_Espaço

Quem são os estudantes brasileiros que enviaram projetos para a Estação Espacial Internacional

O projeto Garatéa-ISS envia, anualmente, experimentos de estudantes brasileiros para a Estação Espacial Internacional.

Professora Michele (à esquerda) com os alunos Eduardo, Karine (centro) e Larissa (à direita). Crédito: Divulgação

“É difícil você conhecer alguém que um dia pensou seriamente em ir pro espaço depois que passou da infância. Você sonha em ser astronauta quando é pequeno, mas depois você percebe que não dá, que não é uma opção viável. Até que chega um projeto e diz: está aqui uma oportunidade para você levar um experimento para o espaço”. É assim que o estudante Eduardo Vieira descreve como o projeto Garatéa-ISS despertou seu interesse em fazer ciência. Junto com Larissa Paes e Karine Ascoli, os três alunos do ensino médio foram os ganhadores da última edição da iniciativa que leva experimentos de alunos brasileiros à Estação Espacial Internacional (ISS).

Após serem selecionados entre 89 projetos de 2.800 estudantes de todo o Brasil, o trio da cidade de Sorriso, no interior do Mato Grosso, comemora a conquista e aguarda o retorno do experimento à Terra para concluir sua pesquisa e registrar as descobertas em um artigo científico. No caso, eles enviaram um tubo com bactérias, água, carne lactose e antibióticos para entender como a microgravidade pode influenciar a degradação da lactose na flora intestinal humana. Ter problemas gastrointestinais no espaço pode ser algo muito sério.

Mas, antes de tentarmos entender esse experimento inovador proposto pelos jovens, aqui vai uma breve explicação sobre o que é exatamente o Garatéa-ISS

O que é o Garatéa-ISS

Financiado pelo Instituto TIM, o projeto Garatéa-ISS corresponde à iniciativa de cunho educacional que faz parte da Missão Garatéa, fundada pelo engenheiro Lucas Fonseca. O objetivo é promover a participação de alunos brasileiros no programa American Student Spaceflight Experiments Program (SSEP), que envia experimentos de alunos dos Estados Unidos e Canadá em foguetes da NASA para a ISS.

Assim, o ciclo anual do Garatéa-ISS se inicia com as inscrições de escolas de todo o país. A partir de então, os educadores participam de treinamentos sobre conceitos, metodologias e regulamentos que ajudarão no desenvolvimento do projeto. Os professores se tornam, assim, os facilitadores da iniciativa nas escolas, sendo responsáveis por incentivar a participação dos alunos e guiá-los durante todo o processo.

Em entrevista ao Gizmodo Brasil, Fonseca conta que a ideia é “trazer a ciência em idade precoce para essas crianças se sentirem cientistas, se empolgarem e quererem seguir uma carreira científica. Tentamos despertar o interesse nesses jovens através de um programa que tem uma narrativa fantástica de mandar alguma coisa para o espaço”. Para ele, isso também mostra que a NASA não precisa ser responsável por todos os projetos que acontecem na ISS e que o Brasil pode, sim, fazer parte dessa nova economia espacial.

Para se ter uma ideia, o custo de mandar um projeto para a ISS é de US$ 50 mil, sendo que 50% desse valor é subsidiado pelo programa de educação da NASA. “A ISS é muito custosa para os países contribuintes. Já existia desde 2015 a premissa de que a ISS deveria ser financiada majoritariamente pela iniciativa privada, mas a NASA nunca conseguiu tirar isso do papel”, explica Fonseca. Por isso, investimentos como esse do projeto Garatéa, além de toda a importância para a ciência e educação, traz benefícios para a própria ISS.

Fonseca conta que é muito interessante ver como as crianças pensam em coisas que adultos não pensam. Segundo ele, há muitas ideias lúdicas, mas isso não diminui a importância do projeto. De fato, os vencedores deste ano apresentaram uma ideia de extrema relevância para os astronautas a bordo da Estação Espacial Internacional, e o Gizmodo Brasil conversou com eles para entender melhor do que se trata.

O que é o projeto vencedor

Tudo começou quando a professora de física Michele Poleze apresentou o Garatéa-ISS para suas turmas, incentivando os alunos a participarem. Vieira conta que isso despertou o interesse do grupo imediatamente, mas eles ainda não faziam ideia de qual experimento gostariam de realizar. Para Larissa, o projeto fez com que eles passassem a ver o mundo com outros olhos, sempre questionando como as coisas funcionariam em microgravidade.

Professora Michele Poleze (centro) com alunas. Crédito: Divulgação

Foi assim que, durante uma aula de biologia, eles descobriram qual seria o tema do seu projeto. Na ocasião, a professora havia mencionado que o número de pessoas intolerantes a lactose estava aumentando e que não havia um consenso acadêmico sobre o porquê disso. O trio decidiu, então, testar como essa condição poderia se manifestar no espaço. Em relação à importância desse experimento, Larissa explica:

Quando pesquisamos sobre alimentação dos astronautas, descobrimos que em grande parte eles são alimentados com comidas à base de lactose, então isso poderia afetar muito a vida deles lá no espaço caso tivessem algum problema gastrointestinal. Porque ter um problema gastrointestinal no espaço é muito sério, mais do que na Terra. Então, entender que a microgravidade influencia, sim, o nosso sistema e como a lactose é degradada no nosso intestino, afeta totalmente a alimentação dos astronautas. Isso pode ajudar a alterar a alimentação deles para deixá-los mais saudáveis e adoecerem menos, tendo uma qualidade de vida melhor.

Para isso, eles enviaram um tubinho, chamado “minilab”, para a ISS, enquanto outro ficou aqui na Terra. Dividido por presilhas, o tubo contém três compartimentos. O primeiro deles foi preenchido com água; o segundo, com as bactérias, o caldo de carne e a lactose; e o último, com antibiótico para matar as bactérias e interromper o projeto no espaço para que ele não seja alterado na viagem de volta ao nosso planeta.

Para Vieira , essa foi a parte mais desafiadora. Foram necessários diversos testes para descobrir a proporção ideal de água para dissolver a lactose e o caldo de carne, os tipos ideais de bactérias a serem utilizados, se o caldo de carne, que serve de alimento às bactérias, era realmente necessário e qual tipo deveriam utilizar, entre outras questões a serem respondidas. Ele ainda conta que, por morarem em uma cidade do interior do Mato Grosso, foi difícil conseguirem acesso às bactérias que precisavam, sendo necessário mandarem manipulá-las em outra cidade.

Todo esse trabalho, no entanto, valeu a pena. Essa é a segunda vez que o grupo participa do Garatéa-ISS com o mesmo projeto. Na primeira vez, em 2018, eles contam que o texto foi muito elogiado pela Universidade de São Paulo (USP), responsável por analisar todos os projetos brasileiros, porém faltava prática. “De fato, na primeira vez, fizemos poucos testes e usamos muitas referências de pesquisas já feitas. Mas não testamos muito o que funcionaria no nosso projeto em específico”, conta Vieira . Após aprimorarem a ideia, eles conseguiram se classificar como os vencedores que representariam o Brasil neste ano.

Uma das etapas finais da competição, após o ganhador ser selecionado, envolve a apresentação do projeto pelo grupo de estudantes em um congresso nos Estados Unidos. No evento, eles devem explicar seu experimento para os alunos vencedores de outros países e aos cientistas envolvidos na iniciativa. “Em julho, a gente ia ver o foguete com o nosso projeto decolando, mas não deu certo por conta da pandemia”, lamenta Larissa.

Ainda assim, eles estão animados para a etapa final do projeto. Com as instruções enviadas aos astronautas pelos alunos, a última fase consiste na retirada das presilhas para dar início ao experimento de degradação da lactose em microgravidade. Isso será realizado ao mesmo tempo aqui na Terra. Depois, o tubo irá retornar e os alunos vão comparar os resultados. Eles contam que pretendem escrever um artigo científico para ser publicado, detalhando suas descobertas. Lucas Fonseca, coordenador do Garatéa-ISS, aponta que os participantes são “alunos de transição; são alunos de ensino médio prestes a entrar na faculdade. Então, eles já entram com esse pé na academia, já com a chance de ter um artigo científico publicado no primeiro ano de faculdade, o que é muito legal”.

Ascoli é a única do grupo que pensa em seguir uma carreira relacionada ao projeto. Segundo ela, isso aumentou seu interesse pela ciência, principalmente em relação a como entender processos, chegar a uma justificativa e conduzir um experimento, em geral. A estudante, que, assim como seus colegas, finalizou o terceiro ano do ensino médio neste semestre, diz que está pensando em estudar engenharia espacial, aeronáutica ou química. “O projeto também mostrou que alunos do ensino médio têm a capacidade de promover uma mudança e de realizar um estudo que provavelmente só se realizaria na vida acadêmica, então acho que é uma forma de servir de referência pras pessoas, incentivar a busca pelo conhecimento”, conta ela.

Estudante Karine Ascoli trabalhando no experimento. Crédito: Divulgação

Vieira , por outro lado, quer se dedicar ao campo das ciências sociais, mas isso não torna a experiência menos importante. “O mais legal foi escrever o projeto. Eu quero seguir carreira acadêmica e é muito legal você, estando no ensino médio, ter que escrever um artigo seguindo as norma da ABNT, entender métodos científicos. No ensino médio, ninguém lê artigo científico”. Com a classificação do grupo para as etapas finais, eles ainda tiveram a oportunidade de viajar até São Paulo para conhecer a USP e conversar com pesquisadores.

Larissa, que pretende estudar psicologia, também reforça a importância do projeto em direcionar os alunos para a pesquisa e incentivá-los a sonhar alto. “Acho que foi uma provação para nós. Quando você é estudante de ensino médio, não tem noção de coisas que pode fazer. Por isso, ter um feedback positivo da USP, de lugares como a NASA, é algo incrível; te prova muita coisa, te prova que realmente dá pra fazer coisas grandes”.

Os três alunos concordam que um dos saldos mais positivos da experiência foi a motivação. Para eles, é gratificante pensar que uma cidade do interior do Mato Grosso conseguiu se destacar a nível nacional, provando que existe muito potencial fora dos grandes centros e, principalmente, da região Sudeste e Sul do país. “Participar do Garatéa-ISS me fez pensar o que estamos formando e inspirando daqui pra frente. Acho que esse é um motor muito forte do Garatéa, principalmente em tempos tão difíceis”.

De olho no futuro

Nesses três anos de Garatéa-ISS, Lucas Fonseca conta como as experiências foram moldando a iniciativa e continuam a surpreendê-lo. Para ele, um dos grandes objetivos é despertar o interesse pela ciência nos jovens, oferecendo oportunidades para quem, muitas vezes, é excluído desse campo. No primeiro ano, ele conta que um dos integrantes do grupo vencedor era de Paraisópolis, região periférica de São Paulo. “O fato de ele ter participado com a gente, proposto uma ideia que foi pro espaço, foi suficiente pra ele ganhar uma bolsa de três anos de ensino médio no Anglo Morumbi. Então, a gente vê umas transformações bem legais com o projeto”, conta Fonseca.

Além do experimento, também são enviados desenhos para a ISS. Neste ano, foram quatro selecionados: um da cidade de São Paulo, dois de São Desidério (Bahia) e um de Diadema (São Paulo). No caso deste último, de Diadema, Fonseca conta que tem um carinho muito grande. “É uma escola municipal de surdos que participa todo ano. A gente teve que adequar o material do projeto por conta dessa escola, e tem sido uma jornada fantástica junto com eles. Isso tudo é muito inclusivo. A ciência se torna inclusiva. E isso é muito importante para criar vocação para essas crianças pensarem num futuro para elas”.

Os alunos também afirmam que o projeto fez com que eles refletissem sobre a educação no Brasil. “Eu acho que a gente, como aluno de escola particular, tem muitos privilégios nessa parte da ciência. Tem muitos alunos de escolas públicas que são realmente capazes de fazer isso como a gente fez e isso me fez perceber como o incentivo à educação é falho no Brasil. Participar deste projeto, ter a chance de pagar para ir pra São Paulo, é um privilégio enorme, porque se fosse um aluno de escola pública, não sei se teria a mesma oportunidade”, conta Larissa.

Para Ascoli , o incentivo da professora Michele, que apresentou o Garatéa-ISS para a escola, foi fundamental para os alunos participarem. “Falta infraestrutura em algumas escolas, mas eu acho que também falta motivação. A gente só conseguiu desfrutar de tal conquista graças à nossa professora e à motivação que ela nos dava”.

Vieira concorda que muitos estudantes não têm esse desejo de buscar conhecimento. “É preciso mostrar a importância da educaçãpo para nós como indivíduos, como sociedade, e pensar em uma educação que crie menos trabalhadores e mais pessoas críticas, independentes. Eu sonho com uma educação que cada vez mais liberte e consiga construir independência pro nosso povo”.

O minilab contendo o experimento dos três alunos deve retornar à Terra já no início do ano que vem, e já estamos ansiosos para ver o artigo desses jovens publicado.

Sair da versão mobile