Humanos podem respirar líquidos?

Águas profundas e o corpo humano desprotegido não se misturam muito bem. Mas e se houvesse uma maneira de contornar todas as limitações químicas do corpo, um meio de mergulhar profundamente sem problemas? Na verdade, é possível. E estamos perto de descobrir exatamente como fazer isso sem nos matar no processo. Os perigos das profundezas […]

Águas profundas e o corpo humano desprotegido não se misturam muito bem. Mas e se houvesse uma maneira de contornar todas as limitações químicas do corpo, um meio de mergulhar profundamente sem problemas? Na verdade, é possível. E estamos perto de descobrir exatamente como fazer isso sem nos matar no processo.

Os perigos das profundezas

O limite absoluto recomendado para mergulhadores recreativos é de 40 metros, e mergulhadores técnicos usando Trimix chegam a 100 metros. Mesmo assim eles têm apenas cinco minutos nas profundezas antes de começar a descompressão monitorada para evitar pegar a doença dos mergulhadores (uma forma não assustadora de falar que o nitrogênio dissolve no seu tecido sob pressão massiva da água, é ejetado na sua corrente sanguínea e você morre de embolia cerebral). Curiosamente, assim que seu corpo atinge o limite de saturação de nitrogênio, não importa se você fica uma hora ou um mês no fundo do mar, o seu tempo de descompressão é maximizado.

Esta técnica, conhecida como mergulho de saturação, é como mergulhadores na K-141 Kursk conseguem ficar horas a 100 metros abaixo do nível do mar (com pressão de 10 atmosferas), e como o pessoal de O  Segredo do Abismo conseguia fazer o seu trabalho.

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Ar Líquido

Talvez a cena mais memorável do clássico de ficção científica de 1989 O Segredo do Abismo é quando o personagem de Ed Harris precisa vestir uma roupa de mergulho cheia de um líquido para descer a Fossa das Marianas. Ele tenta respirar o que parece um caldo quente para evitar a pressão de estourar seus pulmões como se fossem balões. Acontece que esta cena está mais perto de se tornar um fato científico do que uma ficção científica.

A substância chama-se perfluorocarbono (PFC), é um hidrocarboneto fluorado líquido sintético  – limpo, sem odor, quimicamente e biologicamente inerte, com baixa tensão de superfície e alta capacidade de carga de O2/CO2. O PFC pode conter até três vezes mais oxigênio e até quatro vezes mais dióxido de carbono do que o sangue humano. Ele também atua de forma bastante eficiente na troca de calor. Isso faz o PFC um líquido ideal para uso como um meio de respiração líquida para aplicações médicas.

Pesquisas para respiração líquida (quando você inala um líquido rico em oxigênio em vez de ar) e PFC começou quase imediatamente após o fim da Primeira Guerra Mundial, enquanto médicos passaram a estudar tratamentos para inalação de gás venenosos e começaram a aplicar soluções salinas em pulmões de cobaias (neste caso, em cães). O PFC em sim foi desenvolvido no começo dos anos 1940 como parte do Projeto Manhattan.

No entanto, apenas na década de 1960 o campo começou a se desenvolver. Foi durante a Guerra Fria e o exército dos EUA precisava de uma forma de aumentar a profundidade dos seus submarinos espalhados no mundo no caso de uma falha catastrófica de sistemas no mundo. Em 1962, o Doutor Johannes A. Kylstra e sua equipe da Universidade Duke mostrou que um camundongo poderia ser condicionado a respirar uma solução salina pressurizada a 160 atmosferas (ou 1,6 km abaixo do nível do mar), mas eles morriam alguns minutos depois de acidose respiratória (envenenamento por dióxido de carbono). O sistema estava longe de ser perfeito, mas ilustrava que uma técnica dessas era possível, mas não ainda plausível.

Experimentos subsequentes feitos por Leland C. Clark Jr. e Frank Gollan mostraram que camundongos poderiam respirar PFC sob condições atmosféricas normais, e ratos poderiam ficar submersos por até 20 horas, e gatos por semanas. O estudo também aplicou óleo de silicone como uma alternativa ao PFC, mas no fim descobriu-se que ele é muito tóxico em mamíferos (mas apenas depois deles voltarem a respirar o ar normal). O PFC é atualmente o único meio de respiração líquida aceitável que conhecemos.

Em 1989, testes humanos começaram na Filadélfia. Diversas crianças próximas da morte sofrendo de doenças respiratórias foram tratadas com respiração líquida total – preenchendo totalmente o pulmão delas com fluido PFC e enchendo-os para a sua capacidade residual funcional – e tiveram algumas melhorias fisiológicas marcantes, incluindo complacência pulmonar e trocas gasosas. E este poderia ser o truque.

Durante o desenvolvimento normal, os pulmões do feto são preenchidos com fluido amniótico e, assim que nascem, um composto químico conhecido como tensioativo previne os pulmões de entrarem em colapso. Bebês prematuros, que ainda não desenvolveram tensioativo o suficiente para prevenir que seus pulmões dobrem completamente, são repentinamente expostos ao gás atmosférico e sofrem com dificuldades respiratórias.

Os testes da Filadélfia tentaram ver se a respiração líquida poderia recriar com precisão as condições dentro do útero, agir como um tensioativo artificial e reduzir os problemas dos recém-nascidos. Por mais que os esforços não foram o suficiente para salvar vidas, as melhorias de desempenho do pulmão se manteve mesmo após a remoção do líquido, e provou que a respiração líquida poderia ser uma terapia eficiente para bebês prematuros.

O último obstáculo

Apesar do relativo sucesso dos testes na Filadélfia, a respiração líquida total continua sendo um procedimento experimental. Para controlar seguramente e precisamente o volume de PFC dentro e fora do pulmão do paciente, sistemas de respiração líquida precisam de um oxigenador de membrana, um aquecedor e diversas bombas para entregar o PFC – essencialmente, um respirador líquido dedicado. Infelizmente, tal dispositivo ainda precisa superar o estágio de protótipo.

A respiração líquida parcial, por outro lado, só preenche cerca de 40% do pulmão com PFC, e a capacidade restante pode ser preenchida com ar de. Isso significa que ela pode ser usada com equipamentos existentes e pode ajudar no tratamento de lesões pulmonares, assim como em prematuros. O PFC ajuda a desalojar os restos de alvéolos (digamos, por inalação de fumaça), abre vias obstruídas e transporta oxigênio mais profundamente no pulmão, impedindo-o de entrar em colapso e minimizando danos secundários.

Mas ainda não superamos os problemas que mataram os camundongos de Kylstra. A alta viscosidade do PFC previne que ele circule pelo pulmão eficientemente o bastante para exorcizar CO2 e prevenir acidose respiratória. Você precisa circular o fluido a taxas de 5 litros por minuto para igualar um metabolismo padrão em descanso, 10 litros para algum tipo de atividade, e os pulmões humanos não são fortes o bastante para isso.

Em outras palavras, O Segredo do Abismo seria mais preciso de Ed Harris carregasse um respirador com ele. Mas mesmo assim ele não duraria tanto tempo. [Wikipedia –Science Daily – How Stuff Works – National Institute of Health – Kansas University Medical Center – British Journal of Anesthesiologists]

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