1948. Ele dividiu um feixe de luz de mercúrio em duas partes: uma delas incidindo diretamente sobre uma placa fotográfica de alta resolução; e a outra iluminando um objeto antes de se dirigir para a mesma placa. O filme então fixa o registro da interferência entre os dois feixes e imprime um código microscópico. Ao iluminar posteriormente o filme com um feixe similar ao que incide de modo direto na placa, é possível reproduzir todas as características do feixe do objeto. Em essência, reconstrói o objeto de modo luminoso.

Vídeo de um holograma de verdade:

Vídeo da GVT sobre a tecnologia usada:

Saiba mais sobre holografia:
Página do Professor Lunazzi que ensina sobre os conceitos da holografia

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