Mark Zuckerberg diz que Facebook poderia ter evitado a Guerra do Iraque

Em discurso sobre liberdade de expressão, Zuckerberg sugere que a Guerra do Iraque poderia ter sido evitada se mais pessoas tivessem voz na época.
Captura de tela: Facebook

O CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, discursou a um grupo de estudantes aparentemente entediados de Georgetown, um dos quais foi supostamente expulso por não ter colocado o celular no modo silencioso, nesta quinta-feira (17). Na sua fala, ele tentou reescrever a história de sua empresa especialista em coleta de dados.

Zuckerberg tentou pintar a imagem de que o Facebook não entrou no mercado chinês por relutar em comprometer a importância da liberdade de expressão, escondendo o fracasso de sua empreitada. Além disso, ele tentou fazer parecer com que o novo conselho de supervisão é um segmento de governança corporativa responsável promulgada em benefício dos usuários em todos os lugares. Porém, talvez a fala mais impressionante foi a ideia de que se Mark tivesse começado a trabalhar alguns anos antes, o Facebook poderia ter evitado a guerra dos EUA no Oriente Médio (grifo nosso):

Quando eu estava na faculdade, nosso país havia acabado de entrar em guerra com o Iraque e o clima em nosso campus era de descrença. Muitas pessoas sentiram que estávamos agindo sem ouvir muitas perspectivas importantes, e o desgaste dos soldados, suas famílias e nossa psique nacional foram severos, mas a maioria de nós sentiu que não tinha o poder de fazer nada a respeito. E lembro-me de sentir que se mais pessoas tivessem voz para compartilhar suas experiências, talvez isso pudesse ter sido diferente. Esses primeiros anos moldaram minha crença de que dar voz a todos fortalece os impotentes e leva a sociedade a melhorar ao longo do tempo.

Naquela época, eu estava construindo uma versão inicial do Facebook para minha comunidade e pude ver minhas crenças se desenvolvendo em menor escala. Quando os alunos conseguiam expressar quem eram e o que importava para eles, começaram a organizar mais eventos sociais, iniciaram mais negócios e até desafiaram algumas formas estabelecidas de fazer as coisas no campus. Isso me ensinou que, embora a atenção do mundo se concentre em grandes eventos e instituições, a história maior é que a maioria dos progressos em nossas vidas vêm de pessoas comuns ganhando mais voz.

Desde então, concentrei-me em criar serviços para fazer duas coisas: dar voz às pessoas e uni-las.

Na realidade, Zuckerberg tentou quase tudo para capturar os potenciais 1,3 bilhão de usuários da China, e chegou a oferecer ao presidente Xi Jinping a possibilidade de dar nome à sua filha que ainda não nascera na época. (Xi aparentemente recusou.)

Já o conselho de supervisão do Facebook é uma provisão do acordo de US$ 5 bilhões que a empresa fechou com o FTC (Departamento de Comércio dos EUA), resultado de investigações do governo sobre o escândalo da Cambridge Analytica, e não algo meramente imaginado para melhorar a moderação na plataforma como Zuckerberg tentou pintar.

A ideia de o Facebook – um aplicativo criado inicialmente para avaliar a atratividade física das mulheres em Harvard – poder atuar como um símbolo da paz global soa como algo ridículo. O que torna notável a implicação de Zuckerberg de que a Guerra do Iraque foi uma aberração causada pelo acesso inadequado à fala, ou um vácuo de perspectivas, é que isso representa um passo ousado da hagiografia corporativa para a ficção especulativa.

Essa estratégia ocorre em um momento em que o Facebook nunca correu maior risco de ser regulamentado; portanto, beneficia a empresa, por mais ridícula que ela seja, a se amarrar retoricamente à ideia de liberdade de expressão.

Minando essa linha de ataque estavam os mesmos marcos de progresso social que Zuckerberg repetidamente usou como argumento. O que não existia durante a época do Movimento dos Direitos Civis, nos casos marcantes da Primeira Emenda Schenck vs. Estados Unidos e New York Times vs. Sullivan, ou nos conflitos na “luta pela democracia em todo o mundo”? O Facebook ou qualquer tipo de rede social.

Em tempos de tensão social, nosso impulso é muitas vezes recuar na liberdade de expressão, porque queremos o progresso que advém da liberdade de expressão, mas não queremos a tensão. Vimos isso quando Martin Luther King Jr. escreveu sua famosa carta de uma prisão de Birmingham, onde foi inconstitucionalmente preso por protestar pacificamente. E vimos isso no esforço de encerrar os protestos durante a Guerra do Vietnã. Vimos isso quando os EUA estavam profundamente polarizados sobre seu papel na Primeira Guerra Mundial e a Suprema Corte decidiu na época que o líder socialista Eugene Debs deveria ser preso por fazer um discurso anti-guerra. […] estamos em outra encruzilhada. Nós podemos continuar defendendo a liberdade de expressão, entendendo sua complexidade, mas acreditando que a longa jornada em direção a um progresso maior exige confrontar ideias que nos desafiam. Ou podemos apenas decidir que o custo é muito alto.

Naturalmente, a suposição implícita é que qualquer um desses erros poderia ter sido hipoteticamente evitado por um discurso cada vez mais variado – um clichê do argumento tecnocrata clássico de que o antídoto para o discurso ruim é um discurso bom, da mesma maneira que um “cara do bem com uma arma” supostamente evita assassinatos.

Mas o mais preocupante é que o Facebook se define como o árbitro da liberdade de expressão, inclusive mais justo do que o governo nesses três exemplos a-históricos. “Você está sendo histérico. Você é a favor dos direitos civis ou contra o Facebook?”, pergunta Zuckerberg, oferecendo uma falsa equivalência moral entre progresso social e capitalismo irrestrito.

O modo que Zuckerberg colocou o boicote à Guerra do Vietnã ou o Movimento dos Direitos Civis como questões de discurso, em vez de ser uma resposta a ser recrutado pelas forças armadas de forma obrigatória e à negação de direitos iguais às minorias, respectivamente, é seu problema mais profundo.

Tradução: Eu ouvi o discurso de Mark Zuckerberg sobre “liberdade de expressão”, em que ele faz referência ao meu pai. Eu gostaria de ajudar o Facebook a entender melhor os desafios que Martin Luther King enfrentou devido a campanhas de desinformação lançadas por políticos. Essas campanhas criaram uma atmosfera para o seu assassinato.

O fato de esse discurso que defende o valor da liberdade de expressão (no Facebook) ter sido seguido por uma seção de perguntas e respostas no qual os jornalistas foram impedidos de fazer perguntas, e os estudantes de Georgetown foram selecionados com antecedência, revela a profundidade exata do compromisso de Zuckerberg com esses ideais.

Ele está certo sobre uma coisa: estamos em um momento de tensão social, impulsionado pelo menos em parte pelas redes sociais e, em grande parte, pela enorme disparidade de riqueza entre ricos e pobres no mundo inteiro. Os bilionários que encontraram maneiras cada vez mais eficientes de extrair valor – através do trabalho ou dos dados – são os principais responsáveis ​​pela raiva e impotência que muita gente sente neste momento.

Zuckerberg afirma ter se sentido da mesma forma ao ver o governo Bush mandar milhares de pessoas morrerem do outro lado do mundo, que resultou em uma década de carnificina quase indiscriminada. Hoje, as pessoas estão ainda mais impotentes para impedir Zuckerberg e pessoas como ele de constantemente vigiar e monetizar todas as ações quantificáveis possíveis.

As pessoas tinham voz antes do Facebook. Elas terão depois do Facebook. E sua capacidade de se expressar livremente não cresce ou diminui com a escala do monopólio da empresa sobre a expressão – sem dúvida, o inverso é verdadeiro.

É fácil zombar da apresentação desajeitada de Mark Zuckerberg, suas características estranhamente suaves e maneirismos robóticos – e como uma figura pública com imenso poder e julgamento notavelmente pobre, ele merece todo o escárnio possível – mas, apesar de tudo, sem dúvida alguma ele é uma das pessoas mais poderosas da atualidade. Suas tentativas cada vez mais fortes de manipulação psicológica apenas consolidarão seu legado como um dos maiores marcos da história.

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