Cientistas reviveram cérebros de porcos, levantando uma série de questões sobre o conceito de morte

Estudo conseguiu reviver cérebros de porcos, que têm estrutura parecida com a de humanos, ao injetar sangue sintético nos animais.
Uma série de porcos
AP

Pesquisadores da Universidade de Yale desenvolveram um sistema capaz de restaurar algumas funcionalidades do cérebro de porcos decapitados por pelo menos 10 horas após a morte deles. O feito tem um tremendo potencial científico, mas levanta preocupações filosóficas e éticas bem sérias.

Desenvolvido pelo neurocientista Nenad Sestan e seus colegas de Yale, o sistema foi mostrado para restaurar a circulação e algumas funcionalidades celulares de cérebros suínos intactos. Os cérebros foram ligados ao sistema, conhecido como BrainEx, quatro horas após a morte ter sido declarada e depois de um longo período sem oxigênio, que se chama anóxia. O sistema bombeou sangue sintético e outros compostos para o órgão desencarnado, restaurando a funcionalidade parcial por um período de seis horas. A pesquisa foi publicada nesta quarta-feira (17) na Nature.

É importante ressaltar que os cérebros não exibiam sinais de consciência, e os pesquisadores tomaram precauções extras para garantir que isso não ocorresse. As cabeças de porco foram compradas de uma fábrica de processamento de alimentos da região, de modo que nenhum morto foi deliberadamente morto para o experimento.

Os pesquisadores também realizaram esforços adicionais para consultar e receber aprovações de órgãos de ética, incluindo o Comitê Institucional de Cuidados e Uso Animal da Universidade de Yale e o Grupo de Trabalho de Neuroética dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH). Além disso, o bioeticista Stephen Latham, do Centro Interdisciplinar de Bioética de Yale, contribuiu e é um dos autores do novo estudo.

A capacidade de restaurar parcialmente a funcionalidade de um cérebro de um mamífero após a morte pode resultar em um novo modelo para o estudo de cérebros e novas intervenções médicas para doenças ou condições em que o cérebro sofre falta de oxigênio, incluindo acidentes vasculares cerebrais.

Ao mesmo tempo, no entanto, a nova conquista está desafiando nossa noção de morte e quando ela deve ser declarada — um desenvolvimento com implicações que vão da experimentação animal até a doação de órgãos humanos.

Diagrama mostra atividade dos neurônios e de células dos cérebros dos porcosNeurônios ativos (em verde) e células (em azul) nos cérebros do porcos ligados ao sistema BrainEx. Crédito: Stefano G. Daniele & Zvonimir Vrselja; Sestan Laboratory; Escola de Medicina de Yale

Se isso lhe soa familiar, você provavelmente está se recordando de uma reportagem do MIT Technology Review do ano passado em que certos detalhes deste experimento vazaram para o público.

Em uma coletiva de imprensa realizada nesta terça-feira (16), Sestan disse que alguém vazou esta informação para a publicação do MIT após consultas a cientistas e bioeticistas. Uma afirmação feita no artigo do MIT Technology Review de que um cérebro de porco foi mantido “vivo” por 36 horas foi descartada por Sestan, que disse que tal esforço teria ido muito além do escopo do experimento (importante mencionar que em nenhum momento Sestan negou que um cérebro de porco ficou ligado ao sistema por 36 horas).

O novo estudo é agora a nossa primeira oportunidade para rever a experiência e ver o que foi realmente feito e por quê.

Conceito de morte

Atualmente, os neurocientistas podem apenas manter as células cerebrais em laboratório por algumas semanas. Desnecessário dizer que estudar células em uma placa de Petri está muito longe de ser capaz de estudar todo um cérebro. O mesmo vale para fatias finas de tecido cerebral, que fazem aproximações pobres de um cérebro funcional e coeso.

Consequentemente, os cientistas têm lutado para entender os vários processos que ocorrem no cérebro após a morte, como a capacidade do cérebro de reter certas funções, como a circulação e a taxa de morte celular.

O propósito do experimento BrainEx era “entender melhor como as células cerebrais reagem à parada circulatória” e “testar se algumas funções celulares podem ser restauradas no cérebro após a morte”, explicou Sestan durante entrevista coletiva realizada ontem.

Esse esforço, disse ele, poderia colocar os neurocientistas em uma posição melhor para entender como potencialmente tratar “derrame e outros distúrbios no cérebro que causam a morte de células”.

Latham concordou, dizendo que o experimento poderia levar a novas maneiras de preservar outros órgãos além do cérebro, ou mesmo “reverter a decomposição após a morte desses órgãos”, disse. Finalmente, o experimento poderia resultar em novas formas de estudar cérebros após a morte em laboratório, afirmaram os cientistas.

Entendendo o experimento

Cérebros de mamíferos precisam de muito oxigênio. Interromper o fluxo de oxigênio no sangue, mesmo por período curtos, causam a morte de neurônios, resultando em sérios danos cerebrais. A anóxia, como esse processo é chamado, também ocorre após a morte. O novo estudo foi pensado para avaliar a gravidade deste dano após a morte, e se certa funcionalidade cerebral pode ser parcialmente restaurada nas horas imediatas depois que a morte é declarada.

Para testar esta possibilidade, Sestan e sua equipe desenvolveram um sistema que fornece fluxo sanguíneo para o cérebro na temperatura normal do corpo.

O dispositivo personalizado imita um sistema natural do órgão dentro do corpo, bombeando uma solução protetora projetada para promover a recuperação da anóxia prolongada. Esse suprimento sanguíneo artificial foi administrado a cérebros de suínos isolados, evitando parte da degradação tipicamente associada com a morte. O sistema BrainEx levou seis anos para ser desenvolvido.

Um total de 32 cérebros de porcos foram testados durante o experimento. Os porcos foram usados porque seus cérebros são relativamente grandes e estruturalmente semelhantes aos nossos.

Os cérebros foram removidos dos crânios e ligados ao dispositivo BrainEx quatro horas após a morte (portanto, esses cérebros sofreram de anóxia por quatro horas). Os cérebros permaneceram no sistema por seis horas enquanto os pesquisadores monitoravam cuidadosamente a atividade deles.

Particularmente, as seis horas de perfusões sintéticas de sangue resultaram em uma restauração da funcionalidade celular, juntamente com a prevenção de inchaço e outros fatores responsáveis pelo dano celular e a morte. Houve até alguma atividade sináptica.

Além de reduzir a morte celular, o BrainEx preservou a função circulatória nas principais artérias e pequenos vasos sanguíneos. O experimento poderia ter durado mais, mas os protocolos do estudo exigiram que os pesquisadores parassem nesse estágio.

É importante ressaltar que nenhuma funcionalidade de alto nível foi detectada, o que indicaria a presença de consciência e percepção. Um dispositivo de eletroencefalograma não detectou os sinais associados à consciência — ou seja, ondas de baixa amplitude de faixa alfa (8 a 12 Hz) e na faixa beta (13 a 30 Hz). Nenhuma evidência surgiu que sugerisse funcionalidades de ampla escala nos cérebros dos porcos.

Por segurança, no entanto, os pesquisadores usaram bloqueadores de atividade neuronal para evitar que a percepção consciente surgisse durante o experimento. Como os pesquisadores admitiram durante a conferência de imprensa, no entanto, esses bloqueadores neurais podem ter influenciado os resultados, impedindo-os de detectar a presença de consciência ou percepção. Dito isso, os cientistas estavam confiantes de que o sistema BrainEx não é capaz de reviver a consciência.

“Quero deixar claro que não detectamos consciência durante a pesquisa”, afirmou Sestan. “Nunca foi um objetivo da pesquisa induzir a consciência nos cérebros.”. Dito isso, sua equipe “estava preparada para induzir anestesia, baixar a temperatura dos cérebros” e fazer o que fosse necessário para “interromper qualquer atividade que ocorresse”.

Isso “não é um cérebro vivo, mas um cérebro celularmente ativo”, acrescentou Sestan, dizendo que os cientistas ainda não têm o conhecimento “para restaurar a função normal do cérebro — essa não era a meta e nem conseguimos isso”.

Este experimento mostra que, nas condições certas, um cérebro grande e desencarnado de um mamífero possui uma capacidade subestimada de restaurar a microcirculação e a atividade molecular e celular após um período pós-morte prolongado, concluíram os pesquisadores do estudo.

Repercussão na comunidade científica

O grau em que este sistema poderia ser usado para preservar ainda mais o cérebro não está claro.

Seu uso, por exemplo, para restaurar cérebros criopreservados ou reviver indivíduos em um estágio vegetativo é completamente especulativo neste estágio. Como observado, no entanto, o sistema poderia ser usado para ajudar pacientes com AVC ou para tratar outras formas de danos cerebrais, mas tal perspectiva permanece distante no futuro, se é que vai ser possível.

Para a próxima etapa da pesquisa, os cientistas gostariam de testar os cérebros por períodos mais longos.

O bioético Kerry Bowman, da Universidade de Toronto e que não teve envolvido no estudo, disse que este é um estudo altamente significativo do ponto de vista ético, embora ele tenha dito que o estudo atual não violou os protocolos éticos existentes.

“A definição de morte em várias nações ocidentais se volta para o conceito de uma perda irreversível de todas as funções cerebrais. Este estudo desafia diretamente este conceito”, disse Bowman em conversa com o Gizmodo.

“Embora não tenha sido detectada nenhuma atividade no eletroencefalograma, ou evidência de consciência, isso poderia refletir na forma como o estudo foi desenvolvido. Este estudo adiciona uma crescente consciência de que a morte não é um evento precipitado, mas um processo gradual. Com o tempo, isso poderia levar a desafios para o conceito legal de morte cerebral como uma definição válida de morte.”

Os protocolos existentes de ética em pesquisa animal podem ser cada vez mais inadequados, disse Bowman, já que os animais não humanos poderiam ser mantidos em um campo indefinido entre a vida e a morte.

Além disso, pesquisas recentes em neurociência com eletroencefalograma e ressonância magnética sugere que a decodificação de algumas atividades neurais de pessoas vivas é possível até o ponto de reconstruir imagens, disse ele, e que parte dessa decodificação pode eventualmente ser feita após a morte.

Em um comentário publicado na Nature, a professora de direito e filosofia Nita Farahany e dois coautores disseram que a nova pesquisa transmite duas importantes suposições sobre a morte e seus efeitos imediatos sobre o cérebro:

Primeiro, que a atividade neural e a consciência são irremediavelmente perdidas dentro de segundos a minutos depois de interromper o fluxo sanguíneo em cérebros de mamíferos. Segundo, que a menos que a circulação seja rapidamente restaurada, há uma progressão irreversível em direção à morte celular e à morte do organismo […] mesmo com todas as incógnitas, a descoberta de que os cérebros dos mamíferos podem parecer “minimamente vivos”, horas depois que os animais foram mortos, têm implicações que os especialistas em ética, reguladores e a sociedade devem pensar agora […] Em nossa visão, novas diretrizes são necessárias para estudos envolvendo a preservação ou restauração de cérebros inteiros, porque os animais usados para essa pesquisa poderia acabar em uma área cinzenta — não viva, mas completamente morta.

Farahany e os coautores do estudo fizeram várias propostas, incluindo o uso de técnicas além do eletroencefalograma para detectar sinais de percepção consciente, a criação de uma lista de espécies em que é apropriado ou não fazer este tipo de pesquisa, o uso contínuo de bloqueadores de atividade neuronal e anestésicos durante esses experimentos até que se saiba mais, além da determinação de um período apropriado que um cérebro deve ter permissão para usar o sistema BrainEx.

Em um segundo artigo publicado na Nature, os especialistas em bioética Stuart Youngner e Insoo Hyun, da Escola de Medicina da Universidade Case Western Reserve, disseram que o novo estudo está desafiando a suposição de que grandes cérebros são irremediavelmente danificados nos poucos minutos após a morte.

“Isso também levanta a possibilidade de que os pesquisadores possam melhorar a recuperação do cérebro de uma pessoa, mesmo depois que o coração e os pulmões pararem de funcionar”, escreveram Youngner e Hyun.

“Os avanços decorrentes do estudo do BrainEx poderiam aumentar as tensões entre os esforços para salvar as vidas das pessoas e as tentativas de obter órgãos para doar a outras pessoas”, acrescentando que “em nossa opinião, à medida que a ciência da ressuscitação cerebral progride, alguns esforços para salvar ou restaurar o cérebro das pessoas pode parecer cada vez mais razoável — e algumas decisões de renunciar a tais tentativas em favor da aquisição de órgãos para transplante podem ocorrer com menos frequência.”

Claramente, este estudo com cérebro de porcos está provocando questões importantes, particularmente aquelas que envolvem concepções de morte.

Durante a coletiva de imprensa, os cientistas da BrainEx foram rápidos ao minimizar as implicações filosóficas mais amplas de suas pesquisas, dizendo que o sistema não está nem perto de ser capaz de restaurar totalmente a função cerebral. Esse pode ser muito bem o caso, mas esta pesquisa está preparando o terreno para avanços mais substanciais nessa área. É, portanto, fundamental que discutamos essas questões importantes agora, à medida que nos tornamos cada vez melhores em manter cérebros vivos.

[Nature]

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