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Mudança climática levou alguns Neandertais ao canibalismo, sugere pesquisa

Neandertais são famosos por terem vivido a última grande era glacial, mas por um período de cerca de 14 mil anos tiveram de suportar os efeitos de um ciclo de aquecimento global natural. Lutando para se adaptar às mudanças das condições, os Neandertais enveredaram-se para o canibalismo por desespero, de acordo com um novo estudo. […]

Ossos mostram evidências de canibalismo entre os Neandertais

Evidências de canibalismo entre os Neandertais já foram descobertas antes, como nestes ossos com marcas de corte encontrados em uma caverna em Goyet, na Bélgica. Imagem: Asier Gómez-Olivencia et al.

Neandertais são famosos por terem vivido a última grande era glacial, mas por um período de cerca de 14 mil anos tiveram de suportar os efeitos de um ciclo de aquecimento global natural. Lutando para se adaptar às mudanças das condições, os Neandertais enveredaram-se para o canibalismo por desespero, de acordo com um novo estudo.

A nova pesquisa, publicada nesta semana no Journal of Archaeological Science, sugere que o impacto esmagador do Último Período Interglacial, também conhecido como o período Eemiano, forçou os Neandertais ao canibalismo.

Nesta era da pré-história, entre 128 mil e 114 mil anos atrás, as temperaturas globais subiram para cerca de 2 graus Celsius acima da temperatura média global no século 20.

Os arqueólogos autores do novo estudo, Alban Defleur e Emmanuel Desclaux, ambos do Centro Nacional Francês de Pesquisa Científica, apresentaram novas evidências que mostram como o pico acentuado da temperatura remodelou o ambiente eurasiático e, consequentemente, os animais dos quais os Neandertais dependiam para sobreviver.

Alteração climática brutal

Condições mais quentes poderia soar como um alívio bem-vindo para os Neandertais, mas a mudança foi provavelmente muito perturbadora. Eles viveram na Eurásia por centenas de milhares de anos antes do Último Período Interglacial, e se adaptaram bem às condições da era do gelo.

As mudanças resultantes para a vida vegetal e animal não foram necessariamente para melhor, pelo menos para os Neandertais, embora arqueólogos e antropólogos admitam que se sabe muito pouco sobre como a espécie viveu nesse período que durou 14 mil anos.

A nova pesquisa é importante na medida em que sintetiza novas e antigas evidências para mostrar que o período Eemiano não foi um bom momento para eles.

Para o novo estudo, Defleur e Desclaux avaliaram restos de Neandertais e outras evidências, como sedimentos, carvão vegetal e restos de animais, coletados de Baume Moula-Guercy, uma caverna perto da aldeia de Soyons no sudeste da França.

Alguns dos ossos de Neandertal coletados nesta caverna, que foram descobertos no final da década de 1990, exibiram sinais de canibalismo. Os autores também revisaram a literatura científica existente sobre a caverna e as condições ambientais durante o período Eemiano.

Pelo menos seis dos indivíduos encontrados na caverna – dois adultos, dois adolescentes e duas crianças – foram canibalizados, como evidenciado pelas marcas de corte feitas por ferramentas de pedra, sinais de completo desmembramento corporal e ossos de dedos que continham marcas de mastigação a partir de dentes de Neandertal.

Canibalismo por necessidade

A evidência do canibalismo existe ao longo de grande parte da história, mas é difícil discernir as razões exatas para a prática em cada caso. Um estudo de 2017, publicado na Scientific Reports, mostrou que o canibalismo não é a forma mais eficaz de adquirir calorias, e que as práticas ritualísticas desempenharam um papel significativo no comportamento.

Apesar disso, comer um indivíduo de sua própria espécie para sobreviver durante momentos de estresse nutricional não pode ser descartado em alguns casos, e é citado como a razão para o canibalismo observado nesse novo estudo.

Que os Neandertais se envolveram com canibalismo não é uma grande surpresa. Exemplos desse comportamento entre o grupo já foram descobertos anteriormente – como em fósseis de Neandertais que haviam sido encontrados na Bélgica.

“Há evidências circunstanciais convincentes em toda a Europa de que os Neandertais ocasionalmente se envolveram com o canibalismo”, disse Danielle Kurin, antropóloga da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, que não estava envolvida no novo estudo, ao Gizmodo.

“A evidência para o canibalismo inclui marcas de corte no osso que são consistentes com desmembramento e deformação. Ossos como o fêmur e o crânio mostram sinais de ruptura intencional [logo após a morte], o que sugere um esforço para atingir tecidos de alta caloria, como a medula óssea e até mesmo o cérebro, em alguns casos”.

Dito isto, Kurin disse que não há evidência suficiente para confirmar que os Neandertais praticaram canibalismo ritualístico, em momentos como funerais. E de fato, os padrões de trauma descritos no novo estudo são mais consistentes com o canibalismo nutricional, disse ela.

“É principalmente em casos mais recentes – aqueles com apenas alguns milhares de anos e que envolvem humanos anatomicamente modernos – que vemos esse padrão de purificação de cadáveres, como o desmembramento, como parte de um ritual funerário”, disse Kurin. “Em outros casos, a intenção é a profanação: a destruição intencional de uma pessoa indesejável. No entanto, mais uma vez, devo salientar que temos pouca evidência de que os Neandertais estejam envolvidos em práticas complexas de sepultamento, ou atos de punição corporal”.

Os cientistas já sabiam que os Neandertais da caverna de Baume Moula-Guercy praticavam o canibalismo, mas a ligação com a mudança climática é nova. Nesse sentido, os autores forneceram um retrato ecológico da Europa Eemiana, destacando as condições ambientais em mudança e os tipos de alimentos disponíveis para eles.

Mudança de paisagem e de presas

Onde as pastagens outrora dominavam a paisagem, as florestas temperadas se infiltraram. Grandes animais de presa, como mamutes, veados gigantes, elefantes gigantes e rinocerontes de nariz estreito, foram substituídos por roedores, porcos-espinhos, cobras e répteis (incluindo tartarugas), muitos dos quais migraram para norte a partir da região mediterrânica. Para os Neandertais, isso não era bom, como os pesquisadores escreveram no novo artigo:

[…] as florestas tropicais ou temperadas são ambientes de vida hostis para todos os grupos de caçadores-coletores hoje, como no passado, porque a proteína dos mamíferos de tamanho médio [mamíferos com patas] é muito menor do que a das presas encontradas em uma formação aberta de tundra, como os mamutes-da-estepe. Com base no estudo dos dentes humanos, essa população foi submetida a frequentes tensões nutricionais e à presença de comportamento canibalístico que, diferentemente das práticas ritualísticas, é exceção para os Neandertais europeus.

A população posteriormente entrou em colapso durante o período Eemiano, de acordo com Defleur e Desclaux, e a escassez de restos mortais e artefatos desse período é mais uma prova disso.

Como o artigo apontou, a população de Neandertais nunca foi grande – nunca existiu mais de dezenas de milhares de indivíduos vivos ao mesmo tempo. Os Neandertais viviam em pequenos grupos constituídos por cerca de 15 a 25 indivíduos, no máximo, de modo que declínios populacionais severos foram provavelmente catastróficos.

É importante ressaltar que o “canibalismo destacado em Baume Moula-Guercy não é uma marca de bestialidade ou sub-humanidade”, conforme escreveram os autores. Pelo contrário, os dados apontam para um “curto e único episódio de sobrevivência [canibalismo] em resposta ao estresse nutricional induzido por mudanças ambientais rápidas e radicais”.

Kurin disse que os autores apresentaram um argumento convincente.

“Há certamente um precedente para o desespero como motivação para comer carne humana”, disse Kurin a Gizmodo. “Neandertais podem ter tido uma visão diferente daquela que temos a respeito dos corpos mortos. Podemos ver um ente querido; Neandertais podem ter visto um cadáver em decomposição pronto para ser consumido, se necessário”.

Os Neandertais, especula ela, poderiam ter praticado o canibalismo como forma de sobreviver a períodos prolongados de insegurança alimentar ou desespero. Entre grupos humanos da história mais recente, comer a carne de um ancestral era parte do processo de luto que permitiria que os mortos realizassem sua passagem para um além-mundo, disse Kurin, enquanto ajudava os descendentes vivos a lidar com a perda.

“Comer a carne tornou-se uma forma de recordar os mortos”, disse ela. Uma ideia interessante, mas sem evidências de que os Neandertais possuíam tais crenças.

Como Defleur e Desclaux mostraram, as descobertas em Baume Moula-Guercy representam um episódio isolado, então precisamos ter cuidado ao generalizar este exemplo para outros Neandertais.

Arqueólogos devem continuar a busca por mais evidências que remontam ao período Eemiano. De qualquer forma, parece que a mudança climática teve um sério impacto sobre os Neandertais.

[Journal of Archaeological Science via Cosmos]

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