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Coronavírus sofreu mutação e se tornou mais contagioso? Não é bem assim

Um novo estudo identificou uma mutação do coronavírus em 99% dos casos da segunda onda em Houston, mas, na prática, pouca coisa mudou.

Técnico extrai vírus de amostras de swab no laboratório de testagem de coronavírus da Enfermaria Real de Glasgow, na Escócia. Foto de 19 de fevereiro de 2020. Imagem: Jane Barlow/Getty Images

Estudos que ganharam repercussão nos últimos dias sugerem que o coronavírus que causa COVID-19 sofreu uma mutação e pode ser mais infeccioso. Mas, embora as descobertas científicas destas pesquisas possam ser legítimas, não é tão preocupante quanto algumas manchetes podem levar você a acreditar — o vírus não está se tornando capaz de rasgar máscaras ou sobreviver a água e sabão, e a “nova” cepa é a mesma com a qual os EUA e grande parte do mundo estão lidando há meses.

Na quarta-feira (23), uma grande equipe de cientistas divulgou um artigo no site de pré-impressão medRxiv, um repositório de pesquisas preliminares que ainda não passaram pelo processo típico de revisão por pares. No estudo, eles detalham como sequenciaram geneticamente mais de 5 mil amostras do SARS-CoV-2 que foram coletadas de pacientes na área de Houston, Texas, entre março e julho de 2020. Durante esse tempo, eles documentaram uma mudança genética no vírus, marcada claramente pelo surgimento de duas ondas diferentes de surtos de COVID-19 na região.

A mudança potencialmente mais importante envolve uma mutação na proteína spike do vírus — a chave que permite que o vírus entre em nossas células, para simplificar — chamada D614G. Durante a segunda onda, que eles classificaram como iniciada no final de maio, mais de 99% das cepas coletadas tinham a mutação D614G. Além disso, em comparação com a primeira onda de infecções, os pacientes, em média, apresentavam níveis mais elevados do vírus em seu sistema.

Isso poderia sugerir que as cepas D614G do coronavírus são melhores para infectar e se replicar dentro de nossas células, escreveram os autores, o que também poderia tornar o vírus melhor para se espalhar para outras pessoas.

Em maio, os cientistas do Laboratório Nacional de Los Alamos, no Novo México, foram alguns dos primeiros a descrever o surgimento da forma D614G do vírus, fornecendo evidências de que essa mutação se tornou mais comum e, eventualmente, sempre presente em cepas coletadas ao longo do tempo, em comparação com os primeiros casos na China, onde os primeiros surtos conhecidos de COVID-19 ocorreram entre o fim de 2019 e os primeiros meses de 2020. Da mesma forma, teorizaram que a D614G melhorou a capacidade .

Desde então, mais pesquisas surgiram dando suporte a essa teoria, sendo a última delas o estudo de Houston. Mas ainda não temos evidências diretas de que as cepas D614G são mais infecciosas do que a cepa de SARS-CoV-2 que apareceu pela primeira vez na China, e este último estudo também não fornece isso.

Como sabemos agora, o coronavírus se espalhou da Europa para quase todos os outros lugares do mundo, incluindo os EUA. Não está claro se a cepa D614G se tornou dominante por ser mais contagiosa ou simplesmente por acaso.

“Esses estudos devem ser feitos, mas por enquanto, isso é mais do mesmo: [a cepa com a mutação] é mais comum, mas isso não nos diz muito sobre se realmente tem alguma diferença prática”, disse Angela Rasmussen, virologista da Universidade de Columbia que não trabalhou nessa pesquisa.

Talvez o mais importante seja que ninguém, incluindo os pesquisadores que estudam a D614G, acha que essa mutação realmente tornou o vírus mais mortal ou mais provável de causar doenças, algo que parece se perder nas manchetes que discutem esta pesquisa.

“Encontramos poucas evidências de uma relação significativa entre os genótipos do vírus e a virulência alterada”, escreveram os autores deste novo estudo.

Mesmo que a forma D614G do vírus seja realmente mais infecciosa do que antes, provavelmente não muda as coisas na prática. Por todo esse tempo, os EUA e a maior parte do mundo têm lutado justamente contra essa forma D614G. Esses estudos, portanto, não estão identificando uma mutação que ameace tornar o vírus pior do que a situação atual.

Embora este novo artigo destaque que as cepas D614G foram 99% comuns na segunda onda de infecções em Houston, por exemplo, lendo por completo você descobre que 82% das cepas durante a primeira onda, que foi menor, também tinham essa mutação.

“Faz sentido que seja a variante mais frequente observada agora, pois já era a variante dominante em circulação em maio”, observou Rasmussen.

É certamente importante fazer uma crônica da evolução genética do coronavírus (e de qualquer germe potencialmente perigoso) e identificar mutações potenciais que podem estar afetando a forma como o vírus interage com as pessoas. Mas cientistas e jornalistas devem ter cuidado para não exagerar nas implicações dessa pesquisa, que deve ser replicada e idealmente estudada por meio de experimentos que possam mostrar diretamente os efeitos de uma mutação.

Vírus e bactérias sofrem mutações o tempo todo e, na maioria das vezes, elas não mudam muita coisa. Mesmo que uma mutação possa ter um efeito benéfico para um germe, ela ainda precisa ser amplamente transmitida, o que não é certeza de acontecer. Por exemplo, uma mutação que torna um germe melhor em se replicar pode não fazer com que ele se espalhe mais, porque também pode deixar o hospedeiro mais doente, a ponto de ele morrer antes de transmitir a infecção para outras pessoas.

David Morens, epidemiologista e consultor científico do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA, discutiu o estudo de Houston com o Washington Post, dizendo: “Usar máscaras, lavar as mãos, todas essas coisas são barreiras para a transmissibilidade ou contágio, mas como o vírus se torna mais contagioso, estatisticamente, ele fica melhor para contornar essas barreiras.”

Infelizmente, alguns meios de comunicação pegaram essa declaração e correram com ela. A manchete da Fox News foi: “Mutação do coronavírus pode contornar as proteções de usar máscara e lavar as mãos.” Não é bem assim.

Uma mutação amplamente disseminada no coronavírus pode definitivamente afetar quaisquer tratamentos ou vacinas potenciais que estamos desenvolvendo contra ele. Mas até agora, não vimos evidências disso. E é seguro dizer que os vírus não tendem a criar mãozinhas que podem romper barreiras físicas como máscaras. Da mesma forma, ninguém está preocupado com o fato de o vírus se tornar imune a água e sabão.

As coisas sempre podem mudar e devemos estar preparados para o pior. Mas, neste momento, o vírus não parece ser uma ameaça maior — nem menor — do que o que estamos enfrentando desde os primeiros dias da pandemia.

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