Ganhar ou perder: o combate nos jogos precisa ser violento?

Para muitos jogadores, “jogos de fazendinha” são sinônimo de games pacifistas. Porém, a cultura do combate nos games é necessária independente do gênero?
Vencer ou perder; o combate nos jogos precisa ser violento?
Imagem: Lindon Johnson/Bitniks

A ciência sabe há tempos que jogos e comportamento violento dos jovens não são assuntos correlacionados. Da mesma maneira, a forma que um jogo foi feito por uma empresa (por maior ou menor que ela seja) não necessariamente dita como um jogador irá interpretá-lo. Os desenvolvedores “apenas” colocam as peças no tabuleiro, quase sempre em um campo que se resume nas condições de vitória — ou derrota. Mas esse desfecho precisa ser violento?

Blockbusters, telonas e telinhas

Do ponto de vista artístico, podemos explorar o sucesso do combate a partir do próprio público consumidor, que ajuda a explicar o porquê de violência dar dinheiro. Fãs de cinema, por exemplo, têm mais equilíbrio na oferta de gêneros: vários deles, como comédia e animações, por exemplo, podem ter a ausência de conflito e de violência. Os jogadores de videogame, porém, ficam do lado contrário, com um grande desequilíbrio em termos de oferta. Jogos que mais vendem, no geral, costumam envolver batalhas e mortes. Os dois perfis carregam em comum um nicho de público: os aficionados, consumidores que enxergam essas produções como arte.

Com ressalvas, há uma distinção bastante curiosa entre eles. “O cinéfilo é quem vai atrás de coisa que ninguém conhece. Um gamer não é quem vai atrás de jogos independentes, mas quem joga League of Legends e Call of Duty. O aficionado dos games é quem joga o lançamento e procura a experiência mais mainstream possível”, explica Ivan Mussa, pesquisador e professor audiovisual da Universidade Potiguar, em entrevista ao Bitniks. As duas formas de entretenimento têm seus blockbusters, e é normal que os jogos com mais violência vendam mais, tal qual os sucessos “pipocão” de hollywood. Em um comparativo por gêneros, basta ver os jogos mais vendidos nos Estados Unidos no ano passado e os filmes com maior bilheteria por lá neste ano, com a volta do público ao cinema após o pandêmico 2020. Com exceção de Animal Crossing: New Horizons, todos os itens abaixo possuem pelo menos uma instância de violência física com seus protagonistas. A análise considera o público dos EUA, país que contabiliza de maneira mais precisa as vendas como um todo. Mas dada a popularidade, é bem provável que você conheça grande parte dos títulos citados:
Top 10 filmes mais rentáveis em 2021, até agosto Top 10 jogos mais vendidos em 2020
Viúva Negra (ação) Call of Duty: Black Ops – Cold War (ação, FPS)
Velozes e Furiosos 9 (ação) Call of Duty: Modern Warfare (ação, FPS)
Um Lugar Silencioso – Parte II (terror) Animal Crossing: New Horizons (simulador)
Godzilla vs. Kong (ação) Madden NFL 21 (futebol americano)
Cruella (crime) Assassin’s Creed: Valhalla (ação, RPG)
Jungle Cruise (aventura) The Last of Us: Part II (ação)
Invocação do Mal 3 (terror) Ghost of Tsushima (aventura, RPG)
Space Jam: Um Novo Legado (comédia) Mario Kart 8: Deluxe (corrida)
O Poderoso Chefinho 2 (comédia) Super Mario 3D All-Stars (plataforma)
Raya e o Último Dragão (fantasia) Final Fantasy VII: Remake (RPG, luta)
Fontes: Box Office Mojo; Gamespot
O sucesso de jogos com combate são um espelho além da indústria. “Os jogos triple A, os blockbusters dentro da indústria de games, acabam apostando no que já dá certo. Isso é algo que toda indústria faz”, diz Ivan. Não por acaso, no topo da lista gamer há os jogos de tiro em primeira pessoa. O Call of Duty aposta no modo de um jogador, com atenção dada ao roteiro que justifique os personagens e o contexto. Mas o forte mesmo é o jogo online, onde jogadores do mundo todo competem entre si. Logo, cria-se o público fidelizado, que, no caso destes títulos, podem até deixar as histórias de lado — como Black Ops 4 e Battlefield 2042. Ivan dá uma deixa de como a lista pode ser interpretada. “Não é que não existam pessoas interessadas em outros nichos que não sejam o blockbuster. É mais por não termos tanto incentivo do ponto de vista de mercado para atrair essas pessoas”. Ou seja, jogos pacifistas de estúdios menores podem fazer sucesso dentro do nicho. Porém, são uma cabeça de alfinete perto do campo de futebol dos jogos com combate. Estruturalmente, isso rende. Mas há espaço para uma contracultura?

Faz de conta (que é jogo)

Firewatch, jogo de exploração onde você dispõe de poucas ferramentas – e nenhuma delas é uma pistola. Imagem: Divulgação

“Muitas vezes as experiências mais ousadas vão tentar mexer com coisas que a cultura gamer não mexeria antes. Por exemplo, jogos como Gone Home e Firewatch, trazem um pouco mais de exploração de terrenos fora da violência.” A exploração citada por Ivan também é literal, pois ambos os jogos dados como exemplo são do que a indústria chama de walking simulators, ou os “simuladores de caminhada”, em tradução livre. Neles, a narrativa se desenvolve de acordo com a interação com itens do cenário, com registros narrados pelo protagonista e resquícios de outros personagens daquele universo. Pode ser que haja quebra-cabeças, por exemplo, mas pela definição do gênero (onde você está fisicamente sozinho o tempo inteiro), calha de termos a ausência do combate.

O pesquisador explica que foi nos RPGs que começou a surgir essa vontade de criar algo diferente do combate. Os jogos antigos (pré década de 1990) “eram majoritariamente violentos, mas, aos poucos tivemos uma loja para comprar poções, depois vilas pequenas. Então, temos cidades maiores e jogos que propõe coisas além do enfrentamento.” Ivan lembra dos immersive sims, gênero que vendia a ideia de que não havia um caminho único a se seguir, como Deus Ex, de 2000. “Como você tem o jogador que quer experimentar algo novo, ele vai para o jogo que se vende como responsivo às suas ações, onde você pode escolher o jeito que você joga, sendo pacifista.”
“Esses são jogos que tentam tirar um pouco a fantasia de poder do jogador. Não é quem precisa resolver tudo no braço. Você pode às vezes precisar tomar caminhos não violentos, não só por ser pacifista, mas porque você não é o ‘todo poderoso’, que, com uma arma, irá destruir centenas de pessoas.” Ivan Mussa, sobre jogos immersive sims
Para Henrique Sampaio, jornalista que já lecionou o curso de Jogos Digitais da Universidade FMU, quem aposta no jogo pacifista às vezes perde um pouco da experiência completa criada para o game em questão. A diversão é algo que pesa. Em conversa conosco, ele conta que o jogador pode deixar de ver um “milhão de armas”, quase como uma punição. “Por mais que eu questione armas e o uso da violência nos games, em alguns deles acho uma bobagem seguir nessa linha, uma vez que as outras coisas parecem ser muito mais legais”, conta. É como jogar GTA e cumprir à risca todas as leis de trânsito e comprar um carro toda vez que precisar de transporte. Até dá, mas é limitar sua própria experiência. Também em comparação ao já citado Deus Ex e aos RPGs, Sampaio prossegue discutindo a dificuldade do ponto de vista do estúdio, caso alguém queira aprofundar o poder de escolha dado ao jogador. “O game designer perde o controle da obra dele. Então, os jogos têm o problema do escopo também, pois você vai acabar caindo em alguns problemas se der muita liberdade [a quem joga]. O próprio Hitman pode ser frustrante, sem agir necessariamente da maneira que você está esperando e pode ser difícil – por você errar e perder o controle”.

A raiz militar

Ivan explica que há dois motivos principais que justificam o panorama atual, que é fruto da origem dos games. Um deles é a limitação gráfica, pois “era mais simples simular uma nave espacial atirando do que uma narrativa mais complexa, com personagens e emoções”. Ao contar uma história, isso também impacta no quão bem o jogo vai te convencer que aquele mundo existe – pela facilidade de o jogador identificar personagens e até a limitação pelo tamanho desses arquivos nas máquinas que eles rodavam.

O especialista acrescenta que há, ainda, um motivo cultural, por conta de os jogos eletrônicos nascerem dentro da indústria bélica americana. “O Tennis for Two [de 1958], um experimento com tecnologia militar que virou videogame, explica essa cultura que rodeia os jogos e justifica os primeiros games simularem combate e a guerra, em vários gêneros”.
Tennis for Two, feito há mais de 60 anos. Imagem: Wikimedia
Em contrapartida, Henrique diz que os jogos nunca foram “só militares”. “Quando pensamos especialmente no ambiente de PC, que não era dominado por uma única empresa, ele tem uma história própria em paralelo aos consoles. Ele nasce, na verdade, com os jogos narrativos”. Então embora existissem os tais jogos de estratégia com viés militar, já nos anos 1970 existia o Colossal Cave Adventure, game de narrativa baseado em diálogos introduzidos pelo jogador. Um jogo de palavras, literalmente. “O curioso é pensarmos que muitos desses jogos eram mais sofisticados que os que a gente têm hoje, como walking simulators“, como Henrique afirma, logo antes de lembrar do já citado Firewatch. Sobre a ausência de combate nestes jogos (dos dois gêneros), o entrevistado explica parte da interpretação mais comum. “Algumas pessoas se sentiam ofendidas quando você tirava o elemento principal, a base do gênero: mirar e atirar. Com os jogos de sucesso chegando ao público, isso se torna um gênero por conta própria, ainda que um nicho. Só então elas viram o potencial narrativo”.

Tabuleiros e esportes

Entre jogos militares e jogos de tabuleiro, também não precisamos ir muito longe. Para Henrique, o xadrez virou a base para jogos de estratégia atuais e também uma referência para os jogos militares, por exercícios de coordenação das peças (em pequena e grande escala). “Ele tem esse combate e esse conflito militar, embora seja um jogo extremamente abstrato, mas há sempre essa camada acima que dá a roupagem para a abstração”.

O jornalista faz um paralelo entre jogos de tabuleiro e jogos digitais sendo ambos abstratos. Afinal, linhas de códigos e o comando de um controle são o que simulam um personagem caminhando na tela, mas ele não está lá de verdade, claro. Ele explica que o conflito pode ser psicológico, social ou político. “Temos todas as questões dos relacionamentos humanos e tudo o que é baseado em conflitos. Nos videogames eles se manifestam de forma física, pois historicamente eles sempre foram sobre simulações físicas (espaço, território, conquista)”. Na rápida análise da interpretação dos jogadores, temos um conceito que margeia a filosofia. Pegando como exemplo o badalado League of Legends (que há anos chegou a apostar no xadrez, com o modo modo Teamfight Tactics) temos a narrativa da “fantasia de poder” dentro do ambiente competitivo. Você adquire poderes e sobe seus níveis, melhorando o ataque, enquanto precisa dominar o uso das Habilidades. Inclusive em jogos que não são competitivos, como God of War, você é um personagem poderoso.
League of Legends para celular, o MOBA mobile. Imagem: Divulgação.
Na visão de Ivan, essa técnica de se fazer jogos “apela para o público tradicional dos videogames que está acostumado a esse tipo de narrativa” e não necessariamente aos walking simulators. Nisso, um gamer-padrão que pega esses jogos com ritmo lento provavelmente vai ficar esperando ganhar os poderes — sem aproveitar a história que já se desenrola ali. Ainda sobre eSports, nicho da indústria com projeção de arrecadar mais de 1 bilhão de dólares em 2021, pode-se fazer um paralelo com os Jogos Olímpicos. Ivan explica que há certas modalidades e esportes que não se encaixam da fórmula ortodoxa da disputa de pontos (como tiro com arco e até futebol), citando nado sincronizado e saltos ornamentais. que abrigam “questões subjetivas pelo julgamento da beleza”. Pela subjetividade do assunto, até para os olhares “menos treinados” dos gamers ainda há espaço para o jogador se desapontar. Henrique conclui que não é problema só de ontem, nem de hoje e nem de amanhã. “Existe essa expectativa: se não tem combate, tem que ter uma coisa muito grande para compensar. É um exercício constante de criatividade das gerações antigas e das atuais também”. Ironicamente, este exercício de contrapesos vira um conflito por conta própria.

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