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Como o Brasil se tornou referência em vacinação e por que este legado está indo para o lixo

Brasil sempre foi referência mundial em vacinação, mas, na pandemia de Covid-19, deixou a desejar.

Imagem: Rodrigo Nunes/Ministério da Saúde via Flickr

Imagine um país com histórico de ter erradicado várias doenças por meio de amplas campanhas de vacinação, com rede pública de saúde capilarizada, técnicos experientes e capacidade de produção nacional. Este país deveria se sair muito bem diante de uma emergência em saúde pública como a pandemia de Covid-19, certo?

Pois, quando ela chega, este mesmo país lidera em número de mortes, não tem articulação central para um programa de imunização, demora para comprar vacinas e sofre com a lentidão na aplicação das doses.

Este país existe e se chama Brasil.

O Gizmodo Brasil conversou com especialistas em saúde e políticas públicas para entender como nos tornamos referência mundial em vacinação e por que a campanha para proteger a população da Covid-19 deixa tanto a desejar. Eles também fazem um alerta: o futuro dos programas de imunização está em risco.

Oswaldo Cruz: o homem que colocou o Brasil no mapa da vacina

O Brasil tem um capítulo importante de sua história ligado à imunização: a Revolta da Vacina. Em 1904, o governo do presidente Rodrigues Alves aprovou a vacinação obrigatória contra varíola, uma proposta do médico sanitarista Oswaldo Cruz. A doença assolava o Rio de Janeiro, bem como a febre amarela e a peste bubônica.

A obrigatoriedade foi o estopim de uma revolta popular. O movimento foi alimentado pela oposição política do presidente, que queria retirá-lo do poder, mas saiu do controle e se tornou um grande conflito, deixando 30 mortos e 110 feridos.

É verdade que a vacinação contra a varíola não foi o único fator a desencadear a rebelião. Mesmo assim, a obrigatoriedade da imunização foi revogada.

Bonde virado durante a Revolta da Vacina. Crédito: Wikimedia/Commons

“Se num primeiro momento ele [Oswaldo Cruz] sofreu uma derrota , logo depois foi aclamado e a população passou a exigir a vacina como um direito”, explica Carlos Fidélis, professor do departamento de História das Ciências e da Saúde da Fiocruz.

Fidélis explica que as ideias do sanitarista iam muito além da vacinação e que as iniciativas de Oswaldo Cruz tiveram sucesso também na veterinária, salvando rebanhos de gado:

“Oswaldo Cruz tinha em mente dotar o Brasil de uma plataforma de produção de ciência e tecnologia a altura dos países mais avançados. Uma estrutura produtiva e institucional voltada para o estudo e a resolução dos problemas nacionais.” .

Depois dessas experiências bem sucedidas durante as primeiras décadas do século XX, o Brasil participou da Campanha Mundial de Erradicação da Varíola, entre os anos de 1962 e 1971, quando foram registrados os últimos casos da doença no País.

Fidélis lembra também a epidemia de meningite durante a década de 1970. A doença começou a se espalhar nos bairros pobres de São Paulo e não podia ser noticiada por causa da censura do Regime Militar. “Quando já não dava mais para esconder a grave situação, o governo decidiu agir e buscar vacinar toda a população como forma de acabar com a epidemia.”

 

Foto do médico sanitarista Oswaldo Cruz. Crédito: Wikimedia/Commons

A compra das vacinas era “um negócio fabuloso para qualquer fornecedor”, nas palavras do pesquisador, por se tratar de uma demanda de 80 milhões de doses. Nas negociações com o laboratório francês Mérieux, o Brasil chegou a um acordo para receber não apenas os imunizantes, mas também a transferência da tecnologia para produzi-las nacionalmente.

Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), lembra que o Brasil enfrentava uma grande mortalidade infantil nos anos 1970 e que a proposta do governo da época era reduzir esse número.

“Quais são os componentes da mortalidade infantil? Vacina, comida e água; condições de vida, basicamente”, explica Vecina. “O Brasil estava se urbanizando e, com isso, conseguindo melhorar o tratamento de água e oferecer água com cloro para as crianças. Paralelamente a isso, o que faltava fazer era o programa de vacinação.”

Como as vacinas salvaram milhões de vidas no Brasil

É nesse contexto que o Programa Nacional de Imunizações (PNI) é criado, em 1973. Após esse marco, várias doenças puderam ser vencidas. Entre 1974 a 2014, o número de mortes de crianças menores de 5 anos de idade despencou 90%.

“Houve a eliminação da poliomielite em 1989, da Síndrome da Rubéola Congênita em 2015 e do tétano neonatal em 2017”, conta Ana Paula Sayuri Sato, professora do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP. “Além disso, a vacinação reduziu a incidência, mortalidade ou hospitalização de doenças como a difteria, tétano, coqueluche, meningites e pneumonias.”

Sato também destaca a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) como um fator importante, por garantir acesso gratuito e universal e por expandir os serviços de saúde.

Entre as inovações do PNI estavam os postos de saúde e a cadeia de frio (nome dado às várias tecnologias de armazenamento e transporte, como refrigeradores, veículos e caixas de transporte, necessárias para manter as baixas temperaturas exigidas por várias das vacinas). Fidelis explica:

“O PNI montou uma rede fantástica em todo o país. Uma rede que inclui a chamada cadeia de frio e os postos de vacinação. Acumulou uma experiência invejável em prover uma estrutura logística eficiente e constantemente testada. Um exemplo para o mundo.”

O pesquisador da Fiocruz menciona o dia nacional de combate à poliomielite. Em 14 de junho de 1980, o Brasil conseguiu vacinar toda a população alvo em um único dia. Um segundo dia, em 16 de agosto do mesmo ano, foi usado para dar a segunda dose a toda a população alvo. Em alguns anos, o número de casos da doença despencou e o caso brasileiro foi tomado como exemplo.

Segundo Fidélis, este foi “um feito que muitos duvidavam ser possível de realizar, incluindo Albert Sabin, a Organização Mundial da Saúde e a Organização Panamericana de Saúde”.

Sato também elenca outros pontos fortes do PNI: “fortalecimento de laboratórios de saúde pública para controle de qualidade de imunobiológicos, monitoramento de eventos adversos pós-vacina e formação de comissões técnicas assessoras para tomar decisões embasadas na ciência”.

Mesmo em emergências de saúde, o Brasil conseguia se sair muito bem. “Na nossa última grande campanha, em 2009, da gripe suína, vacinamos 60 milhões de pessoas em três meses, em uma estratégia parecida com essa de agora, chamando grupos prioritários”, recorda Ethel Maciel, professora de Epidemiologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

A pandemia de Covid-19 e o caos das vacinas no Brasil

O enfrentamento à pandemia de Covid-19 destoa do histórico de sucesso da saúde pública brasileira. A campanha de vacinação, segundo os especialistas ouvidos, é lenta e desorganizada, e a politização da doença atrapalha o combate. Eles também criticam o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde Eduardo Pazuello pela demora na compra das vacinas.

“Estamos muito lentos, e atribuo isso à falta de comunicação. Estamos vendo outros países estendendo horários, vacinando de sábado e domingo, e não estamos fazendo nada disso”, diz Maciel. “Não temos volume de vacinas, mas nem as que nós temos nós conseguimos aplicar. Eu achei as 6 milhões de doses [da primeira remessa da Coronavac] fossem acabar em uma semana.”

No entantoi, o Brasil só chegou aos 5,5 milhões de pessoas vacinadas na quarta-feira (17), quase um mês depois do início da campanha de imunização. Mesmo assim, o imunizante já começa a faltar em algumas cidades, como o Rio de Janeiro.

Maciel critica o plano de vacinação apresentado pelo Ministério da Saúde. Segundo a professora, faltam detalhes e números:

“Nessa última versão do plano que foi entregue, eles tiraram as fases. Tem só vários grupos prioritários, que somam quase 78 milhões de pessoas, o que não dá nem 40% da população.”

A professora também diz que não há um horizonte para vacinar uma parcela maior da população brasileira, o que poderia conferir imunidade coletiva e frear a pandemia.

“Pela primeira vez, a gente não tem uma coordenação nacional. Cada estado está fazendo uma coisa, virou uma grande confusão”, lamenta Maciel. A professora lembra que, em epidemias passadas, a coordenação era sempre do Ministério da Saúde. “Na epidemia de febre amarela, em 2017, as campanhas não foram em todos os estados, mas a coordenação foi nacional. Toda a logística, como [as vacinas] iam chegar, o que ia fazer, tudo isso vem sempre do Ministério da Saúde, de forma organizada e centralizada.”

Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e presidente da República, Jair Bolsonaro, apresentam o criticado Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19

“Não tem como você enxergar [a participação de municípios, estados e governo federal] sem um mínimo de integração. Nós não estamos vendo isso nesses dias que estamos vivendo”, comenta Vecina. Ele lembra que, em gestões passadas, o Ministério da Saúde tinha diálogo constante com institutos como o Butantan e a Fiocruz, coisa que não aconteceu desta vez. “Eu acho que nós, hoje, nós não teríamos nenhuma vacina do Brasil se não fossem o Butantan e a Fiocruz terem ido atrás de maneira independente.”

Maciel também critica a demora para a compra das vacinas:

“O Butantan já fornece 70% das vacinas que o PNI utiliza hoje. Não tem o menor sentido para não ter acordo. Ele é o maior parceiro do Ministério da Saúde em imunizantes. Só tem sentido pela briga política que virou.”

Vecina diz que a troca de técnicos experientes por militares sem conhecimento de saúde pública no Ministério da Saúde pode pôr em risco as campanhas de vacinação futuras. “É uma coisa gravíssima o que vem acontecendo, de perdas de anos de conhecimento acumulado no Ministério da Saúde”, opina.

Maciel concorda com essa visão: “Vários outros cargos foram ocupados por pessoas que não têm experiência em saúde pública. Houve um desmonte [do Ministério]. Pessoas-chave, que conheciam muito, não estão mais lá, e as pessoas que ficaram, técnicos muito bons, não têm governabilidade.”

Além do desmonte do Ministério, a atuação do presidente Jair Bolsonaro é bastante criticada. Desde o início da pandemia, o presidente menosprezou o vírus e se posicionou contra medidas que poderiam frear a disseminação da doença.

Um estudo da Faculdade de Saúde Pública da USP, aliás, demonstra que as medidas de Bolsonaro — como ampliar as atividades econômicas classificadas como essenciais e vetar a obrigatoriedade de uso de máscaras em estabelecimentos comerciais — tinham como objetivo uma propagação maior da doença. Já uma reportagem da revista piauí conta como o presidente agiu contra a compra das vacinas.

“O governo federal subestimou o potencial destrutivo da pandemia”, diz Fidélis. “A experiência brasileira incluía a incorporação de tecnologias de imunizações e a vacinação de milhões de pessoas em um único dia. Esse acervo de capacidades não foi mobilizado a tempo.”

Vecina é mais enfático:

“Qual é o projeto desse governo em relação à vacina? O projeto desse governo é não ter vacina. Não tem outra explicação. É não vacinar, ir para a rua, ter a doença, ser macho, não ser mais ‘marica'”.

Um futuro em risco

A pandemia escancarou as dificuldades do Brasil com relação às vacinas, mas esse processo é um pouco mais longo e antigo. Desde 2014, há uma queda na cobertura vacinal contra várias doenças, com um declínio mais acentuado desde 2016 e 2017.

“A gente está vendo uma baixa cobertura vacinal para sarampo e outras doenças que estavam sob controle. A gente começa a ver mortes por essas doenças de novo”, comenta Maciel. “Coqueluche era uma coisa que a gente estudava mas não via. Só agora estamos vendo.”

“Há diversos fatores envolvidos na queda das coberturas vacinais, seja a própria crise político-econômica, seja a diminuição da percepção do risco da doença ou a disseminação de informações distorcidas veiculadas rapidamente pela internet”, diz Sato.

Talvez o primeiro pensamento seja atribuir essa queda aos movimentos antivacina, que se espalharam nos últimos anos. Fidélis, porém, não crê que o movimento é o grande motivador da queda das coberturas vacinais. “Eu não atribuo somente ao crescimento do discurso antivacinista. Ele sempre existiu e o PNI sempre soube lidar com ele”, diz o pesquisador.

Ele comenta que o movimento foi capturado e hoje é usado com fins políticos. “Não havia uma nítida ligação entre os antivacina e o posicionamento da ultra direita. Hoje bastante mutilado pela utilização política de uma comunicação de massas que trabalha na linha das teorias de conspiração, o movimento é instrumentalizado pelo fundamentalismo e por ideologias totalitárias.”

Voltando à queda das coberturas vacinais, Fidélis atribui o fenômeno à queda dos investimentos em saúde. Vecina concorda: “O que acontece de 2014 para cá é que diminuíram os gastos em chamamento e propaganda da vacinação”, comenta Vecina. “Sem campanha não tem vacinação. Tem que ser um negócio massivo, senão não tem jeito.”

“Infelizmente parte da estrutura de atenção à saúde vem sendo desmontada pelas políticas de austeridade e pelos ataques deliberados as instituições como o Sistema Único de Saúde e da Previdência Social”, diz Fidélis. O pesquisador menciona o fechamento da Central Nacional de Armazenamento e Distribuição de Imunobiológicos (Cenadi) ainda no governo do ex-presidente Michel Temer como um exemplo desse desmonte.

“Precisamos investir na articulação entre políticas sociais, demandas nacionais, ciência, tecnologia e indústria. Não podemos ficar dependentes de commodities.” comenta o professor da Fiocruz.

Maciel vai na mesma linha e defende uma indústria nacional:

“Temos que ter uma produção nacional para o nosso básico. Se acontecer alguma catástrofe e a China não puder mais exportar esses produtos, nós teríamos sérios problemas. A pandemia mostrou esse grau de dependência e que é muito perigoso a gente ficar assim.”

Recentemente, vimos essa dependência da China e da Índia na importação do ingrediente farmacêutico ativo (IFA) e das doses prontas da vacina contra Covid-19 da AstraZeneca/Oxford.

“Nós precisamos de uma política de produção de imunobiológicos, e o governo está fazendo justamente o contrário”, diz Vecina. Ele lembra o corte de benefícios fiscais para importação de tecnologia, que afetou diretamente os programas de saúde. “Isso não permite que as indústrias da Fiocruz e do Butantan façam os investimentos necessários para trazer as vacinas para o Brasil. É gravíssimo tudo que está acontecendo.”

Por esses motivos, Vecina acredita que teremos mais problemas semelhantes no futuro. “Com certeza nós vamos ter problemas com outras campanhas de vacinação. Não tenho a menor dúvida, infelizmente. Não estou torcendo para isso.”

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