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Marte antigo pode ter sido menos úmido do que imaginávamos

Lençóis de gelo, e não rios corridos, esculpiram muitos vales marcianos, segundo nova pesquisa feita por cientistas dos EUA.

Uma colagem mostra vales de Marte (em cinza) sobreposta com canais da ilha Devon (bronze), revelando várias similaridades. Crédito:  Anna Grau Galofre/Arizona State University

Uma colagem mostra vales de Marte (em cinza) sobreposta com canais da ilha Devon (bronze), revelando várias similaridades. Crédito:  Anna Grau Galofre/Arizona State University

Lençóis de gelo, e não rios com água corrente, esculpiram muitos vales marcianos, segundo cientistas. Uma nova pesquisa sugere que Marte antigo não era tão quente e úmido quanto pensávamos, mas um especialista com quem conversamos não está convencido.

Nova pesquisa publicada na Nature Geoscience sugere que os rios que corriam no Planeta Vermelho não foram responsáveis pela forma distinta de certos vales marcianos localizados na nas terras altas do sul do planeta.

Em vez disso, essas características geológicas foram forjadas pelo derretimento da água sob geleiras gigantescas, em um processo conhecido como erosão subglacial. A nova pesquisa sugere que Marte antigo era provavelmente frio e gelado, e não o planeta úmido e temperado que se presumia até então.

“Nosso estudo desafia a visão amplamente difundida de que a maioria das redes de vales em Marte foi formada por rios alimentados por precipitação”, explicou Gordon Osinski, co-autor do novo artigo e geólogo planetário da Western University, em um comunicado à imprensa. “Embora tenhamos encontrado evidências consistentes com a formação de um pequeno punhado de redes de vale dessa maneira, nossas observações sugerem que a maioria se formou sob camadas de gelo.”

Curiosamente, esses resultados, embora surpreendentes, parecem coincidir com os resultados dos modelos climáticos. Simulações em computador sugerem que o Planeta Vermelho estava frio e coberto de gelo há 3,8 bilhões de anos atrás.

Para o novo estudo, Osinski, juntamente com Anna Grau Galofre, da Universidade Estadual do Arizona, e Mark Jellinek, da Universidade da Colúmbia Britânica, examinaram fotos de satélite de 10.276 vales individuais encontrados em 66 redes de vales em Marte.

Eles contaram com a ajuda de um software personalizado no processo. Seu algoritmo foi capaz de combinar as características da superfície com processos erosivos específicos, incluindo erosão glacial, subglacial, fluvial (água superficial) e erosão por enfraquecimento causado por água subterrânea.

“Se você olha para a Terra a partir de um satélite, vê muitos vales: alguns deles feitos por rios, outros feitos por geleiras, outros feitos por outros processos, e cada tipo tem uma forma distinta”, explicou Grau Galofre em um comunicado de imprensa da Universidade Estadual do Arizona (ASU, na sigla em inglês). “Marte é semelhante, só que os vales parecem muito diferentes uns dos outros, sugerindo que muitos processos estavam em ação para esculpi-los”.

Os vales marcianos também foram comparados a características subglaciais conhecidas na Terra. A ilha de Devon, localizada no Ártico canadense, é “um dos melhores análogos que temos para Marte aqui na Terra”, disse Osinski, pois é um “deserto polar frio e seco e sabemos que a glaciação é amplamente baseada em frio”.

Dos 66 sistemas de vale estudados, os pesquisadores identificaram que 22 foram formados a partir de erosão subglacial; 14, fluvial; nove, glacial;, três, por enfraquecimento causado por água subterrânea; e 18, de origem indeterminada.

Essas descobertas são “a primeira evidência de extensa erosão subglacial impulsionada pela drenagem canalizada de água de derretimento sob uma antiga camada de gelo em Marte”, disse Jellinek em comunicado de imprensa da ASU, acrescentando que esses resultados “demonstram que apenas uma fração das redes de vale corresponde aos padrões típicos de erosão das águas superficiais, o que contrasta fortemente com a visão convencional.”

Bruce Jakosky, um professor de geologia da Universidade do Colorado e pesquisador principal da missão Maven (Mars Atmosphere and Volatile Evolution), descreveu a nova análise como “interessante” mas não “definitiva”.

“Com base em seus números, parece haver uma gradação suave entre as propriedades das redes de vale individuais”, disse Jakosky em um e-mail. “Ter uma gradação suave nas propriedades, mas classificá-las em um número limitado de processos de formação, parece deixar uma possibilidade aberta a incertezas significativas.”

Por isso, Jakosky não está muito confiante nos números específicos usados no estudo. Ele também não se impressionou com o número relativamente pequeno de 66 redes de vale usadas como amostra, dada a declaração dos autores de que “centenas” existem em Marte.

“Com exceção do baixo número de erosões por enfraquecimento causado por água subterrânea, isso parece consistente com uma distribuição aleatória entre os outros processos”, explicou ele. “Ou seja, mesmo que a erosão subglacial seja a mais proeminente, ela não é tão dominante que justifique a conclusão de que eles são o principal processo. Ou seja, eles afirmam que subglacial e fluvial dominam, mas parece mais ou menos igual entre todos os processos.”

Ao que ele acrescentou: “As conclusões deveriam ter sido que todos os processos que eles examinaram tiveram um papel, e nós precisamos procurar um clima/ambiente que possa suportar todos eles.”

Scott King, um geocientista de Virginia Tech, achou o novo resultado razoável e até provável.

“Acho que o problema é que estamos falando de Marte e temos algumas ideias bastante fortes o planeta, e às vezes isso atrapalha como encaramos as observações”, escreveu King em um e-mail. “Esse é um desses estudos que nos faz parar e nos perguntar: por que partimos do pressuposto que todas as redes de vales em Marte eram fluviais? Por que a erosão fluvial e glacial não ocorreram em Marte? Os modelos climáticos nos dizem que Marte era frio e tinha gelo, então esses pesquisadores fizeram uma pergunta muito lógica: ‘que tipo de redes de vale vemos?’.”

De fato, os novos dados devem ser reconciliados com outras evidências geológicas de Marte antigo, como os locais de antigos lagos e deltas de rios (incluindo a cratera Jezero, o local de destino do rover Perseverance em Marte), formações de argila (como descoberto pelo rover Curiosity) e até as evidências de um antigo mega-tsunami em Marte.

Marte antigo era úmido, mas o novo artigo complica nossa compreensão do passado do planeta ao mostrar como processos erosivos causados por outros fatores que não águas superficiais de fluxo livre podem esculpir certas características geológicas. No futuro, os cientistas planetários fariam bem em lembrar deste artigo, mesmo que seja um pouco incompleto. Está ficando cada vez mais claro, no entanto, que Marte antigo era um lugar complexo e dinâmico.

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