
Essas alterações genéticas aumentam o risco de malformação no cérebro e na medula do bebê
Por Júlio Bernardes

Cientistas de 14 países, incluindo o Brasil, acabam de divulgar um artigo na Nature com descobertas importantes sobre as origens genéticas da meningomielocele, doença conhecida como “espinha bífida”. Trata-se de uma malformação na gestação que causa complicações neurológicas, sensoriais e nos movimentos. Os pesquisadores, das áreas de genética, neurologia e pediatria identificaram em pais e filhos portadores de meningomielocele uma ausência de cromossomos e a presença de um gene que, simultaneamente, aumentam o risco de desenvolver a doença.
O estudo também demonstra, por meio de testes com animais, que a severidade das malformações provocadas pela meningomielocele pode ser modulada pela presença de ácido fólico na alimentação. Os resultados do trabalho têm potencial para impactar de modo relevante o diagnóstico e na prevenção da doença, que afeta um em cada mil nascidos vivos, e apresenta custos elevados de tratamento.

“A meningomielocele é a forma mais grave de defeito de fechamento do tubo neural, estrutura embrionária que dá origem ao sistema nervoso central, ou seja, ao cérebro e à medula espinhal, quando não é completada a formação do canal espinal e das estruturas que o envolvem durante o desenvolvimento do feto na gravidez. Essa condição leva a uma exposição da medula e das meninges, resultando em déficits motores, sensoriais e complicações neurológicas”, afirmam ao Jornal da USP a pesquisadora Camila Araújo, do Hospital da Clínicas de Ribeirão Preto (HCRP) e o professor Hélio Rubens Machado, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, que estão entre os autores do artigo. “O quadro neurológico envolve várias malformações do sistema nervoso, algumas bastante complexas. A mais conhecida é a hidrocefalia.”
“A doença é comumente conhecida como ‘espinha bífida’ porque está associada a uma malformação vertebral na qual os arcos vertebrais não se fecham completamente sobre a medula espinhal. A incidência de meningomielocele varia globalmente, sendo influenciada por fatores genéticos e ambientais, incluindo a suplementação materna com ácido fólico”, explicam os pesquisadores. “O impacto médico-social dos defeitos de fechamento do tubo neural é bastante significativo e o custo total dos diferentes tipos de tratamento é alto, chegando a valores próximos a US$ 200 milhões anualmente nos Estados Unidos.”
De acordo com Camila Araújo e o professor Machado, antes da pesquisa já se reconhecia que a origem da meningomielocele envolvia fatores genéticos e ambientais. “Estudos anteriores identificaram variantes genéticas raras e ultrarraras associadas à condição, mas não havia uma forte evidência de um fator genético recorrente e de alto risco”, observam. “Além disso, sabia-se que a suplementação com ácido fólico materno poderia reduzir a incidência dos defeitos do tubo neural, sugerindo que interações entre genes e fatores nutricionais desempenham um papel crítico no desenvolvimento da doença.”
Risco aumentado
O estudo foi conduzido pelo Spina Bifida Sequencing Consortium (SBSC), um grupo de pesquisadores de 14 países que realizou sequenciamentos de genoma (código genético individual) e exoma (identificação de alterações no DNA associadas à possibilidade de doenças genéticas) em 715 trios de pais e filhos afetados pela meningomielocele. Foram incluídas 50 famílias atendidas no ambulatório do HCRP, que tiveram amostras genéticas enviadas para o laboratório do professor Joseph Gleeson, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), nos Estados Unidos. “O objetivo era identificar causas genéticas associadas à condição”, dizem os pesquisadores Camila Araújo e Machado. “Foram avaliadas deleções cromossômicas, que ocorre quando uma parte do DNA de um cromossomo é perdida ou removida, podendo afetar genes essenciais, especificamente a deleção 22q11.2, e sua relação com o risco de desenvolver meningomielocele.”

Os cientistas investigaram a presença de “mutações de novo” e a seleção purificadora entre os portadores da doença. “Mutações de novo são aquelas que surgem pela primeira vez na pessoa afetada, não estando presentes nos genomas dos pais. Elas ocorrem devido a erros durante a replicação do DNA ou eventos de recombinação durante a formação dos gametas. A seleção purificadora é um mecanismo evolutivo que remove variantes genéticas deletérias da população ao longo das gerações”, descrevem. “No caso de doenças graves e de baixa fertilidade, como a meningomielocele, é esperado que mutações altamente prejudiciais sejam eliminadas ao longo do tempo, reduzindo sua frequência na população. No entanto, se uma condição é causada principalmente por mutações de novo, a seleção purificadora tem menos impacto, pois novas mutações continuam a surgir em cada geração.”
O estudo identificou mutações de novo na população analisada. “Dos 715 trios sequenciados, foram encontrados pacientes com deleções 22q11.2, que poderiam ser herdadas ou de novo. O fato de a pesquisa ter usado uma abordagem baseada em trios sugere um foco na identificação de mutações de novo”, enfatizam os pesquisadores Camila Araújo e Machado. “Além disso, a pesquisa menciona que mutações de alto impacto sujeitas à seleção purificadora podem aumentar o risco de meningomielocele. Por ser uma condição severa que pode afetar a sobrevivência e a reprodução, é possível que mutações fortemente associadas à doença sejam negativamente selecionadas ao longo do tempo.”
A pesquisa encontrou uma forte associação entre a deleção 22q11.2 e a meningomielocele. “Pacientes com meningomielocele tinham uma probabilidade 23 vezes maior de apresentar essa deleção em comparação com a população geral. Entre os portadores da 22q11.2, o risco de desenvolver a doença foi 12 a 15 vezes maior do que o esperado”, ressalta. “Além disso, o estudo identificou o gene CRKL, localizado dentro da região deletada, como um possível fator responsável pelo aumento do risco. Modelos de camundongos deficientes em CRKL apresentaram defeitos do tubo neural, e a severidade dessas malformações foi modulada pela disponibilidade de ácido fólico na dieta.”

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Os pesquisadores Camila Araújo e Machado destacam que os achados do estudo podem ter um impacto significativo no diagnóstico e na prevenção da meningomielocele. “Na triagem genética, como a deleção 22q11.2 é um fator de risco significativo, podem ser incorporados testes para identificar fetos em risco aumentado. No conselho genético, famílias com histórico de deleção podem ser informadas sobre o risco de meningomielocele, auxiliando na tomada de decisões reprodutivas”, recomendam. “Embora a suplementação com ácido fólico reduza a incidência de defeitos do tubo neural, os dados sugerem que a deleção pode conferir resistência parcial à suplementação. Isso indica a necessidade de investigar estratégias complementares de prevenção nesses casos específicos.”
O SBSC foi estabelecido em 2015 e está sediado na UCSD, nos Estados Unidos. Seu objetivo principal é investigar a arquitetura genética da meningomielocele por meio da sequenciação do genoma e exoma de trios de pais e filho. “O estudo abre caminho para investigações mais detalhadas sobre o papel do gene CRKL e outros fatores genéticos que podem contribuir para o desenvolvimento da meningomielocele”, salientam os pesquisadores. O trabalho descrito no artigo The contribution of de novo coding mutations to meningomyelocele, publicado na revista Nature no final março, foi uma colaboração entre pesquisadores e instituições de diversos países, coordenados pelo professor Gleeson, da UCSD. “A pesquisa contou com a participação de especialistas em genética, neurologia e pediatria, refletindo um esforço multidisciplinar para compreender melhor as bases genéticas da doença.”
Mais informações: e-mails [email protected], com Camila Araújo, e [email protected], com o professor Hélio Rubens Machado