_História

Como historiadores agora conseguem ver textos invisíveis em manuscritos antigos

Tecnologia de imagem multiespectral consegue detectar luz além dos comprimentos de onda visíveis, revelando textos invisíveis em manuscritos antigos.

Uma imagem multiespectral de um documento de meados do século V representando 1 Coríntios. O texto apagado aparece em vermelho. Imagem: Sinai Palimpsests Project

Documentos históricos considerados perdidos devido ao desgaste causado pelo tempo – como pergaminhos milenares ou manuscritos medievais cuja tinta já desapareceu há muito tempo – estão sendo ressuscitados graças a uma tecnologia conhecida como imagem multiespectral. A sofisticada tecnologia requer treinamento especializado e um equipamento caro, mas pesquisadores têm recentemente tentado tornar o seu uso mais difundido.

Em março, cientistas do Rochester Institute of Technology (RIT) levaram um dos sistemas de imagem multiespectral da MegaVision até Dubrovnik para demonstrar a conservacionistas, pesquisadores e oficiais do governo como a tecnologia pode ser aplicada para revelar textos antigos e preservar manuscritos medievais que estão desaparecendo.

Dubrovnik, cidade localizada na Croácia e cujas muralhas do século 13 foram utilizadas nas gravações de Game of Thrones, tem cerca de 30 mil manuscritos medievais, de acordo com David Messinger, que liderou o projeto para o Center for Imaging Science do RIT.

“Nós temos um campus aqui”, Messinger afirmou ao Gizmodo. “Então esse foi um tipo de workshop presencial para mostrar de perto o que a tecnologia é capaz de fazer”.

Imagem visível à luz de um documento do século V. Foto: Sinai Palimpsests Project

O que a imagem multiespectral é capaz de fazer, em alguns casos, tem sido impressionante.

Pra começar, sensores de câmeras digitais são, fundamentalmente, sensores multiespectrais, o que significa que eles conseguem detectar luz além dos comprimentos de onda visíveis. Sistemas multiespectrais, como o EV da MegaVision, aproveitam essa propriedade e utiliza sensores de 50 megapixels de alta resolução e câmeras controladas por computador com sistemas de iluminação LED para tirar fotos em espectros ultravioleta, infravermelho e visíveis, criando dezenas de imagens de um fragmento em diferentes comprimentos de onda reflexivos.

“É esse tipo de imagem fluorescente que é capaz de revelar a presença de tinta mesmo que ela tenha desaparecido porque essas áreas reprimem a fluorescência”, disse Messinger. Ela pode literalmente tornar visível novamente um texto antes invisível e, assim, mudar nossa visão da história.

Um dos projetos mais surpreendentes envolvendo imagens multiespectrais é o trabalho contínuo da Israel Antiquity Authority com os Manuscritos do Mar Morto. Os manuscritos, de mais de 2 mil anos de idade, são uma coleção de mais de 900 textos diferentes em dezenas de milhares de fragmentos. Eles foram originalmente descobertos em uma série de 12 cavernas no deserto próximo a Qumran em meados dos anos 1940 e 1950. Os textos incluem as primeiras cópias de livros do Torá e do Velho Testamento.

Mas decifrar todo o pergaminho era quase impossível, principalmente porque muitos dos escritos em grego, aramaico e paleo-hebraico haviam perdido sua tinta visível ao longos dos séculos ou haviam escurecido devido à exposição a elementos. A tecnologia de imagem multiespectral mudou isso tudo, permitindo aos pesquisadores visualizar os textos e ler palavras não vistas há muitos milênios. No ano passado, o estudo de um desses fragmentos utilizando a imagem multiespectral revelou que ele pertencia a um texto nunca antes visto.

Imagem visível à luz (esquerda) de um documento árabe do século V. Imagem ultravioleta (direita) revelou a ilustração de uma erva. Imagem: Sinai Palimpsests Project

Sistemas de câmera similares têm sido utilizados para revelar palavras que Thomas Jefferson apagou e alterou em um rascunho original da Declaração de Independência dos EUA. Outros pesquisadores já usaram a tecnologia para revelar obras forjadas, como uma cópia falsa de uma obra conhecida como John’s Gospel. Pesquisadores descobriram até mesmo um pergaminho de um manuscrito dos princípios de Arquimedes que haviam sido apagados e, por cima deles, havia sido escrito um texto de um livro de orações cristão.

Algumas das descobertas mais controversas ainda estão para serem feitas usando essa tecnologia.

Em um monastério obscuro na península do Sinai, uma equipe está utilizando agora um sistema de imagem multiespectral da MegaVision para examinar e catalogar pergaminhos datados do século 4. Muitos dos textos apagados nunca foram vistos ou estudados por pesquisadores antes. E o trabalho tem sido acompanhado de perto, o que é de se esperar, considerando que foi no St. Catherine’s Monastery que o polêmico texto “Secret Mark” (ou Evangelho Secreto de Marcos), supostamente redigido do Evangelho canônico de Marcos, foi encontrado.

Então, a equipe de Messinger do RIT descobriu alguma coisa tão controversa como essa em algum dos manuscritos croatas?

“Nós estávamos analisando apenas fragmentos encadernados (pedaços de manuscritos reciclados para serem utilizados em outro livro)”, disse Messinger, “e a imagem que encontramos e processamos estava em latim, então não sabemos o que dizia”.

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Time-lapse de um processo de imagem multiespectral revelando um texto oculto em latim. GIF: Rochester Institute of Technology

O objetivo de Messinger agora é levar a tecnologia a outros pesquisadores para traduzir os documentos, além de fazer com que o governo da Croácia ajude a financiar um sistema de imagem multiespectral permanente em Dubrovnik. Mas Messinger reconhece que esses sistemas ainda são caros, custando mais de US$ 75 mil.

A expectativa, é claro, é que ao difundir a imagem multiespectral, o seu uso se torne mais amplo. Além de tornar textos “perdidos” visíveis novamente, a tecnologia pode ajudar a determinar a autenticidade de alguns textos (ao identificar o tipo de tinta utilizada, por exemplo), além de conduzir análises temporais em materiais raros de uma forma não-destrutiva. (A datação por carbono, amplamente utilizada, envolve a destruição de algumas partes do material original durante o processo.) E os resultados da imagem multiespectral são armazenados em uma base de dados digital, preservando esses documentos antigos inestimáveis para estudos futuros.

Tornar a tecnologia multiespectral algo comum vai exigir um equipamento com custos mais baixos para os pesquisadores poderem decifrar textos antigos espalhados pelo mundo. Atualmente, a MegaVision tem um sistema que cabe em duas malas grandes e leva quase metade de um dia para um técnico com experiência configurá-lo. Messinger acredita que modelos com menos recursos podem ser mais portáteis e disponibilizados por cerca de US$ 5 mil. Com essas ferramentas ao dispor dos pesquisadores, quem sabe quais manuscritos perdidos poderão ser encontrados no futuro?

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