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Visualizando a infraestrutura oculta que leva comida, energia e internet através do mundo

Nós dependemos todo dia de complexos sistemas técnicos, econômicos e políticos, mas não damos tanta importância à infraestrutura que abriga tudo isso.

Nossa sociedade depende de complexos sistemas técnicos, econômicos e políticos para funcionar, mas vivemos nosso dia a dia sem darmos importância à infraestrutura tangível e intangível — de canos a políticas — que abriga estes sistemas. Claro, isso acontece até que eventos inesperados – os chamados cisnes negros – iluminem essas peças ocultas, e nos surpreendam ou nos abalem com sua presença e função.

>>> Este mapa mostra como a internet viaja pelo mundo através dos oceanos

Por exemplo, pense no recall de comida contaminada. A maioria de nós se alimenta sem perceber os caminhos, muitas vezes mascarados de propósito, que a comida faz para chegar até nós. Quando pessoas ficam doentes, é preciso traçar as cadeias de abastecimento relevantes e assim vemos, possivelmente pela primeira vez, o megadistribuidor. É ele que, usando moedores, misturadores e um estranho mecanismo de separação ou extrusão, mói carcaças vindas dos confins da rede de alimentos e as leva até nosso supermercado. Às vezes, descobrimos que o que compramos não é nem de longe o que esperávamos. Enquanto descobrimos as falhas no sistema, nós podemos ter um lampejo das fazendas, caminhões, armazéns e máquinas que estão entre a fazenda e nossa geladeira.

Mapa dos cabos submarinos de internet, via Telegeography

Quando vazam informações de governos ou corporações, as explosões de transparência são ainda mais surpreendentes. As contínuas revelações de Edward Snowden, por exemplo, lançaram luz sobre programas que coletam quantidades massivas de dados de comunicações. Essas revelações também apontaram as infraestruturas terrestres, aéreas e submarinas espionadas por tais programas.

Engenheiros de rede, analistas de negócios e executivos de telecomunicações sabem que essas estruturas estão lá, mas até recentemente o público geral não fazia muita ideia de como recebiam seus filmes do Netflix, ou onde ficam armazenados os registros de suas ligações telefônicas, ou até mesmo como seus e-mails viajam pelo mundo. Muitos continuam sem saber.

A disputa de poder na região ucraniana da Crimeia também tem um aspecto de infraestrutura: os dutos de gás natural. Na mídia, tornou-se cada vez mais comum ver mapas de gasodutos ucranianos, através dos quais o gás natural vai da Rússia para a Europa Ocidental. Afinal, esses tubos são mais do que energia: eles representam poder.

A geopolítica dos dutos na Ucrânia e Rússia. Infográfico por YLE.

Além disso, nós temos eventos inesperados, como o desaparecimento do voo 370 da Malaysia Airlines, desaparecido por duas semanas e, então, declarado perdido. Do nada, os olhos do mundo se fixaram no destino do que, normalmente, seria uma aeronave qualquer. Como uma agulha no palheiro, parte da busca pelo MH370 e seus 239 passageiros e tripulantes logo se focou nos vestígios de dados, esclarecendo como tais aeronaves são rastreadas.

O público geralmente sabe que os registros de voo ficam nas caixas pretas. Mas sabemos menos sobre outros sistemas, como os transponders das aeronaves – que emitem sinais para identificá-las – e o sistema ACARS, que repassa dados das condições do avião para as empresas aéreas. Porém, agora sabemos que eles podem ser ouvidos por alguns satélites, como o Inmarsat. Outros sistemas dialogam com a fabricante do avião e, se necessário, com os responsáveis pela fabricação do motor.

Ou seja, uma aeronave como o Boeing 777 está falando com, e sendo ouvida por, muito mais entidades do que apenas os controladores de voo. Uma infraestrutura inteira está a postos para ver e ouvir aviões como o MH370.

Mapa em tempo real de remessas comerciais no Mediterrâneo, do AIS Marine Traffic

A busca pelo MH370 também trouxe a atenção para outras infraestruturas, como as pistas de pouso em aeroportos no sul da Ásia viáveis para grandes aeronaves, rotas de transporte para cargas, áreas cobertas por satélite e muito mais. Ela também revelou quais países possuem relações mais fortes ou mais fracas, ao indicar quem estava dividindo recursos com quem na busca pelo avião perdido.

É claro que tais eventos também revelam pontos cegos: lugares do mundo onde muito pouco é observado em detalhe, até onde nós sabemos. Por exemplo, os pontos de transferência entre os sistemas de rastreamento, ou através de pequenas lacunas no radar. Em outros casos, satélites que nós pensamos observar cada um de nossos movimentos na verdade não enxergam nada.

Uma ilustração dos pontos cobertos pelo EUTELSAT

No entanto, nós não deveríamos esperar pelos “cisnes negros” para nos revelar toda essa infraestrutura escondida ou oculta. Não estou sugerindo que cada indivíduo leve consigo um diagrama esquemático com as redes que conectam o mundo, mas nós dependemos cada vez mais de conhecer como funcionam sistemas e infraestruturas, senão tudo desaparece em uma caixa preta.

Conforme eu escrevo isso, grandes e pequenas empresas estão circulando o mundo em sistemas ocultos, fazendo logística parecer magia, fazendo com que nossas interações se tornem fáceis e inteligentes, ou fazendo a tecnologia que usamos todos os dias se curvar às nossas necessidades. Elas estão fazendo isso para reduzir custos, aumentar o conforto e gerar conveniência – inclusive para nós.


Minha amiga Georgina Voss vem perguntando em sua pesquisa sobre as cadeias globais de suprimentos: “o que nós devemos pedir, e o que realmente vamos conseguir?” Isto é, quais ferramentas, relacionamentos e barganhas se escondem atrás das coisas que exigimos para manter nossas vidas funcionando sem problemas? O que é feito por nós ou contra nós? Quais são os custos e onde estão os poréns e as pegadinhas?

Julian Oliver, Gordan Savičić e Danja Vasiliev dizem em seu Critical Engineering Manifesto: “quanto maior a dependência de uma tecnologia, maior a necessidade de estudar e expor seu funcionamento interno, independentemente do direito de propriedade ou da disposição legal”.

Até agora, a maior parte do que descobrimos sobre infraestruturas ocultas com a busca pelo voo MH370 não é perverso. Não há um sistema secreto de rastreamento aéreo que se aproveita da nossa ignorância. Na verdade, eles estão lá para oferecer proteção e segurança. Conforme nossos sistemas e infraestruturas conversam, deixando rastros no caminho, eles também se tornam mais “inteligentes”, o que em muitos casos é útil – afinal, às vezes nossas próprias observações falham.

É aí que ficamos confortáveis demais, e esquecemos de fazer perguntas. E o que acontece? Pode ser um embuste na rede de alimentos, como despachar comida através de vastos oceanos só para economizar centavos; ou uma fraude financeira, como transportar biodiesel através de fronteiras para ganhar incentivos de combustíveis renováveis, ou enviar para o Google “sem querer” os registros médicos de um país inteiro.

Esquecer de toda a infraestrutura é deixar que coisas como essas aconteçam. Os “cisnes negros” são o que são porque só acontecem uma vez: um vazamento de quando em nunca, um erro, um acidente ou uma catástrofe ocorrem tarde demais para nos alertar de como as coisas realmente funcionam.


Esse post foi publicado originalmente no Medium, e republicado aqui com autorização do autor. Texto inspirado por palestras de Georgina Voss, Dan Williams e Paul Graham Raven.

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