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Aquele “suporte técnico 24 horas por dia” do Estado Islâmico não existe

Notícias davam conta de que havia uma espécie de suporte técnica do EI, mas tudo não passou de um grande mal-entendido.

Na semana passada, a NBC e a CNN Money disseram que o Estado Islâmico possui um help desk que funcionaria 24 horas por dia, 7 dias por semana, e que teria uma série de pessoas prestando auxílio a todos aqueles que queiram propagandear o regime.

A história foi citada em vários veículos da imprensa americana, e chegou ao Brasil por meio da ÉpocaG1Yahoo! Notícias e alguns sites de tecnologia. No entanto, o fato é que as matérias estavam erradas.

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O Centro de Combate ao Terrorismo, em West Point (Nova York), divulgou um comunicado que descrevia o EI como um sistema descentralizado e usou a metáfora “help desk” para descrever o sistema multiplataforma de alcance em fóruns. Não existe evidência de que os terroristas tenham uma central de atendimento, e nem o próprio Centro de Combate ao Terrorismo disse que havia. Ainda assim, isso foi noticiado em vários lugares.

A história de como tudo aconteceu ilustra a forma como a mídia costuma tratar o Estado Islâmico sem tradução apropriada ou verificação dos fatos — além de ressaltar a importância de noticiar esse tipo de assunto com precisão.

Liguei para Aaron F. Brantly, que é pesquisador do Centro de Combate ao Terrorismo, para discutir essas matérias sobre o “help desk do EI” e ele fez questão de enfatizar que era uma metáfora.

“Não é um número de telefone que você liga e eles dão dicas, mas uma série de plataformas que eles usam pelo mundo”, explicou. “Não existe um número 0800-JIHAD.” As plataformas as quais as entidades se referiam eram Telegram, Twitter e outras, que foram reduzidas a uma espécie de suporte técnico.

E o manual do help desk?

Depois de esclarecermos essa história de help desk, Brantly me mandou um manual de 34 páginas de sua pesquisa sobre o que eles descobriram sobre a comunicação online do EI. Ele enviou o mesmo documentou à Wired, que escreveu uma matéria sobre como o manual era compartilhado entre os membros do grupo. O título original era: “Manual do Estado Islâmico revela como o grupo lida com cibersegurança”.

O problema com esse título é que, na verdade, o manual foi escrito para ensinar jornalistas em Gaza sobre privacidade. Ele não foi escrito para ou pelo Estado Islâmico.

A Wired corrigiu a notícia para esclarecer que o documento em questão foi originalmente escrito em 2014 por uma empresa de segurança chamada Cyberkov, que tem sede do Kuwait. A própria companhia negou em um comunicado que esse manual de treinamento foi feito para o EI:

O suposto manual do EI é, na verdade, um manual da Cyberkov escrito em julho de 2014 para jornalistas e ativistas. O original pode ser encontrado aqui, e seu principal objetivo é ajudar jornalistas e ativistas (especialmente aqueles que trabalham em zonas de guerra, como Gaza) a protegerem suas identidades digitais, suas fontes e suas habilidades de terem um fluxo livre de informação com o resto do mundo.

O arquivo linkado na Wired é uma cópia modificada de um manual hospedado no JustPasteIt. Foi, aparentemente, publicado por um morador de Gaza. O artigo foi modificado. No entanto, contém alguns links para o blog da Cyberkov. Não só o artigo não cita o Estado Islâmico, como também descobrimos que o Centro de Combate ao Terrorismo não tem tradutores de árabe, e decidiram passar o artigo no Google Tradutor!

Nós acreditamos que isso é um golpe à reputação, precisão e profissionalismo do Centro de Combate ao Terrorismo, pois eles não conseguiram diferenciar um manual do EI de um manual para jornalistas, simplesmente aceitaram o que apareceu no Google Tradutor como um método de tradução, e ainda emitiram juízo sobre um assunto sensível. Esperamos que as instituições usem métodos não-amadores para conseguirem informações.

Também achamos triste que agências de notícias internacionais e repórteres renomados não consigam fazer análises e apurar as notícias de forma apropriada. Infelizmente, essa notícia falsa vem no momento em que governos de todo o mundo estão tentando banir a criptografia, ao associarem a prática com organizações criminais e terroristas. Em vez de escreverem matérias negativas sobre o uso de criptografia, os jornalistas deveriam estar na linha de frente em defesa dessa técnica, mostrando como ela disponibiliza proteção para eles e para suas fontes.

Abdullah Al Ali, o autor do manual da Cyberkov, ficou desapontado que seu texto para ajudar jornalistas tenha sido retratado como um manual terrorista. “Nós apenas soubemos no artigo da Wired que o EI estava usando nosso manual”, ele me escreveu. “De fato, até o link do JustPasteIt linkado na Wired diz que não foi publicado pelo EI, e sim por um residente de Gaza. Para ser honesto, nem sabemos ao certo se o EI, de fato, usou nosso manual.”

(Ali está tendo uma semana péssima: ele tem sofrido ameaças de pessoas identificadas como membros do Anonymous por fazer posts relacionados ao grupo.)

Eu perguntei a Brantly se ele tinha visto o comunicado da Cyberkov. Ele afirmou que o centro achou o manual no Twitter e em fóruns relacionados ao grupo terrorista. Ele também me mostrou capturas de tela que mostram contas afiliadas ao EI com links para o manual.

“Espero que você perceba como estamos levando essas alegações a sério”, escreveu, enfatizando que ele teve amplas evidências de que o EI estava usando o manual da Cyberkov entre seus membros.

“No estudo original e na versão atual que passou por revisão de pares, discutimos extensivamente a cooptação de materiais de direitos humanos para fins ilícitos”, continuou Brantly.

Retornei para falar com o Ali e ele reconheceu que, possivelmente, o EI se apropriou do material deles. “É claro que na era da internet, você nunca consegue controlar quem copiou o que você escreveu. O EI, com certeza, não vai responder a solicitações de remoção de conteúdo por violação de direitos autorais. É totalmente impossível parar as pessoas de compartilharem nosso manual.”

A importância de acertar os fatos

O Anonymous declarou guerra ao EI há uma semana, e seus esforços já estão sendo considerados desastrosos. Um funcionário do Twitter chamou a lista de “supostos membros do EI” na plataforma de “muito imprecisa”, segundo o Daily Dot. Em sua empreitada em derrubar o grupo terrorista, o Anonymous mostra que sua rede é extensa, porém com muito pouco critério sobre quais contas deveriam ser “derrubadas”.

As manchetes “help desk 24 horas” e “Manual do Estado Islâmico” — também erradas — usaram fontes de informação de forma literal e deixaram as nuances sobre o assunto de lado.

Resumindo: duas histórias diferentes surgiram de um mesmo manual incorreto em um período de poucos dias. Ao mesmo tempo, um grupo que se propõe a alertar sobre o terrorismo falhou em sua missão, pois não conseguiu apurar fatos por problemas de tradução. Isso não é coincidência.

Explicar as formas em que um grupo terrorista está usando a internet para esconder sua localização e identidade é difícil para qualquer um. Jornalistas e ativistas que não falam árabe e confiam apenas em fontes secundárias para obter informações acabam se apressando e não percebendo fatos importantes, mesmo quando a fonte parece confiável.

Esses erros se acumulam e fazem parte de um problema maior. A forma como as pessoas obtêm notícias é importante. Reportagens nebulosas dizendo que o EI usou ferramentas de criptografia durante os ataques em Paris causaram reações histéricas de políticos americanos, antes mesmo de descobrirem se isso aconteceu mesmo. Quando pessoas poderosas usam a versão mais exagerada de uma história para justificarem um plano, é importantíssimo minimizar o sensacionalismo.

Não existe uma central de atendimento do Estado Islâmico. Se ao menos houvesse uma central para ajudar as pessoas que escrevem sobre o EI.

Foto: AP

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