Como alguns sites usam fichas policiais para ganhar dinheiro – e arruinar a vida de muita gente

Em julho deste ano, Yolina (nome fictício) estava dando uma aula de inglês por telefone quando seu aluno disse que queria fazer um comentário. Yolina não costumava dar aulas para pessoas de tão longe (o aluno estava no centro-oeste dos EUA e, ela, na Califórnia), mas tem se esforçado para aproveitar todas as oportunidades profissionais […]

Em julho deste ano, Yolina (nome fictício) estava dando uma aula de inglês por telefone quando seu aluno disse que queria fazer um comentário. Yolina não costumava dar aulas para pessoas de tão longe (o aluno estava no centro-oeste dos EUA e, ela, na Califórnia), mas tem se esforçado para aproveitar todas as oportunidades profissionais que surgiram desde que perdeu o emprego que mantinha havia 14 anos. Ela era instrutora de inglês em uma universidade comunitária.

“O que foi?”, perguntou ela em seu forte sotaque russo.

“Encontrei uma foto de quando você foi fichada na polícia”, respondeu o aluno.

“Como assim?”, perguntou Yolina.

“Sua foto na polícia”, respondeu o aluno. “De quando você foi presa em dezembro”.

Yolina ficou em choque. “Me senti humilhada”, disse ela em entrevista concedida por telefone este mês. “Não fazia ideia de que a foto tinha ido parar na internet”.

Em dezembro de 2011, semanas depois de ter perdido seu emprego, Yolina viajou com seu marido para a Flórida, de onde fariam um cruzeiro. Os dois vinham planejando a viagem havia vários meses e pensaram que aquele era o momento ideal para Yolina relaxar e esquecer um pouco as dificuldades que vinha enfrentando. Numa noite, antes mesmo que o cruzeiro tivesse partido de Fort Lauderdale, o casal saiu para jantar em um restaurante não muito longe do hotel onde estava hospedado. Yolina diz que seu marido bebeu durante a noite e que os dois começaram a discutir sobre uma relação profissional que ele vinha tendo com uma antiga namorada. A discussão continuou no carro e ficou pior quando os dois acabaram se perdendo no caminho de volta para o hotel.

No meio do bate-boca, Yolina diz que seu marido segurou seu braço com força para tentar acalmá-la. “Eu não aceitei aquilo”, conta, “e por isso arranhei o braço dele”.

A partir daí, a discussão ficou ainda mais séria – tão séria que o casal, totalmente transtornado, parou o carro num estacionamento e continuou trocando acusações aos berros. Não demorou para que alguns policiais aparecessem, vissem as marcas do arranhão no braço do marido de Yolina e decidissem prendê-la por violência doméstica. Ela afirma que seu marido ainda tentou conter os policiais, mas não adiantou.

Yolina diz que não contestou as acusações feitas contra ela e, meses depois de voltarem da Flórida, pagou uma multa de US$2.500. Os dois ainda são casados e ela tem trabalhado como professora em empregos de meio período. Com o tempo, tudo foi passando e sendo superado – isto é, tudo menos a bendita foto do registro policial. Vários sites tiveram acesso à imagem em que Yolina aparece com um sorriso discreto e um olhar sonolento; na Flórida, é possível acessar imagens desse tipo com facilidade e sem pagar um centavo. Junto com a imagem de Yolina, encontramos links para o Twitter e o Facebook dela. Encontramos também seu endereço na Califórnia e uma imagem da casa onde ela mora.

Yolina implorou para que os sites tirassem a imagem do ar. Alguns removeram a imagem sem pedir nada em troca; outros exigiram centenas de dólares para fazer o mesmo. Yolinda não tem como pagar para retirar a imagem de todos os sites, e, mesmo que tivesse, não há garantia de que a ela não vai aparecer novamente em outros domínios. O mais triste é que a foto provavelmente a prejudicou profissionalmente e diminuiu suas chances de conseguir um emprego de tempo integral – algo que ela vem procurando há meses.

“Sou uma professora de 53 anos de idade”, comenta Yolinda. “Sou uma pessoa de bem. Mas essa situação toda me deixa constrangida e nervosa”.

Seria possível ilustrar esse início de século usando avatares de Twitter, fotos do Instagram e gifs animados, mas as fotos de registros policiais (conhecidas como mug shots) também estão se tornando expressões gráficas da cultura moderna. Graças a leis permissivas de uso de registros públicos, a um sistema de justiça altamente coercivo, ao desejo de rir da desgraça alheia e, sobretudo, graças à internet, essas imagens (que são utilizadas em registros policiais há mais de 200 anos) estão renascendo. E o que esse renascimento diz a respeito da nossa sociedade não é nada bom.


Assim como Yolina, Philip Cabibi também cometeu um erro enorme. Em 2007, depois de assistir a um jogo de futebol americano com alguns amigos em um bar, Cabibi, na época com 27 anos, decidiu voltar pra casa dirigindo (embora estivesse alcoolizado). Ao ser parado pela polícia e fazer um exame para medir o nível de álcool em seu sangue, ficou constatado: Cabibi havia consumido duas vezes mais álcool do que o permitido, razão pela qual foi preso e fichado em Palm Harbor, na Flórida. Também como Yolinda, Cabibi não contestou as acusações feitas contra ele – pagou uma multa e passou seis meses em liberdade condicional. Quatro anos depois, ao pesquisar pelo próprio nome no Google, algo que todo mundo faz de vez em quando, ele descobriu que o primeiro resultado era justamente a imagem da sua ficha policial, que havia sido postada no site florida.arrests.org.

Chocado com a descoberta, Cabibi imediatamente passou a procurar uma forma de tirar sua imagem do site. Foi aí que ele descobriu o “escritório de gerenciamento de reputações” RemoveSlander.com. Eles prometeram tirar sua imagem do ar em uma hora pela módica quantia de US$399. Cabibi pagou o valor que eles pediam e a imagem de fato sumiu. Mas ele rapidamente se deu conta de que aquilo não ia adiantar nada.

“Percebi que a imagem ia começar a aparecer em mais e mais sites depois daquele primeiro”, conta ele. “Felizmente, a American Express devolveu meu dinheiro”.

Hoje em dia, Cabibi vive tranquilamente na região de Salt Lake City e trabalha com administração de aplicativos na Adobe. Mesmo levando uma vida tranquila, ele conta que precisa fazer certo esforço para não lembrar que seu mug shot está circulando pela internet e que qualquer pessoa pode acessá-lo. Não é nada fácil para alguém que passa várias horas por dia conectado à internet. Cabibi afirma que já teve sua foto postada por pessoas que discordavam dele em fóruns de discussão – e não foi só uma vez. A foto acabou virando um recurso que algumas pessoas utilizam para atacá-lo mesmo quando a conversa não tem nada a ver com a imagem em si.

“Eu fui um idiota”, admite, “mas será que isso significa que a foto desse dia em que eu dirigi alcoolizado deve ser preservada desse jeito e exposta para todo mundo? Não é o que eu penso”.

Cabibi foi o principal personagem de um artigo publicado no ano passado pela Wired sobre a indústria que cresceu ao redor de sites que exploram mug shots. Graças ao caráter totalmente aberto dos registros policias na Flórida, no Arizona e no Texas, qualquer pessoa pode obter fotos das fichas criminais desses estados com enorme facilidade. Com o intuito de trazer mais transparência ao trabalho da corporação, departamentos policiais oferecem livre acesso aos mug shots e aos dados das pessoas fichadas. Tendo acesso a esse banco de dados, qualquer um pode fazer uma pesquisa, usar um programa simples para salvar imagens (novas ou antigas) direto do sistema da polícia e postá-las em seus próprios sites. O sistema guarda até imagens de pessoas que nunca foram formalmente acusadas ou que tiveram sua inocência provada. O resultado é uma enxurrada de sites repletos de imagens desse tipo, tais como mugshots.com, mugshotsusa.com e bustedmugshots.com. Em 2011, o domínio florida.arrests.org, que foi onde Cabibi encontrou sua foto, reunia mais de 4 milhões de mug shots. Aproximadamente 1.500 imagens são incorporadas ao acervo do site todos os dias.

Vários desses sites ganham dinheiro com banners do Google AdSense, mas, conforme relatado pela Wired, alguns deles aumentam seus lucros através de parcerias com serviços de remoção de imagens. O florida.arrests.org, por exemplo, disponibiliza um link para os operadores do RemoveSlander.com por meio do qual eles podem fazer um pagamento de US$19,90 via PayPal. Esse pagamento, que vai direto para o florida.arrests.org, é suficiente para retirar a imagem do site e eliminá-la do índice do Google. O restante dos US$399 fica com o RemoveSlander.com. Para remover imagens de três sites diferentes, o RemoveSlander cobra US$699; se forem seis sites, o valor sobe para US$1.299. O processo de remoção é bem simples, embora os preços elevados dêem a impressão de que é tudo muito complicado. O site do RemoveSlander, por exemplo, descreve o trabalho como se ele envolvesse advogados altamente especializados, mas a frase utilizada para chamar a atenção dos clientes é fácil de entender: “Tire sua foto do Google”.


Infelizmente, os sites que exploram a divulgação explícita dos mug shots não são os únicos que tiram proveito dessa febre. Inúmeras organizações – de departamentos policiais a jornais – criaram ferramentas por meio das quais qualquer cidadão pode se divertir às custas de quem foi detido e teve sua imagem captada pelas lentes da polícia. Um exemplo é o Departamento de Polícia do Condado de Maricopa, no estado norte-americano do Arizona, que funciona sob a jurisdição do polêmico xerife Joe Arpaio. Todas as pessoas detidas pelo departamento têm suas fotos publicadas na internet; quem visita o site pode até ajudar a eleger a “Foto do Dia”. O Tumblr Hot & Busted, por sua vez, dá destaque aos mug shots mais bonitos enviados pelos leitores – rostos bonitos e sorrisos juvenis são postados junto com as acusações feitas contra cada pessoa. E tem também a proliferação de sites de notícias que publicam galerias de fotos desse tipo: o Chicago Tribune é um deles, e o Washington Post também (se bem que a polícia de Washington pelo menos não divulga fotos de registro até que um acusado tenha sido condenado). Mas a galeria de mug shots mais movimentada entre aquelas mantidas por jornais é a do periódico independente semanal Miami New Times.

O site do Miami New Times promove as Mugshots Fridays , um resumo semanal dos mug shots mais estranhos, que são acompanhados por legendas com foco na aparência da pessoa fotografada (exemplo de legenda: “Já esse sujeito tem uma cara que causa um certo desconforto”). A série começou em 2010, quando Gus Garcia-Robertos, funcionário do New Times, encontrou a imagem da ficha policial de um homem com o crânio deformado e decidiu postá-la no blog do jornal. Garcia-Robertos chamou o sujeito de “homem sem meia cabeça” e a foto gerou “perto de um milhão de acessos”, conforme estimado pelo editor-chefe da publicação, Chuck Strouse. Strouse também conta que, com o sucesso do “homem sem meia cabeça”, Garcia-Robertos acabou inaugurando uma coluna semanal, que continuou sendo publicada mesmo depois que ele deixou o jornal há alguns meses.

Mas mesmo gerando tanto tráfego e acessos, há quem critique as Mugshots Fridays. “Já houve algumas reclamações na internet”, admite Strouse, “mas tem alguma coisa que não recebe críticas na internet?” Pergunto se ele acha que as Mugshots Fridays são coerentes com a função que a maioria das pessoas atribui aos periódicos independentes semanais (que é proteger as pessoas menos poderosas). “Será que exageramos um pouco de vez em quando?”, diz ele. “Talvez. Mas será que eu me arrependo e acho que devemos parar? Não. Será que devemos ter mais cuidado para não caçoar das pessoas erradas? Provavelmente”.

Strouse diz que, aconteça o que acontecer com as Mugshots Fridays, ele espera que os leitores entendam que, “em todas as circunstâncias, tudo é feito apenas para divertir os leitores”.


Boas intenções à parte, para milhões de cidadãos americanos que foram presos em certos condados do país, a indústria virtual de divulgação de mug shots tornou-se um verdadeiro pesadelo. Para entender melhor o drama dessas pessoas, Danielle Dirks, professora assistente de sociologia no Occidental College, está elaborando um estudo com base em entrevistas feitas com homens e mulheres que tiveram imagens de seus registros policiais divulgadas na internet. Ela chama o fenômeno de “audiência penal”.

“É como torturar publicamente uma pessoa”, diz a pesquisadora. “É vergonhoso”.

A parte mais assustadora dos sites que divulgam e montam galerias com essas imagens, de acordo com Dirks, é o fato de que atualmente um crime pode seguir uma pessoa pelo resto de sua vida, mesmo que elas não sejam formalmente acusadas ou condenadas.

“Isso virou parte do castigo”, diz ela. “A punição não se encerra mais quando você sai da cadeia. Ela continua valendo para sempre, não importa onde você esteja. A pena nunca acaba, e é por isso que tanta gente se esforça para pagar serviços que retiram essas imagens de sites especializados”.

Embora ainda esteja na metade do estudo, Dirks diz que os casos analisados até o momento apresentam quatro características em comum: todas as vítimas são brancas, possuem boa escolaridade, cometeram crimes leves e entraram em pânico com a situação. “Essas pessoas vivem constantemente com medo”, diz Dirks. “Se uma delas passa por um grupo de colegas que estão rindo e conversando, ela imediatamente pensa que algum deles encontrou o mug shot no Google e encaminhou a imagem para o resto do escritório”. Outras pessoas afirmam ter receio de procurar emprego, uma vez que o novo empregador pode acabar descobrindo os crimes que elas foram acusadas de cometer. Nem a vida amorosa dos envolvidos está segura. Um dos casos analisados por Dirks é sobre um homem que decidiu contar para a namorada que havia sido preso e que a imagem de seu registro policial estava na internet. Ela terminou o relacionamento na mesma hora.

No caso das galerias que tiram sarro das pessoas fichadas criminalmente, como as Mugshots Fridays, Dirks acredita que há um fascínio público que envolve o fato de que os visitantes se sentem superiores aos criminosos. “É uma maneira de reafirmar valores”, comenta. “Como se as pessoas repetissem para si próprias que não são criminosas, que respeitam a lei, que não usam drogas e não vendem crack”.

Mas esse senso de superioridade tem consequências bastante sérias. Basta visitar a seção de comentários do site mugshots.com – que permite que os usuários avaliem fotos de registros policiais direto do Facebook – para perceber que os visitantes são totalmente insensíveis ao drama vivido pelas pessoas expostas. Em uma das páginas, vemos a imagem de uma bela garota de 22 anos, com o olhar meio perdido e a pele cheia de lesões causadas pelo uso de metanfetamina. Um dos comentários mais populares tem 92 likes e diz: “Não sabia que esperma era corrosivo”.

Esse tipo de colocação maldosa é comum nas infames seções de comentários (que acabaram se tornando uma espécie de esgoto da internet). Mas Dirks chama atenção para o fato de que os Estados Unidos são o país com a maior população carcerária do mundo, e que o país é famoso por prender e condenar pessoas até pelos crimes mais leves; nesse contexto, é preciso ser muito ingênuo para achar que alguém está imune ao risco de ser fichado pela polícia e ter seu mug shot divulgado na internet. “É tudo muito engraçado até que você é detido por dirigir alcoolizado”, diz a pesquisadora. “Aí você percebe o quão injusto é o sistema penal”.

Mudar a dinâmica da indústria de mug shots não é tarefa simples – afinal de contas, é difícil imaginar que parlamentares vão simpatizar com a causa de pessoas que foram pegas cometendo um crime. Entretanto, Dirks ressalta que uma lei que atribuísse direitos autorais a imagens de registros policiais poderia pôr fim à questão. Isso não impediria que os estados mantivessem bancos de dados próprios, mas dificultaria muito o trabalho dos que exploram essas imagens e as utilizam para praticar extorsões ou humilhar um desconhecidos.

Talvez uma lei como essa até seja aprovada, mas isso não deve acontecer num futuro tão próximo. Até lá, as imagens que já estão circulando pela internet podem ser copiadas e divulgadas inúmeras vezes e por qualquer motivo. Enquanto isso, Yolina vai tendo que se conformar com o fato de que seu mug shot já foi parar em vários sites – e não há nada que ela possa fazer para reverter essa situação. “Sei que minha imagem vai continuar disponível em vários sites, então o jeito é deixar que as pessoas decidam o que pensar sobre mim”, comenta ela. “Sou uma pessoa de bem. Se alguém quiser saber a verdade, basta me perguntar. Se não quiserem, não posso fazer nada, né?”

Caso você tenha tido a imagem do seu registro policial divulgada na internet e queira participar do estudo da Professora Dirks, clique aqui e envie um email para ela.

A imagem que ilustra este artigo foi composta a partir de um mug shot de domínio público do estado americano da Geórgia.

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