[Kotaku] Eu continuei jogando – o preço do meu vício em games

  “Eu odiei o nível 40”, ela disse com um suspiro. Era a primeira vez que nos falávamos em oito anos e ela nunca se esqueceu da noite em que rejeitei a investida dela para poder avançar mais um nível no EverQuest.

“Eu odiei o nível 40”, ela disse com um suspiro. Era a primeira vez que nos falávamos em oito anos e ela nunca se esqueceu da noite em que rejeitei a investida dela para poder avançar mais um nível no EverQuest.

Ao longo da minha contribuição ao Kotaku, por diversas vezes eu fiz referência aos meus dias de EverQuest, mas nunca elaborei muito sobre o que havia acontecido então. Certos eventos recentes na minha vida trouxeram à tona aquele período e decidi compartilhar a minha experiência com os nossos leitores.

Em novembro de 2000, a minha vida estava indo muito bem. Eu tinha uma namorada adorável, um veículo funcional e um emprego que pagava mais do que o suficiente para eu sobreviver ao mesmo tempo em que alimentava o meu vício cada vez maior em videogame. Dentro de quatro meses, tudo isso se esvairia.

 

Boas intenções

Naquela época eu compartilhava um apartamento com um amigo meu chamado Dustin. O Dustin era um cara bacana, mas passava todo o seu tempo livre sentado em frente ao seu computador, jogando um troço chamado EverQuest. Eu já tinha visto o jogo antes, tendo participado da versão beta do jogo multiplayer online incrivelmente popular da Sony Online Entertainment, mas quando o jogo foi ao ar eu acabei perdendo o interesse. Eu simplesmente não conseguia me ver pagando uma taxa mensal só pra jogar um jogo de computador. Ah, como as coisas mudaram…

Não tendo muitas outras coisas pra fazer na época, eu ficava sentado olhando o Dustin jogar. Ele me explicava o que seu personagem Monge fazia no jogo. Eu era um espectador enquanto ele avançava pelo jogo, aprendendo a driblar a morte, ganhar novas armas e enfrentar novos desafios conforme ele ficava mais e mais perto do limite de experiência do jogo.

Ou seja, quando eu não estava com a minha namorada, Emily, eu ficava vendo o Dustin jogar. Ou eu peruava por diversos MOOs ou MUSHs de texto online, jogando RPG com pessoas por todo o mundo. Eu já era ligado em ficção científica, fantasia e gibis desde moleque, então saltar para um mundo imaginário foi fácil para mim. Talvez fácil até demais.

Mais para o final de 2000, Emily e eu nos separamos. O motivo por trás disso é idiota demais para falarmos a respeito….digamos que éramos dois jovens e meio tolos.

Eu fiquei deprimido. E o Dustin tinha justo a coisa certa para me alegrar.

A expansão Scars of Velious para o EverQuest saiu em dezembro de 2000. Meu colega de apartamento, possivelmente cansado de enxugar o chão por causa do meu amor perdido, comprou uma cópia do jogo pra mim como presente de Natal. Eu o instalei, criei um bardo meio-elfo e logo nosso apartamento tinha dois caras na sala de estar durante todas as horas do dia, os rostos banhados com o brilho dos nossos monitores.

Dentro de uma semana, o jogo que não havia me afetado em nada quase dois anos passou a ser uma parte importante da minha vida. Em breve, ele passaria a ser a minha vida.

Se eu não estava dormindo ou no trabalho, eu estava jogando EverQuest. Dormir já estava se tornando uma raridade. Eu ia pro trabalho, mas continuava ouvindo os sons dos orcs de EverQuest na minha cabeça. Eu só precisava era fechar os meus olhos e zarpava pela região de Grande Faydark, matando pixies e entregando itens de quests.

Em janeiro de 2001, um homem com um caminhão guincho veio até o meu trabalho e levou o meu carro. Eu tinha me esquecido de pagar algumas prestações e nem me toquei disso, daí a Nissan decidiu que queriam o meu Sentra de volta. A primeira coisa que me veio à mente enquanto eu via o caminhão guincho se afastar era quantas horas andar para e do meu trabalho diariamente me tiraria do meu tempo de EverQuest.

Eu trabalhava para uma empresa chamada FranchiseOpportunities.com, mantendo e criando websites, mas cada vez mais eu passava o meu tempo lá ou me comunicando com meus amigos do EverQuest, ou navegando pela Internet em busca de dicas sobre os melhores equipamentos e técnicas para amealhar mais pontos de experiência e ouro. Era impossível meus colegas de trabalho não notarem. Em fevereiro de 2001, Joseph Lunsford, o dono da empresa, me chamou pro sala dele.

“Não foi uma decisão fácil”, me disse Lunsford naquele mês quando eu entrei na sala dele para ouvi-lo falar sobre a pessoa que eu costumava ser. “Você era impressionantemente brilhante. Eu estava convencido de que não havia nada que você não fosse capaz de fazer. Você era tão promissor, mas o seu interesse pelo trabalho simplesmente despencou. Os projetos começaram a demorar mais para serem completados e ficou óbvio que a sua cabeça não estava voltada para eles. Você não me deu outra opção”.

Eu fiquei em prantos. Eu me senti inacreditavelmente patético. Eu não tinha carro, eu não tinha emprego. Joseph me pagou o último salário e ainda me deu uns 120 dólares que estavam na carteira dele e disse que eu estava dispensado. Eu peguei um táxi pra casa, contei a notícia pros meus colegas de república (tínhamos nos mudado para um apê de 3 quartos para dividirmos as contas em três), fui pro meu quarto, abri o EverQuest e me esqueci de todo o resto.

De acordo com a Dra. Hilarie Cash, diretora executiva do programa reSTART de recuperação de vício em Internet e jogo e co-autora do livro “Video Games & Your Kids: How Parents Stay in Control” (Videogames e seus filhos: como os pais mantêm o controle), esconder-se dentro de um jogo eletrônico para evitar os problemas do mundo real é um efeito comum do “vício em videogame”.

“Definitivamente isto é considerado vício em videogame, que é um subconjunto do vício em Internet. Muitas das coisas que você me descreveu são típicas de um viciado em videogame, particularmente a maneira como a vida real fica cada vez menor para o viciado, vivendo cada vez mais no mundo virtual”, disse a doutora.

E era exatamente o que eu estava fazendo. Eu costumava ser um jovem confiante e sociável que adorava sair com os meus amigos, passando horas conversando sobre absolutamente nada enquanto fumava cigarro e bebia incontáveis copos de café da Waffle House Coffee. Agora as minhas relações sociais envolviam ajudar amigos online a cercar o spawn de um monstro raro ou discutir equilíbrio de classe no canal de chat da minha guilda.

Sair do meu apê só era necessário quando eu ficava sem cigarro ou bebida. Eu vivia a base de tortinhas de 30 centavos do Wal-Mart e saquinhos baratos de arroz. Eu cuidava das minhas necessidades mais essenciais, mas apenas no limite do necessário. Por diversas vezes eu capotava sentado em frente ao meu computador com o EverQuest rodando, acordando algumas horas mais tarde para reiniciar o ciclo novamente.

Mesmo agora as minhas lembranças do período são alguns borrões de Oasis tocando ao fundo, subir de nível e caçar experiência. A minha mãe se lembra daqueles dias com muito mais intensidade.

“O Mike estava indisponível a maior parte do tempo durante aquele período”, ela se lembra. “Não tinha como entrar em contato com ele, exceto “passar por lá”, de preferência com uma sacola de compras no banco de trás. Eu me lembro de tentar falar com ele. Uma mente aguçada e um senso de humor apurado; tudo encoberto e afundado novamente. Ele ouvia as coisas com indiferença e era extremamente irritadiço. Ele estava se afundando rapidamente, ao ponto de ele próprio dizer como estava sendo e não apenas dizendo o que você quer ouvir”.

Ouvindo minha mãe falar sobre isso agora, eu mal consigo acreditar que fiquei tão mal assim, mas eu tendo a me prender às lembranças positivas mais que as negativas. Como no dia em que a Emily voltou.

 

Breve esperança

Passados três meses da minha demissão, Emily decidiu nos dar outra chance. Eu não era o mesmo cara que ela havia namorado antes. Eu estava relativamente magro, meu cabelo estava ridiculamente comprido. Quando estávamos deitados na cama, numa noite, ela até comentou como a minha pança tinha desaparecido, o que me deixou infinitamente encantado. Me parece até perverso agora. Não era que eu tinha feito dieta ou exercícios; eu estava me orgulhando da minha má nutrição.

A minha existência lentamente voltou a recobrar alguma ilusão de vida real novamente. A Emily saiu numa tarde e me trouxe uma pilha de formulários de pedidos de emprego, o que me motivou a sair, cortar meu cabelo e ir para a minha primeira entrevista de emprego em uma empresa chamada Fast Signs no final da rua. Com a aparência ligeiramente mais humana e me sentindo mais vivo do que nos últimos meses, eu consegui o emprego logo de cara. Era incrível como as coisas tinham mudado tão rapidamente. Infelizmente, não duraria muito.

Por uma estranha inversão de valores, agora eram os meus amigos do EverQuest que estavam preocupados comigo.

Eu não estava mais tão presente e eles sentiam falta do meu senso de humor e entusiasmo. A minha capacidade de tocar quatro canções de bardo simultaneamente também ajudava. Estas pessoas precisavam de mim. Eu era importante para elas e não podia desapontá-las. Hoje, lembrando daquela época, eu não acredito como não me apercebi da ironia da situação.

Daí comecei a jogar EverQuest novamente. No começo era apenas nas noites em que a Emily não podia vir pro meu apê, mas logo eu havia voltado para o meu cronograma normal de jogo – todas as horas em que estivesse acordado. Com frequência eu chegava atrasado pro trabalho e dizia estar doente pelo menos uma vez a cada quinzena para poder ficar em casa jogando.

E então veio a fatídica noite.

A mulher a quem eu já havia dito ser o amor da minha vida estava sentada, despida, na minha cama, a menos de um palmo da minha mesa do computador, implorando para que eu fosse deitar com ela, e eu continuamente a dispensando. Eu estava tão próximo do nível 40 que até conseguia saboreá-lo. Eu estava nas Dreadlands, caçando inimigos grandes pra lá e pra cá, matando-os lentamente com as minhas canções de bardo. Eu ainda me lembro hoje da urgência que eu sentia na época, junto com o incômodo daquela mulher tentando me impedir de chegar ao meu objetivo. Será que ela não entendia quão importante isto era pra mim?

Ela certamente havia tentado.

“Naquela época, eu percebia que namorava um gamer, e era assim que as coisas seriam”, ela me disse recentemente. “Eu não tinha namorado muitos caras até então e o meu irmão mais velho era igualzinho: ele trabalhava, vinha pra casa e jogava videogame”.

Oito anos depois, ficou óbvio pra mim que a minha falta de atenção dada a ela pesou muito mais do que qualquer um de nós havia suspeitado.

Numa manhã, lá pelo final de setembro de 2001, eu liguei pro meu trabalho dizendo que me demitia. Seja lá qual tenha sido a justificativa dada na época, não importa. O motivo para eu me demitir era estar cansado de inventar desculpas para estar sempre atrasado e eu só queria era jogar EverQuest.

Emily e eu nos afastávamos cada vez mais.  Durante o meu tempo na Fast Signs, eu comprei um carro antigo da minha irmã, para somente depois descobrir que não podia contratar seguro pra ele devido ao fato da minha carteira de motorista estar suspensa por causa de uma multa antiga, ironicamente emitida por estar dirigindo sem seguro. Em vez de ativamente me empenhar em consertar a situação, eu me afundava cada vez mais na depressão. Eu deixava a Emily pegar o carro, dirigindo com uma cartolina escrita “PLACA TEMPORÁRIA” atrás, mas não saía pra lugar nenhum com ela com medo de ser parado e mandado pra prisão. Em vez disso, eu ficava em casa jogando EverQuest.

A última vez que eu a vi – até 2009 – foi dois dias depois do aniversário dela no início de outubro. Eu a deixei levar o meu carro para a festa dela, mas me recusei a ir com ela. A reação dela foi ficar com o meu carro por dois dias sem me comunicar. A minha resposta foi falar pra ela devolver o carro, as chaves e sair da minha vida. E foi exatamente o que ela fez.

E eu continuei jogando.

 

Um novo início

Dezembro já se aproximava, um ano após eu dar os meus primeiros passos no mundo de Norrath de EverQuest e eu estava completamente mudado. De uma pessoa forte e independente, eu me transformei em um eremita magrelo, com barba por fazer e muitos banhos evitados, completamente removido do mundo exterior.

O meu colega de apartamento, que um dia já tinha sido um dos meus maiores amigos, me ameaçava me chutar do apê se eu não encontrasse um emprego. Mas eu não tinha absolutamente nenhuma motivação. As únicas vezes que eu saía da minha habitação era pra catar comida na casa dos meus pais, ou pra tomar uma ducha rápida, já que a água quente do nosso apartamento havia sido cortada.

Eu me lembro de me sentir como um fantasma, perambulando pelo mundo dos vivos desapercebido. Para a minha sorte, minha mãe cuidava de mim da melhor maneira possível.

“Ele não se parecia mais com o Mike de antes”, ela se lembra agora. “Ele estava assustador e deplorável. Eu achava que ele era um suicida em potencial ou que estivesse morrendo de alguma doença misteriosa. Me partiu o coração e eu sabia que voltar pra casa seria o melhor remédio para ele”.

E foi assim que no dia 1º de janeiro de 2002, aos 28 anos de idade, eu voltei a morar na casa dos meus pais. Não foi uma cura instantânea para o meu vício – assim que eu os convenci a contratar Internet a cabo eu já voltei online novamente – mas algo havia mudado. Eu passei a ficar mais tempo com os meus pais e menos tempo na minha cadeira do computador olhando para pequenas pessoas de computador fazendo coisinhas de computador. Eu tinha responsabilidades. Eu tinha uma base de sustentação só pra mim. Eu tinha uma plataforma estável para me sustentar em vez de a areia movediça onde eu sentia estar pisando antes.

Dentro de dois meses eu arranjei um emprego em um posto de gasolina por perto. Mais pro final daquele ano eu comecei a falar com Joseph Lunsford novamente, provando pra ele que eu era digno de recobrar a confiança dele por meio de trabalhos free-lance até ele decidir me contratar novamente em 2003. Assim, eu voltei a ter um emprego, uma namorada e depois de um tempo o meu próprio apartamento, só meu, não uma república. E era onde eu estava em 2006, quando Brian Crecente entrou em contato comigo e perguntou se eu queria escrever para o Kotaku. E é onde estou agora.

Seria muito fácil e cômodo eu jogar toda a culpa dos meus problemas no EverQuest e a sociedade em geral aceitaria isso sem titubear. Eu poderia dizer que fui vítima de um jogo viciante que praticamente arruinou a minha vida, mas eu saberia no fundo que não é a verdade.

Eu me escondi. Eu corri dos meus problemas, me escondendo em um mundo fantástico virtual em vez de confrontar as situações que poderiam ser facilmente resolvidas se eu tivesse lidado com elas diretamente. Ao que me consta, a única coisa imputável à Sony Online Entertainment é o fato de terem criado um belo de um esconderijo. Mas era de minha responsabilidade controlar o quanto eu jogava, e o porta-voz da SOE com quem falei sobre a minha história concorda.

“O EverQuest é um jogo”, disse o representante da Sony Online. “A grande maioria das centenas de milhares de assinantes do jogo o joga com moderação, desfrutando dele e da interação de comunidade que o jogo oferece. Assim como qualquer forma de entretenimento, é da responsabilidade de cada jogador individual monitorar o seu próprio hábito de jogo e organizar o seu tempo conforme necessário. Não é da nossa alçada monitorar ou limitar como os indivíduos gastam o seu tempo livre”. 

A Dra. Hilarie Cash também concorda, apesar de ela suspeitar que os desenvolvedores de jogo estão ativamente tentando tornar os seus jogos cada vez mais viciantes.

“Parte da culpa pode ser imputada aos desenvolvedores, que fazem um esforço consciente para tornar os seus jogos viciantes. É análoga à indústria do tabaco, que tenta torná-lo mais viciante. Isso é bom pra eles. Dito isto, cabe ao indivíduo assumir a responsabilidade de como jogam”.

Durante a nossa conversa, a Dra. Cash também ligou o jogo à aposta. Algumas pessoas conseguem entrar em um cassino, perder 5 dólares e dizer que está de bom tamanho. Você precisa conhecer o seu próprio limite e estar suficiente ciente deles para saber quando você está se arriscando a ir longe demais.

A minha própria solução ao meu potencial vício em MMO foi relativamente simples. Eu consegui transformar um hábito que antes interrompia o meu trabalho em algo que eu ativamente faço por ser o meu trabalho. Não é mais escapismo se, afinal, eu estou trabalhando. Talvez eu esteja enganando a mim mesmo, mas se eu vou ser tão crédulo assim, pelo menos que eu aproveite este período.

Quanto à Emily, ela está neste momento sentada atrás de mim enquanto digito isso, jogando Peggle. Eu pediria pra ela vir cama deitar-se comigo, mas eu sei quão importante pode ser passar para aquela próxima fase ou pro próximo nível.

 

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