Como uma adolescente do século 19 começou uma batalha sobre quem é o dono dos nossos rostos

Mais de um século atrás, uma adolescente chamada Abigail Roberson teve sua foto tirada em um estúdio profissional no interior do estado de Nova York. A foto não era particularmente escandalosa – Roberson é retratada dos ombros para cima, desviando o olhar da câmera, mas alcançou a versão de viralidade possível em 1890 e desencadeou […]
Angelica Alzona/Gizmodo

Mais de um século atrás, uma adolescente chamada Abigail Roberson teve sua foto tirada em um estúdio profissional no interior do estado de Nova York. A foto não era particularmente escandalosa – Roberson é retratada dos ombros para cima, desviando o olhar da câmera, mas alcançou a versão de viralidade possível em 1890 e desencadeou um debate legal sobre privacidade que permanece sem resolução 120 anos depois.

Apesar de ter sido um caso famoso em sua época, Roberson foi amplamente esquecida, apesar de sua experiência ter incentivado os legisladores a criar a primeira lei nos EUA que proibia as empresas de colocar nossos rostos em seus anúncios. Vale a pena revisitar sua história agora na era das impressões biométricas, câmeras de vigilância onipresentes e tecnologia “smile to pay [sorria para pagar]” porque uma pergunta em seu cerne permanece sem resposta: quais são os limites legais sobre o que alguém pode fazer com uma imagem de seu rosto?

Roberson nasceu em 1883 e cresceu em Rochester, Nova York, o berço da câmera portátil Kodak, a tecnologia que colocou as máquinas fotográficas em praticamente todas as casas americanas. Quando tinha cerca de 14 anos, ela visitou um estúdio de fotografia perto de sua casa em Corn Hill, um tranquilo bairro residencial perto do rio Genesee, para tirar algumas fotos formais.

Artigos de jornais da época descrevem Roberson como incrivelmente bonita, mas terrivelmente tímida, então ela ficou horrorizada quando, alguns meses depois de tirar as fotos, descobriu uma versão de uma delas pendurada em uma mercearia em Vermont. Ela foi impressa em um cartaz de propaganda em litografia da “Franklin Mills Flour”. Aproximadamente meio metro de largura por 7 metros de altura, o cartaz apresentava Roberson de perfil olhando pensativamente para longe da câmera, usando uma blusa de babados sob um grande letreiro rebuscado que dizia, “A FARINHA DA FAMÍLIA”.

Imagem: O Cartaz da Farinha Franklin Mills com Roberson (findagrave.com)

Roberson se reconheceu imediatamente e ficou super constrangida até quase morrer. Ela desmaiou de “choque nervoso” e ficou de cama, segundo documentos judiciais. Isso pode soar como uma reação extrema inventada por um advogado com a intenção de provar “dor e sofrimento”, mas Roberson não era uma jovem saudável; décadas depois, em uma entrevista em 1967, ela disse ao Rochester Democrat & Chronicle que os médicos haviam dito que ela tinha “um coração ruim, apenas um pulmão e sabe-se lá o que mais”. Ela se lembrou de ter sido apresentada às pessoas na época como “A filha da Sra. Roberson, a inválida”.

Roberson descobriu mais tarde que havia 25.000 cópias desse anúncio espalhadas por todo o país, a colocando em um tipo totalmente novo de notoriedade. Em uma época anterior ao Instagram, antes dos comerciais de TV (ou da própria TV), e antes mesmo dos jornais diários de Rochester imprimirem imagens, seu rosto estava em exposição pública para todos verem. Embora seu “choque nervoso” possa ter sido o produto da teatralidade exagerada de seu advogado, é fácil imaginar que ter o seu rosto exposto em milhares de lugares públicos foi de mais para uma adolescente do século 19..

No início de 2018, a CNN publicou uma reportagem sobre uma mulher que descobriu que seu rosto estava sendo usado em anúncios em todo o mundo porque ela deu a um fotógrafo os direitos de sua imagem em troca de retratos profissionais gratuitos. A história de Roberson seria parecida, exceto que provavelmente não era o fotógrafo que estava lucrando com a sua foto.

Surpreendentemente, não há nada nas pilhas de documentos judiciais e de notícias da época que discutam exatamente como a Franklin Mills Company, ou a Rochester Folding Box Company, a empresa de impressão que produziu os pôsteres, conseguiram a foto de Roberson. Ela disse ao Democrat & Chronicle que seu namorado pediu uma cópia de sua foto para dar a um amigo próximo que queria fazer um retrato a partir dela. Todas as pessoas envolvidas no incidente morreram há muito tempo, mas um descendente do tio de Roberson me disse que o namorado de Abigail trabalhava para uma das duas empresas envolvidas no anúncio, e poderia ter dado a foto da namorada ao seu empregador sem o conhecimento ou consentimento dela.

O advogado de Roberson argumentou que os acusados ​​haviam invadido o “direito de privacidade” dela. Essas três palavras simples são o que torna esse processo notável.

Roberson e sua mãe decidiram processar ambas as empresas envolvidas na criação do anúncio. O processo movido na Suprema Corte do Condado de Monroe em 1900, quando Roberson tinha 17 anos, alegou que o anúncio havia sido impresso e distribuído em todo o país e “internacionalmente” (o que provavelmente significava apenas Canadá). A queixa legal alegou que quando Roberson estava bem o suficiente para sair da cama, ela foi “zombada” por pessoas da cidade que a reconheceram do cartaz. Como as empresas infligiram essa angústia mental a Roberson puramente pelo “propósito de lucro e ganho para si mesmas”, ela e sua mãe exigiram US$ 15.000 em indenização, o equivalente a cerca de US$ 400.000 hoje.

O caso foi a julgamento na Suprema Corte do Condado de Monroe, onde, de acordo com o Democrat & Chronicle, o advogado de Roberson argumentou que os réus invadiram o “direito de privacidade” de Roberson. Essas três palavras simples são o que torna esse processo notável.

Em 1900, ainda não havia um caso em Nova York sobre o direito à privacidade. Não havia lei em nenhum lugar do país que o mencionasse. Não está na Constituição dos EUA. O mais próximo que a Declaração de Direitos chega a ela é a Quarta Emenda, que protege os cidadãos dos Estados Unidos contra a busca e apreensão ilegal de suas propriedades pelo governo. Então, quando George Eastman, o fundador da Kodak, inventou a câmera portátil em 1888, a sociedade americana não tinha a linguagem jurídica para discutir as implicações potencialmente invasivas da nova tecnologia.

As câmeras já existiam nos estúdios há mais de meio século, mas até elas se tornarem portáteis, apenas os fotógrafos profissionais sabiam como operá-las. Graças à Kodak, na virada do século 20, um terço dos lares americanos possuía câmeras portáteis. Isso causou alarme: o termo “demônio Kodak” foi cunhado para designar homens sem escrúpulos que esperavam escondidos nas árvores ou atrás de paredes para tirar fotos de transeuntes desavisados.

Em 1890, dois estudiosos jurídicos de Harvard, Samuel Warren e Louis Brandeis, abordaram a então nova tecnologia em um artigo agora famoso (entre estudantes de direito) na Harvard Law Review argumentando que “fotografias instantâneas invadiram os recintos sagrados da vida privada e doméstica”, as pessoas precisavam de um direito constitucionalmente reconhecido para serem deixadas em paz, ou um “direito de privacidade”. O caso de Roberson, uma década depois, deu aos tribunais a primeira oportunidade de decidir se seguiriam seus conselhos.

Se preparando para o caso de os tribunais não estarem prontos para reconhecerem o conceito de privacidade, o advogado de Roberson também alegou que as empresas tinham roubado sua propriedade, afirmando que a imagem de alguém é de sua propriedade.

O juiz da Suprema Corte decidiu em favor dos Roberson e concedeu-lhes os US$ 15.000. Ele achava que sua decisão estabeleceria um importante precedente legal, escrevendo que em sua opinião “existiu na opinião pública [durante anos] a sensação de que a lei era muito frouxa para oferecer algum remédio para a circulação não autorizada de retratos de pessoas privadas. (Um sentimento que, claro, ressoa até hoje).

As empresas insatisfeitas apelaram duas vezes e o caso chegou à mais alta corte do estado. As empresas negaram a existência de um direito de privacidade e argumentaram que não haviam roubado ou usado qualquer coisa de valor monetário real para Roberson, de modo que não roubaram sua propriedade.

O Tribunal de Apelações de Nova York concordou (embora não por unanimidade) e anulou a vitória dos Roberson em julho de 1902 em uma decisão por 4 a 3. Na opinião da maioria, o juiz Alton Parker escreveu que um direito legal de privacidade não existia, que a propriedade física de Roberson não havia sido roubada, que sua reputação não estava prejudicada, e que sua angústia era puramente mental, então ela não tinha um caso válido.

O rosto de Roberson não tinha valor intrínseco, de acordo com o juiz (apesar de seu valor em ajudar a Franklin Mills a vender farinha), e se o tribunal concedesse a ela danos por violações de privacidade que causaram apenas sofrimento mental, ele abriria as comportas de litígios “na fronteira do absurdo”. A opinião de Parker é incrivelmente machista: ele não podia acreditar que Roberson não estava lisonjeada, dado o “elogio à sua beleza implícito na seleção da foto”.

A decisão do Tribunal de Apelações de Nova York foi controversa e criou no início dos anos 1900 meio que uma versão de uma guerra no Twitter atualmente, com conselhos editoriais em todo o país criticando a decisão. O New York Times escreveu que encorajaria os “kodakers” (stalkers, semelhantes aos “demônios Kodak”) e outros membros do “público leigo promíscuo” a continuar invadindo a privacidade das pessoas, particularmente as mulheres, com impunidade. Sentindo a pressão do público, o juiz Denis O’Brien, um dos juízes que havia concordado com Parker, respondeu em um artigo da Columbia Law Review, dizendo que a imprensa e o público leigo não apreciavam os pontos mais delicados da lei. Como Parker, em sua opinião, O’Brien enfatizou que cabe ao legislativo, e não aos tribunais, criar novos direitos.

O New York Times escreveu que a decisão encorajaria os “kodakers” (stalkers, semelhantes aos “demônios Kodak”) e outros membros do “público leigo promíscuo” a continuar invadindo a privacidade das pessoas, particularmente as mulheres, com impunidade.

Os legisladores eventualmente entraram na briga. Em sua primeira sessão após a decisão do caso Roberson, o legislador do estado de Nova York aprovou uma lei que concede aos cidadãos o direito de privacidade, que proibia que as empresas usassem o nome ou aparência de uma pessoa em anúncios sem ter o consentimento dessa pessoa.

Esta foi a primeira vez que uma lei relacionada à privacidade passou em qualquer lugar dos Estados Unidos. (Desde então, mais de 600 leis estaduais e federais relacionadas à privacidade foram aprovadas). Inspirou a Califórnia a aprovar uma lei semelhante, que serviu de base para uma ação coletiva de 2013 contra o Facebook por usar nomes de usuários e fotos de perfil para promover produtos que eles “curtiram” em “Histórias patrocinadas” sem o seu consentimento. (O Facebook resolveu o caso por U$ 20 milhões).

Em uma bela ironia, o juiz que decidiu contra Roberson, Alton Parker, subitamente desenvolveu um desejo por privacidade dois anos depois que ele decidiu que ela não existia legalmente. Em 1904 ele concorreu à presidência como candidato democrata contra Theodore Roosevelt. Durante sua campanha, ele reclamou que os paparazzi não deixavam ele e sua família em paz.

“Reservo-me o direito de colocar a mão nos bolsos e de assumir atitudes confortáveis ​​sem ter que ter medo permanente de ser capturado por alguém com uma câmera”, escreveu em um comunicado à imprensa. Abigail Roberson respondeu a Parker em uma carta aberta publicada na primeira página do The New York Times em 27 de julho de 1904.

“Aproveito esta oportunidade para lembrá-lo de que você não possui um direito como o que você afirma”, Roberson com 21 anos de idade à época escreveu de maneira descarada. “Eu tenho grande autoridade para a minha declaração, sendo nada menos do que uma decisão do Tribunal de Apelações deste Estado, sobre a qual você escreveu a opinião majoritária”.

Daniel Kornstein, um advogado de Nova York que me apontou para esta correspondência entre Roberson e Parker argumenta que a inconsistência nos sentimentos de Parker reflete o sexismo predominante na época. Parker não entendia que uma jovem podia ficar perturbada com uma atenção desagradável – dizendo que deveria se sentir lisonjeada –, mas na sua própria pele, ele descobriu que, na verdade, não apreciava “o elogio implícito” dos paparazzi tirando fotos dele. Ele acabou perdendo a eleição para Roosevelt com uma diferença enorme.

Houve muitas inovações na lei de privacidade em Nova York e nos Estados Unidos desde a decisão de Roberson, mas o controle dos moradores de Nova York sobre suas imagens ainda está limitado a casos em que essas imagens são usadas para ganho comercial sem o seu consentimento.

Em 1955, um juiz do Tribunal de Apelações declarou explicitamente que “[o direito de privacidade de Nova York] foi elaborado estritamente para abranger apenas o uso comercial do nome ou semelhança de um indivíduo e nada mais”.

O direito de privacidade de Nova York nem sequer protege as vítimas de “pornografia de vingança”, a publicação de imagens ou vídeos explícitos de outra pessoa sem o seu consentimento. Um projeto de lei separado teve que ser apresentado no Senado de Nova York para evitar pornografia de vingança e ainda aguarda votação.

Um especialista em direito com quem falei em Rochester, Andrew Kloc, explicou como, apesar da aprovação do direito de privacidade, a decisão de Roberson “ainda está presente”: ela é usada como precedente legal em Nova York até hoje para limitar o escopo do direito de privacidade; recentemente, em março de 2018, foi citada no indeferimento do processo muito divulgado de Lindsay Lohan contra a Take Two Interactive Software por basear um personagem do GTA (Grand Theft Auto V) nela sem o seu consentimento.

As leis de outros estados reconhecem um direito mais amplo de privacidade. Por exemplo, apenas um ano após Nova York aprovar seu direito de privacidade, um juiz na Geórgia estabeleceu um precedente legal para reconhecer o direito à privacidade sobre a imagem de uma pessoa, mesmo quando a imagem não é usada para ganho comercial, quando seu uso meramente causa o sofrimento mental do sujeito.

A perda legal de Abigail Roberson garantiu que outros fossem protegidos de maneiras que ela não foi, mas as leis que ela inspirou estão limitadas às imagens tradicionais de nossos rostos e em Nova York ainda limitadas a casos em que nossas imagens são usadas para ganhos comerciais.

Atualmente, as digitalizações de nossos rostos, ou impressões faciais, são mais valiosas porque podem identificar pessoas de maneira única. Eles podem desbloquear telefones celulares que contêm vastas quantidades de informações pessoais. Seu rosto pode verificar transações financeiras ou confirmar sua identidade em aeroportos internacionais.

A tecnologia de reconhecimento facial permite que os stalkers identifiquem as mulheres que aparecem na pornografia e permite que atores poderosos do estado e não estatais identifiquem e ameacem manifestantes. O banco de dados de reconhecimento facial do FBI tem impressões de mais da metade dos adultos dos EUA. O Facebook provavelmente tem mais.

No entanto, não há lei federal nos EUA que estabeleça o que pode ser feito com essas impressões faciais. Apenas Illinois e Texas têm leis estaduais especificando que as empresas precisam de consentimento antes de coletar e armazenar as impressões digitais de qualquer indivíduo (e outras informações biométricas exclusivas).

Washington, o único outro estado com uma lei de privacidade biométrica só reforça o requisito de consentimento se uma empresa estiver usando a informação biométrica para “fins comerciais” e sua definição de informação biométrica atualmente não inclui identificação facial.

A menos que nossos legisladores atuem para nos dar mais controle sobre nossa privacidade biométrica, qualquer um de nós pode se considerar uma Abigail Roberson do século 21.

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