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Novo estudo sobre falsas memórias sugere que as pessoas não conseguem dizer o que é real

Experimento sobre falsas memórias mostra que pessoas têm dificuldade em saber o que é real, independente se elas só ouviram ou escutaram os relatos.

Luzes com policial. Crédito: Marcelo Hernandez/Getty Images

Marcelo Hernandez/Getty Images

Um novo estudo é o mais recente a mostrar como as falsas memórias são indistinguíveis das reais. As pessoas que viram alguém recontar uma suposta lembrança não conseguiram dizer que a memória era falsa com maior precisão do que a probabilidade de escolher uma resposta certa por uma tentativa ao acaso, segundo o estudo. Além disso, em muitos casos, as pessoas que descreviam suas próprias memórias foram enganadas e passaram a “lembrar” algo que nunca aconteceu.

Sugerindo memórias que não ocorreram

Em 2015, a pesquisadora e psicóloga Julia Shaw e outra coautora do estudo publicaram uma pesquisa sobre falsas memórias. Ao longo de várias entrevistas, elas alegaram ter convencido uma porcentagem substancial de voluntários a recordar falsas memórias de infância. Em um experimento especialmente assustador, elas relataram que cerca de 70% dos voluntários poderiam ser “recordados” de falsas lembranças de terem cometido um crime na pré-adolescência.

Esse truque de memória foi feito com a ajuda dos pais dos voluntários, que contaram aos pesquisadores uma experiência de infância verdadeira e altamente emocional que os participantes tiveram.

Os voluntários recordariam mais tarde essa memória para que os pesquisadores, que usaram a memória verdadeira para construir uma lembrança falsa a partir do zero. Eles disseram aos voluntários que seus pais haviam contado a eles sobre o crime falso ou outro incidente altamente emocional inventado, e pediram que visualizassem esse evento como se tivesse acontecido. Os participantes do experimento não sabiam que essa “memória” havia sido inventada. Os crimes inventados iam de roubo a assalto a mão armada.

Será que as pessoas sabem distinguir o que é real?

O último estudo de Shaw, publicado nesta semana no Frontiers in Psychology, pegou alguns dos relatos do experimento original de 2015 e os mostrou a grupos de voluntários de dois novos experimentos, totalizando mais de 200 pessoas. Shaw e seus assistentes de pesquisa pediram a esses voluntários para adivinhar se a memória recontada de alguém era verdadeira ou não.

Foram utilizados oito conjuntos de memórias, verdadeiras e falsas, e as falsas lembranças envolviam um crime ou outro evento altamente emocional. Um dos relatos verdadeiros contados por alguém no estudo original, por exemplo, era sobre a perda do cachorro da família, enquanto o falso relato envolvia o ataque de um animal cruel.

Nos dois experimentos, os voluntários pareciam se sair ligeiramente melhores do que o acaso, isto é, a probabilidade de escolher uma resposta certa “chutando”, já que, com duas respostas possíveis, essa chance seria de 50%. Eles adivinharam que uma memória era verdadeira com uma taxa de precisão de aproximadamente 60%.

E não foram estatisticamente melhores que o acaso quando se tratava tentar descobrir uma falsa memória. No primeiro grupo, 57% dos voluntários adivinharam corretamente qualquer tipo de memória falsa, com uma precisão de 55% no reconhecimento de falsas memórias de um crime.

“O principal aspecto que esta pesquisa nos diz é que as falsas memórias de eventos altamente emocionais e criminais parecem realmente convincentes para outras pessoas”, disse Shaw, que agora é uma pesquisadora honorária da University College London, em conversa com o Gizmodo por e-mail. Isso é significativo, pois pode ter sérias implicações para a polícia, júris e juízes que confiam no testemunho ocular.

O segundo experimento adicionou uma mudança no processo. Os voluntários foram divididos em três grupos. Todos foram convidados a assistir ou ouvir as pessoas descrevendo uma memória, mas apenas um grupo teve acesso tanto ao vídeo quanto ao áudio.

Os outros dois viram apenas o vídeo, onde eles só tinham a linguagem corporal para analisar se a história era verdadeira ou falsa, ou o áudio. Como antes, o grupo que viu o áudio e o vídeo não teve um desempenho tão bom, com chance de detectar uma memória falsa de 53%, assim como o grupo que viu somente o vídeo (45%). Mas aqueles que ouvem apenas gravações de áudio agora se saíram pior do que os outros, tendo uma taxa de acerto de 32% para falsas memórias.

“O mais chocante é que as pessoas eram melhores na classificação de vídeos silenciosos do que quando tinham o áudio. Em outras palavras, eles eram melhores quando literalmente não sabiam do que se tratava a memória de quando podiam ouvir o que era contado”, disse Shaw. “Sinceramente, não sei por que: os dados não me deram uma resposta para isso. Parece que, de alguma forma, em um contexto apenas de áudio, dependemos ativamente das pistas erradas… mas não está claro quais são essas pistas.”

Memórias falsas são realmente memórias?

As descobertas originais de Shaw de 2015, embora consideradas a primeira evidência experimental de que memórias falsas ricamente detalhadas podem ser criadas com sugestões, foram submetidas a um escrutínio em 2018. Outros pesquisadores argumentaram que os critérios usados para determinar uma memória falsa por Shaw eram muito amplos.

Sua análise concluiu que metade dos voluntários que disseram ter uma memória falsa pode ter desenvolvido uma crença falsa de que o evento havia acontecido, em vez de uma memória genuinamente incorporada do evento. Usando seus critérios, aproximadamente um terço ou menos dos voluntários de Shaw foram considerados com uma memória falsa “verdadeira” — uma taxa mais alinhada com outros estudos de implantação de memória.

Shaw refutou as críticas em um artigo subsequente. Ela argumentou que é praticamente impossível dizer se a lembrança falsa de alguém é sinceramente lembrada ou meramente acreditada, particularmente em um contexto do mundo real onde pessoas inocentes foram forçadas a confessar falsamente um crime, e que seus critérios eram intencionalmente diferentes dos outros usados no passado por esse motivo.

As conclusões do estudo não foram retraídas, embora um erro matemático não relacionado tenha sido trazido à sua atenção no mesmo ano e corrigido (o erro não mudou nenhuma das principais conclusões). Ainda assim, para o novo estudo, Shaw usou apenas memórias classificadas como falsas pelos critérios dela e de seus críticos.

Essa disputa de pesquisa pode destacar ainda mais como é difícil saber a verdade por trás de qualquer evento recontado, mesmo entre os cientistas que estudam a memória. E as novas descobertas de Shaw são especialmente preocupantes em um contexto judicial, uma vez que os júris às vezes têm apenas evidências de áudio nas quais confiar. A polícia e os juízes não devem assumir que eles sabem facilmente distinguir uma memória real de uma memória falsa.

“Precisamos garantir o uso de táticas baseadas em evidências em entrevistas de memória, para não contaminarmos as memórias ou criarmos falsas […] Se o processo pelo qual uma memória foi recuperada estava conduzindo, sugerindo ou mostrando sinais de coerção, isso resultará em evidências menos confiáveis”, disse Shaw. “A única maneira de distinguir uma memória verdadeira de uma falsa é ver como e quando a memória foi lembrada pela primeira vez — e mesmo isso não pode lhe dizer com certeza se algo é verdadeiro, falso ou mentira. Mas é uma abordagem muito melhor do que apenas usar seu pressentimento para decidir.”

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