Homem vê formas parecidas com espaguete no lugar de algarismos entre 2 e 9

A incapacidade desconcertante de um paciente para enxergar determinados dígitos numéricos pode fornecer informações sobre como o cérebro funciona.
À esquerda, o número mostrado. À direita, o desenho feito pelo paciente conhecido como RFS. Desde 2011, RFS só conseguiu ver linhas onduladas ao observar os dígitos de 2 a 9. Foto: Universidade Johns Hopkins

A incapacidade desconcertante de um paciente para enxergar determinados dígitos numéricos pode fornecer informações sobre como o cérebro funciona. De acordo com os cientistas que o estudaram, a natureza de sua condição — o que o faz ver formas parecidas com espaguetes no lugar dos números 2 a 9 — sugere que nosso cérebro pode reconhecer conceitos complexos, como números, antes de estarmos conscientes em relação a eles.

O homem, identificado apenas como RFS, começou a ter de dores de cabeça, perda de memória e outros sintomas neurológicos no final de 2010. No início de 2011, ele foi diagnosticado com um raro distúrbio cerebral degenerativo chamado síndrome corticobasal. A síndrome tende a afetar pessoas mais velhas (o homem tinha mais de 60 anos) e causa principalmente sintomas como espasmos musculares, incapacidade de mover os membros e outros problemas sensoriais, que pioram com o tempo.

Além desses sintomas, RFS também começou a relatar que ele não conseguia ver os números de 2 a 9. Quando ele olhava para esses números, tudo o que conseguia ver eram linhas pretas rabiscadas. Se os dígitos foram impressos em uma cor, ela se torna o plano de fundo dos rabiscos pretos. E toda vez que ele desviava o olhar e depois voltava para o número, as linhas mudavam de forma, tornando impossível identificá-lo por inferência.

Na época dessa descoberta, o homem recebia atendimento de um neuropsicólogo da Johns Hopkins, em Maryland. Depois de relatar seu problema com os números, o psicólogo consultou uma equipe de colegas pesquisadores da Johns Hopkins que passaram a estudar RFS nos oito anos seguintes. Os frutos dessa pesquisa foram publicados nesta segunda-feira (22) na Proceedings of the National Academies of Science.

“A questão é que ele é muito bom com números. Ele é engenheiro e usa números em seu trabalho o tempo todo. E ele ainda consegue fazer contas e ainda sabe o que são números e entende o que eles são”, conta o principal autor do estudo, Michael McCloskey, que é cientista cognitivo da Johns Hopkins e estuda a percepção humana da leitura e da ortografia. “É apenas quando ele olha para os dígitos, como para 8 ou 3. Tudo parece embaralhado — é total espaguete, como ele diz.”

McCloskey disse que essa deficiência fica ainda mais estranha ao levar em consideração que muitos outros símbolos em nossa vida cotidiana se assemelham aos dígitos do 2 a 9, como 8 e a letra maiúscula “B”. No entanto, o RFS não tem problemas para reconhecer essas coisas (ele relatou alguma distorção ao ver as letras M, N, P, R, S, Z, mas não a ponto de não identificá-las). E também não são todos os tipos de números, pois ele ainda pode ler números romanos corretamente, assim como os números 0 e 1.

McCloskey e o trabalho de sua equipe com o RFS indicam que o cérebro pode processar informações além do que entendemos como consciência. Entre outros experimentos, eles mediram sua atividade cerebral através de um eletroencefalograma enquanto ele olhava para os dígitos distorcidos. Os pesquisadores então incorporaram rostos ou palavras que haviam sido mostradas para ele anteriormente. RFS relatou que ele não conseguia ver nada além dos rabiscos, como de costume, mas as imagens do exame revelaram outra coisa.

Existem certas partes do cérebro que acendem quando vemos rostos. E quando os pesquisadores analisaram a atividade cerebral de RFS, eles puderam ver essas partes acenderem. Eles também viram outras partes distintas do cérebro ativadas quando ele olhou para os números embutidos em palavras.

“Ele não tem ideia de que tem qualquer tipo de palavra ou qualquer tipo de rosto [no que mostramos]. No entanto, parece que seu cérebro não está apenas ciente de que há algo lá como também está fazendo muitas análises complicadas”, diz David Rothlein, que é co-autor do estudo e trabalhou como estudante no laboratório de McCloskey durante o estudo. Rothlein agora é cientista cognitivo no Laboratório de Atenção e Aprendizagem de Boston. “Esse é o tipo de processamento que, intuitivamente, achamos que você precisa conhecer. Mas isso nos mostra que um processamento muito complexo e sofisticado — o que chamamos de cognição de alto nível — está claramente acontecendo sem consciência aqui.”

Em outras palavras, há pelo menos outra etapa (talvez até mais etapas) que ainda precisa ocorrer entre nossos cérebros para identificar um exemplo de um conceito complexo como números e comunicar à nossa superfície consciente.

É possível que essas informações complexas sejam enviadas para um nível mais alto do cérebro antes que cheguem à nossa consciência, diz Rothlein, mas também é possível que as informações de ordem superior precisem ser transferidas de volta aos níveis mais baixos do cérebro antes de serem totalmente compreendidas, como alguns cientistas teorizaram.

Independentemente de como isso acontece, algo deu errado no processo de tradução do cérebro de RFS. Existem outras pessoas com disfunções semelhantes de cegueira de informação, principalmente as que se tornam incapazes de reconhecer rostos. Mas, por mais que tentem, McCloskey e sua equipe ainda não encontraram mais ninguém, no passado ou no presente, com um problema exatamente igual ao de RFS, mesmo entre outras pessoas com sua condição.

A pesquisa foi pelo menos capaz de fornecer à RFS algum conforto. A equipe de McCloskey desenvolveu um sistema numérico separado para o paciente memorizar. Ele conseguiu usá-lo com sucesso em sua rotina diária e até no trabalho antes de se aposentar em 2014.

Infelizmente, a condição da RFS deteriorou-se desde que o estudo terminou, e os pesquisadores dizem que ele está agora com a saúde muito ruim — a expectativa média de vida de alguém com síndrome corticobasal é de oito a 10 anos após o diagnóstico. Por enquanto, conta McCloskey, suas funções cognitivas ainda estão praticamente intactas.

Por mais trágica que seja sua condição, a disposição de RFS de ser estudado durante todos esses anos pode acabar nos fornecendo informações cruciais sobre como nosso cérebro funciona, da mesma forma que os casos de pacientes como Phineas Gage e HM.

“Estudos de caso únicos como esse são uma maneira muito notável de iluminar o funcionamento interno da mente de uma maneira que muitas vezes não podemos fazer com outros métodos”, comenta Rothlein.

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