_Saúde

É hora de tirar o desenvolvimento de antibióticos das mãos da indústria farmacêutica, dizem cientistas

Relatórios recentes mostram que as superbactérias resistentes a antibióticos estão aumentando. Por isso, alguns cientistas do Reino Unido estão pressionando por uma solução que pode parecer radical. Eles argumentam que a pesquisa e o desenvolvimento de novos antibióticos devem ser retirados das mãos da indústria farmacêutica e receber financiamento público em escala global. A premissa […]

Foto: Getty

Relatórios recentes mostram que as superbactérias resistentes a antibióticos estão aumentando. Por isso, alguns cientistas do Reino Unido estão pressionando por uma solução que pode parecer radical. Eles argumentam que a pesquisa e o desenvolvimento de novos antibióticos devem ser retirados das mãos da indústria farmacêutica e receber financiamento público em escala global.

A premissa de seu argumento, descrita em um artigo publicado na terça-feira (19) na Lancet Infectious Diseases, é fácil de entender. A velocidade de desenvolvimento de novos antibióticos que podem tratar infecções bacterianas resistentes — que vêm crescendo desde os anos 80 — está cada vez menor, já que praticamente todas as empresas farmacêuticas abandonaram o campo da pesquisa de antibióticos. Como não dá para saber se conseguiremos convencer a indústria a voltar a este ramo em tempo hábil, uma medida mais drástica se faz necessária.

Existem algumas razões que fizeram essa fonte secar. Uma é simplesmente que ficou mais difícil e mais caro desenvolver esses medicamentos ao longo do tempo. Os cientistas precisam olhar mais profundamente na natureza e no laboratório para encontrar moléculas que atacam bactérias de uma maneira diferente das anteriores, uma vez que as bactérias desenvolveram defesas contra as armas já usadas nelas. E muitas dessas tentativas acabam falhando e representam um custo irrecuperável.

Mesmo que você consiga criar um novo antibiótico e coloque-o no mercado, ele não é uma máquina de fazer dinheiro quando comparado à mais recente medicação para doenças cardíacas. Quanto mais usamos um antibiótico específico para conter uma bactéria específica, maiores são as chances de que ela acabe resistindo. Portanto, seu uso precisa ser gerenciado com cuidado, como as últimas gotas de água fresca em uma ilha deserta. Essa não é a receita para um grande lucro.

Mesmo desconsiderando esses motivos, o problema permanece. Desde 2000, poucos antibióticos verdadeiramente novos foram desenvolvidos, mas estes ainda estão relacionados ou funcionam de maneira semelhante aos medicamentos existentes. Segundo dados de junho de 2019, 42 candidatos a antibióticos estão em desenvolvimento, e espera-se que apenas um em cada cinco deles consiga chegar ao público. Enquanto isso, cerca de 700 mil pessoas morrem anualmente de infecções resistentes em todo o mundo, número que provavelmente só aumentará nos próximos anos.

Diante disso, governos e algumas organizações tentaram incentivar as empresas a buscar novamente a pesquisa com antibióticos, com algum sucesso limitado. Alguns incentivos incluem o pagamento de uma quantia adiantada às empresas para compensá-las por seus investimentos arriscados no início do desenvolvimento. Mais recentemente, o governo do Reino Unido anunciou que testaria um “modelo de assinatura” para novos antibióticos, em que ele pagaria a uma empresa o mesmo dinheiro anual por um medicamento, não importa o quanto seja realmente usado.

Segundo os autores do novo artigo, essas parcerias público-privadas devem ser mantidas e financiadas no futuro imediato. Mas eles argumentam que, a médio e longo prazo, é improvável que esses incentivos sejam suficientes para nos manter protegidos das bactérias resistentes aos antibióticos.

“O problema é que você precisa de um suprimento constante de novos antibióticos chegando ao mercado o tempo todo, porque as bactérias acabam se tornando resistentes a eles. É assim que funciona. Elas são especialistas em adaptação. Portanto, você precisa de um fluxo constante, produzindo continuamente novos produtos que podemos usar ”, disse ao Gizmodo o autor Claas Kirchhelle, pesquisador do Programa Oxford Martin sobre Responsabilidade Coletiva por Doenças Infecciosas da Universidade de Oxford. “Tudo isso requer uma longevidade de financiamento, que talvez não exista no momento.”

Em vez disso, Claas e seus co-autores dizem que a única maneira real de garantir que teremos esses antibióticos que salvam vidas nos próximos anos é desconectar gradualmente seu desenvolvimento da indústria farmacêutica. Em outras palavras, eles querem que nações de todo o mundo se reúnam, comprem pesquisas de antibióticos da indústria farmacêutica e as internacionalizem.

A partir de então, a pesquisa e o desenvolvimento de antibióticos seriam amplamente executados como um serviço público. Esse fluxo de desenvolvimento seria financiado de forma permanente por meio de um investimento anual das nações membros. A administração ficaria a cargo de instituto grande e transparente, composto por cientistas em tempo integral e outros, que tomaria o lugar da indústria na tarefa de acompanhar antibióticos promissores no processo de desenvolvimento.

Isso iria custar cerca de US$ 5 bilhões anuais para alavancar efetivamente este fluxo de trabalho e assumir o controle da indústria em menos de dois anos, estimam os cientistas. Esta é aproximadamente a quantidade de dinheiro gasta todos os anos pelo Fundo Global da ONU para prevenir e tratar o HIV, a tuberculose, e malária. Mas é um investimento que valeria a pena em termos de vidas que esses novos medicamentos salvariam no futuro, dizem os pesquisadores.

“Já faz muito tempo que pensamos em soluções privadas para esse problema público. E descartamos o fato de que grande parte de outros medicamentos e intervenções muito eficazes foram resultado de um desenvolvimento público bem-sucedido”, disse ao Gizmodo o co-autor Adam Roberts, microbiologista molecular da Escola de Medicina Tropical de Liverpool. Ele faz referência à descoberta e ao desenvolvimento de penicilina, bem como de muitas das primeiras vacinas.

Uma ideia dessas é uma mudança brusca de direção. Por isso, é improvável que ganhe rapidamente apoio disseminado dos envolvidos na pesquisa e nos desenvolvimento de antibióticos.

“Eu não vejo essa necessidade de optar entre um ou outro [o público ou o privado]”, disse Allan Coukell, diretor sênior de programas de saúde da Pew Charitable Trusts, ao Gizmodo. “As habilidades necessárias para desenvolver um medicamento e trazê-lo ao mercado são algo que geralmente existe no setor privado, nas empresas farmacêuticas e não em outros lugares. Então, se você pode fazer o mercado funcionar, acho que esse é o caminho mais rápido para retomar a descoberta de antibióticos.”

Coukell também observou que outros cientistas apresentaram a ideia de projetos dedicados sem fins lucrativos que trabalhariam em menor escala ao lado da indústria para encontrar e testar novos antibióticos. Essa é uma abordagem que já tem muitos fãs, incluindo Coukell.

Mas Roberts e seus coautores dizem que querem levar a conversa adiante, para começar a convencer seus colegas cientistas e outros que não vale mais a pena manter a situação como está.

“Esperamos que este artigo possa galvanizar a ação — em torno do nosso modelo específico ou de outras formas de desenvolvimento público”, afirmou Roberts. “O diagnóstico que fazemos no artigo é que já estamos no ponto de crise.”

Todos, incluindo leigos, provavelmente perceberão isso mais cedo ou mais tarde.

“Uma das coisas que todos podemos fazer é parar de pensar no apocalipse pós-antibiótico como se fosse uma coisa do futuro futuro. Porque, na verdade, estamos vivendo isso agora — já temos bactérias resistentes a todos os remédios aplicados”, acrescentou Roberts.

Sair da versão mobile