Não espere um incêndio chegar: o plano da USP para preservação de acervo arqueológico

Há 15 anos, um esforço coletivo para salvaguardar informações de esqueletos humanos das coleções de museus abriu portas para pesquisa, preservação e ampliação do acesso ao patrimônio cultural

Em maio de 2010, um curto-circuito provocou um incêndio no Instituto Butantan que dizimou a maior e uma das mais importantes coleções de serpentes do mundo. O fogo destruiu mais de 80 mil espécimes de serpentes, além de 450 mil aranhas e escorpiões do acervo que datava da criação do instituto, em 1901.

banner

“Fiquei chocado, assim como muitos, com a perda desse patrimônio mundial. O acervo, que estava em frascos de formol, desapareceu sem que amostras de DNA desses animais fossem congeladas”, lembra Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina e superintendente de Saúde da USP. Na época, o epidemiologista estava à frente do Hospital Universitário (HU) da USP, que acabava de receber dois tomógrafos computadorizados de 64 canais. Os equipamentos estavam destinados a exames médicos complexos e de alta precisão.

Assim que recebeu os tomógrafos, Lotufo pensou no acervo do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências (IB) da USP. “Liguei para o Walter [Neves] oferecendo o serviço. Ele enviou o Rodrigo [de Oliveira] pessoalmente, que não perdeu tempo e já trouxe material para testar”, conta.

Obioantropólogo Walter Neves foi quem apelidou de “Luzia” o esqueleto formalmente intitulado “Lapa Vermelha IV Hominídeo 1” – um dos fósseis humanos mais antigos das Américas. Os ossos do crânio, da coxa e da bacia de Luzia foram encontrados por uma missão científica franco-brasileira em escavações no sítio arqueológico da Lapa Vermelha, região de Lagoa Santa, Minas Gerais, em 1975.

Atualmente à frente do Núcleo de Pesquisa e Disseminação em Evolução Humana no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, Neves fundou, em 1994, e coordenou o pioneiro Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do IB. Foi lá que ele aprofundou os estudos sobre o povo de Luzia e sua hipótese dos dois componentes biológicos – em que teria havido duas levas migratórias distintas para o povoamento das Américas.

Reprodução do fóssil de Luzia em cor marrom, dentro de uma caixa acrília em exposição na USP
Reconstituição do rosto de Luzia – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

“Eu sempre falava para o Walter que a gente precisava fazer tomografia desses achados. Ele era resistente porque a qualidade das imagens era muito ruim, e tinha toda razão”, explica o arqueólogo e dentista Rodrigo Elias de Oliveira. Atualmente pós-doutorando em Arqueologia no Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, Oliveira foi pesquisador do laboratório do professor Walter Neves no IB, com particular interesse na dieta de seres humanos antigos, revelada pelas cáries presentes nos dentes encontrados nos sítios arqueológicos. O pesquisador já havia tentado utilizar tomógrafos odontológicos, mas o tamanho impossibilitava a tomografia de crânios, sendo possível apenas a digitalização de pequenos fragmentos de ossos e dentes.

“As máquinas do hospital tinham o dobro da definição das atuais e cabiam os crânios. Começamos com alguns sepultamentos da Lapa do Santo e passamos a levar material quase toda semana”, lembra Oliveira. Com a expertise adquirida e o potencial gerado pelas imagens, Oliveira e André Strauss, antigos companheiros de pesquisa, passaram a colaborar para a digitalização dos mais de 400 crânios do Museu de Anatomia Humana (MAH) da USP, além de materiais de coleções do IB.

O trabalho também envolveu a microtomografia de objetos líticos, em parceria com o Laboratório de Caracterização Tecnológica da Escola Politécnica (Poli) da USP. As peças digitalizadas compõem a exposição de longa duração do Museu Histórico Nacional Îandé – aqui estávamos, aqui estamos.

“A gente está gerando um backup virtual de um acervo que é patrimônio da humanidade” – André Strauss

Strauss é coordenador do Projeto de Virtualização Tomográfica de Acervos Arqueológicos, institucionalizado pelo museu em 2018. O projeto já realizou mais de 10 mil tomografias com dados tridimensionais e em breve será reforçado com a aquisição de um microtomógrafo de grande volume pelo MAE.

imagem digitalizada de parte de um crânio humano
reconstituição facial representando um rosto masculino

Reconstrução facial forense realizada pela antropóloga britânica Caroline Wilkinson a partir de modelo tridimensional e algoritmos implementados pelo arqueólogo André Strauss. O molde foi microtomografado no Instituto Max Planck, na Alemanha, e o crânio no Hospital Universitário da USP – Imagens: Strauss MAE-USP/Cecília Bastos

Precisão na pesquisa

Ao Jornal da USP, Oliveira destaca o potencial de pesquisa viabilizado pela digitalização: tornar visível o que se esconde nas paredes externas e internas de ossos, além de cerâmicas. Com a ajuda do tomógrafo, ele e outros cientistas puderam identificar lesões ósseas características de sífilis congênita em um esqueleto de uma criança de 9,4 mil anos exumado da Lapa do Santo. Este foi o registro do caso mais antigo de sífilis do continente americano.

O pesquisador lembra, ainda, de uma iniciação científica que conseguiu identificar pequenas estruturas em forma de agulha na parede interna de um vaso encontrado em sítio no Mato Grosso, a partir da imagem tomografada. “O aluno encontrou umas espículas dentro da cerâmica, que pode ser uma estrutura vegetal incorporada intencionalmente por aquele povo”, diz.

Em 2018, Strauss e Oliveira foram coautores de um artigo na revista científica Cell que reconstruiu as origens do povo de Luzia a partir da análise do DNA fóssil de 49 indivíduos exumados de sítios arqueológicos na América Central e do Sul – sete destes, na Lapa do Santo. A partir da análise genômica e com a ajuda do tomógrafo do HU, foi possível fazer a reconstituição facial do crânio de um homem desenterrado da Lapa do Santo e considerado um “parente” de Luzia.

“A nova reconstrução facial abandona aqueles traços marcadamente africanos e tampouco é uma fisionomia marcantemente ameríndia”, explicou Strauss em entrevista à TV USP. O trabalho diverge da teoria dos dois componentes biológicos e conclui que o Povo de Lagoa Santa descende diretamente da cultura Clóvis a partir de uma única onda migratória que se diversificou já dentro do continente americano.

conchas de moluscos cobertas por carvão e foligem, numerados, sobre uma mesa

Exemplares parcialmente queimados da coleção de conchas de moluscos e seus recipientes do Museu de História Natural da UFMG. Após incêndio, instituição criou o projeto Renasce Museu, com informações dos acervos afetados pelo fogo – Foto: Déborah Duarte-Talim/MHNJB-UFMG

Da degradação à conservação

O entusiasmo dos pesquisadores ao utilizar a tomografia logo foi substituído pelo luto: primeiro, em 2018, com um incêndio de grandes proporções no Museu Nacional do Rio de Janeiro, que consumiu quase todo o acervo da história do País, com mais de 20 milhões de itens atingidos. Entre as peças, o Museu Nacional abrigava o crânio original de Luzia, que foi parcialmente resgatado dos escombros.

Depois, em 2020, outro incêndio causado pelo superaquecimento de um aparelho de ar condicionado tomava o edifício da reserva técnica do Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais. O museu abriga a coleção de peças cerâmicas do Vale do Jequitinhonha – uma tradição milenar de artesanato em barro.

“Se essas coleções tivessem sido digitalizadas, essa perda também continuaria sendo inestimável, mas haveria a possibilidade, pelo menos, de resguardar o potencial científico daqueles objetos representados pelos seus acervos digitais”, afirma Eduardo Góes Neves, pesquisador e diretor do MAE.

Neves destaca que o uso de equipamentos como tomógrafos aliam a preservação e a produção de conhecimento científico. “Essas técnicas de registro permitem a visualização de estruturas, de microestruturas e de padrões que muitas vezes não são visíveis pelas técnicas tradicionais analíticas que a gente usa.”

Para ele, a tendência é que os museus tenham acervos cada vez mais digitais, com arquivos sonoros e de imagens. No MAE, um novo centro já está nascendo digital: o Centro de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas, que será coordenado em parceria com o Museu da Língua Portuguesa. O novo centro estará voltado à formação de acervos audiovisuais relacionados a línguas indígenas e sistemas de conhecimento das populações indígenas brasileiras. “A gente vai continuar coletando objetos também, mas teremos um novo acervo etnográfico, com registro essencialmente digital”, comenta.

As possibilidades de universalização dos bens culturais, no entanto, caminham de mãos dadas com outros desafios, como garantir sua propriedade intelectual, certificar sua legitimidade e gerenciar licenças de uso para distribuição e reprodução de obras.  “Estamos contratando consultoria jurídica. A ideia sempre é tentar disponibilizar para o público mais amplo possível, mas algumas coisas têm acesso restrito, com uma cópia no museu ou no território de origem.”

Repatriação de coleções

A digitalização de acervos toca em outra delicada questão: o crescente movimento pela repatriação de coleções arqueológicas. Trata-se de uma pressão pela devolução de remanescentes humanos, animais e artefatos materiais ou imateriais que foram coletados por pesquisadores ou expedições científicas e levados para instituições ou museus distantes da comunidade de origem. O processo tem ganhado força com movimentos sociais que lutam pela preservação do patrimônio cultural local e pelo direito ao acesso às tradições de seus povos.

A situação dos acervos também resvala em imbróglios jurídicos com antigos donos de coleções pessoais cujo acervo foi destinado à salvaguarda de museus e instituições de ensino superior. É o caso das coleções do antigo Banco Santos, que realizou leilões para alienação dos bens por meio de sua massa falida. Cerca de 18 mil objetos do banco foram distribuídos entre o Museu de Arte Contemporânea (MAC), o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), o Museu Paulista e o MAE – todos da USP – e precisaram passar por obras de recuperação, já que os objetos foram resgatados em situação muito precária em função do transbordamento do rio Pinheiros e da inundação do galpão em que estavam guardados. O processo de transferência institucional e acolhimento das coleções do banco segue sendo conduzido na justiça.

“Eu acho justo que este material [que está no MAE] seja retornado para o estado de origem, mas é importante pensar em maneiras que assegurem a integridade dessas peças. E a digitalização pode ser um passo importante. Se tivermos uma cópia fidedigna, podemos distribuir a réplica de uma peça manauara para o Brasil inteiro, inclusive para nós, e mandar o original de volta para lá”, pondera Neves.

Demylis Castro, estudante de graduação, acompanhando a tomografia de um vaso marajoara dos acervos do MAE no Hospital Universitário da USP
Tomógrafo médico possibilita a digitalização de grandes artefatos, como a urna marajoara, gerando modelos 3D de alta resolução – Foto: Tabita Said / Jornal da USP
Duas mulheres jovens segurando um caixote e um carrinho, sorrindo, na fachada de um prédio; 2) Mulher sentada em frente a um computador que mostra a imagem de uma peça cerâmica; 3) Mulher sentada em frente a um computador fazendo o processamento de um fóssil digitalizado, ao lado de miniaturas de objetos arqueológicos
Mulher sentada em frente a um computador que mostra a imagem de uma peça cerâmica
Mulher sentada em frente a um computador fazendo o processamento de um fóssil digitalizado, ao lado de miniaturas de objetos arqueológicos

Integrantes do projeto de virtualização de acervos arqueológicos participam da curadoria do material, separação e traslado até o Departamento de Radiologia do HU, além do processo de tomografia e processamento dos dados – Fotos: Tabita Said/Jornal da USP

Digitalizar e compartilhar

“Com 1 milhão de peças é difícil pensar em como acaba o projeto de virtualização do MAE”, diz Strauss, destacando o desafio de manter constante a ambiciosa meta de digitalização do acervo arqueológico e etnográfico da USP. O número não é mera força de expressão: atualmente o MAE conta com mais de 1,5 milhão de itens, desde a Antiguidade até artefatos de povos indígenas do Brasil.

“É um projeto que exige perseverança. Estamos na terceira geração de estudantes e agora estamos trabalhando em catálogos por áreas temáticas. O primeiro catálogo será do acervo tapajônico do museu”, explica Strauss, que acumula a experiência de processamento de dados de virtualização nos museus de La Plata, na Argentina, de Berlim e do Phyletisches Museum, ambos na Alemanha.

Na lida da pesquisa, o professor compartilha também o conhecimento da virtualização de acervos – como prefere chamar – com estudantes da graduação que estão no projeto. Eles participam da curadoria do material nos acervos do MAE, da separação e traslado até o Departamento de Radiologia do HU, do processo de tomografia e do processamento dos dados.

“Ano passado, fizemos mais de 700 tomografias, mas cada uma pode ter gerado o dobro de arquivos de imagens, com inúmeras peças diferentes dentro daquele contexto”, explica Demylis Castro, aluna de graduação em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e integrante do projeto.

Após o aprimoramento das imagens, feito no laboratório, o grupo passou a padronizar e ampliar as informações disponíveis para cada peça digitalizada, como descrições sobre a cultura e o local onde as peças foram encontradas. “A ideia é fazer primeiro as peças de cultura amazônica. Agora estamos trabalhando na cultura marajoara e depois vamos seguir para o restante do acervo do museu”, afirma Júlia França, também aluna de graduação da FFLCH.

“Acho que depois desses incêndios houve um despertar por parte dos dirigentes sobre a fragilidade dos nossos acervos. Tudo pode acontecer: incêndio, repatriação, pandemia. Pesquisadores de todos os lugares do mundo podem verificar o acervo sem prejuízo da manipulação das peças. A eternização do acervo é fundamental”, conclui Strauss.

Mais informações: https://sites.usp.br/laaae/acervo/virtualizacao-de-acervos-arqueologicos/; [email protected], com André Strauss

fique por dentro
das novidades giz Inscreva-se agora para receber em primeira mão todas as notícias sobre tecnologia, ciência e cultura, reviews e comparativos exclusivos de produtos, além de descontos imperdíveis em ofertas exclusivas