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O que acontece quando jornalões ignoram manifestações anti-Bolsonaro?

O que aconteceu no último dia 30 de maio, quando jornalões ignoraram as manifestações anti-Bolsonaro do dia anterior?

No último sábado (29). centenas de milhares de brasileiros encararam a pandemia e foram às ruas para protestar. Se nominalmente seu protesto era contra um governo e um governante, ultimamente elas protestavam contra as atitudes que levaram à morte de, até aqui, quase meio milhão de brasileiras e brasileiros. Gritavam a favor da ciência, dos direitos humanos, do respeito à população LGBTQI+, dos negros e negras, e das mulheres. A favor da Amazônia e do clima, das populações indígenas. Eram, sobretudo, protestos a favor da democracia, e contra o obscurantismo. 

Se você é leitor habitual do Gizmodo Brasil, já deve ter percebido que, embora o site não tenha uma preferência partidária, tem um posicionamento político claro. Somos a favor do conhecimento,da ciência, dos direitos humanos e do respeito ao outro. Você pode preferir um estado maior ou menor, ter a opinião que quiser sobre relações trabalhistas e ainda se sentir acolhido aqui. Se, entretanto, você acredita e propaga o pensamento anticientífico, os preconceitos, as ideias que colocam alguns acima dos outros por qualquer motivo que seja, estamos de lados diferentes.

Para além disso, temos um compromisso ético claro com o jornalismo, com a informação verdadeira e fidedigna, e, por consequência, com a democracia. Nada aqui é divulgado ou escondido com base em interesse político ou empresarial. Se uma empresa pisar na bola, você vai ler aqui; se um político ou personalidade pública que já foi elogiada aqui se mostrar pouco merecedor de elogios, isto também vai aparecer aqui. Se algo que se achava que era de um jeito, de repente, passar a ser visto de outro, aqui você vai ver os dois lados. Por que as coisas mudaram, você poderá tirar suas próprias conclusões — mas com base em um conjunto de fatos que não vão ser inventados, aumentados ou distorcidos para defender qualquer pessoa ou teoria. A isso chamamos jornalismo — e não mudou só porque a informação agora vem de mais fontes.

Se no sábado passado o protesto bombou nas redes sociais, no domingo uma pessoa que se informasse só pelos jornalões poderia nem se dar conta do que aconteceu no dia anterior. Dos três maiores jornais do país, os considerados jornais “nacionais”, só a Folha  de S. Paulo deu destaque ao povo nas ruas. No Estadão e n’ O Globo, apenas pequenas notas na capa.


Há, no caso, numerosas discussões. A primeira delas é sobre o papel da mídia: os jornais devem de alguma maneira apoiar movimentos populares? E que tipo de movimento? A segunda discussão é: independentemente de apoiar ou não qualquer movimento, os jornais podem fingir que uma movimentação de pessoas como a que aconteceu no sábado não tem importância maior do que uma notinha na primeira página? Por fim, pelo menos para os fins desta coluna: quais são as consequências para o jornalismo e, principalmente, para os jornalões, de ignorar um acontecimento desta magnitude em uma era em que as pessoas vão ficar sabendo o que se passou mesmo que os jornais escondam atrás de uma pilastra?

A primeira pergunta é certamente a mais difícil de ser respondida. É de cada “cultura de imprensa” os jornais se posicionarem ou não. Todo mundo nos EUA sabe que o The NYTimes é simpático aos Democratas; que o The Guardian é de esquerda, assim como o Libération. No Brasil há a necessidade de se buscar uma isenção que é sempre inexistente, e acaba virando o festival Folha de combinar extremos ignorantes dos dois lados (juntar Safatle e Kataguiri não faz o leitor mais bem informado, apenas o expõe a extremos pouco elaborados dos dois lados).

Para responder a esta pergunta no domingo passado, porém, os donos e editores dos jornais não precisavam ir tão longe. Ninguém esperava que eles se manifestassem a favor do comunismo, do liberalismo ou da Igreja do Monstro do Espaguete. O que a sociedade espera de seus jornais é que sejam capazes de identificar quando um governo é contra a democracia e, portanto, contra esta sociedade, e que possam reagir a isto.

Era, porém, ainda mais fácil decidir o que fazer no domingo sem nem precisar se posicionar. As ruas das maiores cidades do Brasil se encheram, e as pessoas tinham causas legítimas. Sonegar esta informação aos leitores é mentir a eles. E não dar destaque em capa ao assunto, no contexto de um jornal diário, é sonegar a informação.

Em conversa com um amigo que trabalha no Estadão, ele argumenta que o jornal tem produzido reportagens que prejudicam o governo muito mais do que alguns dos veículos cuja postura é mais elogiada, como o El País e o Nexo. Não discordo. O problema é de postura: o Nexo, assim como o Gizmodo Brasil, não é um produtor de reportagens originais sobre política, este não é um de seus objetivos. Seu posicionamento, porém, é claramente pró-ciência, pró-democracia, a favor dos Direitos Humanos. Se o do Estadão também é, e por isso mesmo ele cumpre sua função expondo os defeitos deste e de outros governos, esconder os protestos do 29/5 é contrário a seu próprio credo.


Esta coluna é sobre mídia e, portanto, sobre jornalismo, sempre. S Deste ponto de vista, o que parece mais importante de analisar na omissão dos jornalões no domingo passado é: o que ela significa para os veículos que antes eram os donos dos poucos megafones mas que hoje representam só mais uma voz entre tantas.

No domingo, ao perceber que os jornalões tinham ignorado as manifestações, cancelei minhas assinaturas tanto do Estadão como d’O Globo. Não quer dizer que eu não vá assinar eles de novo: eu já cancelei minha assinatura da Folha de S. Paulo meia dúzia de vezes e voltei. Apenas quer dizer que, neste momento, não faz sentido para mim ajudar a bancar uma publicação porque jornalismo é importante se ela não pratica jornalismo.

Eu, porém, sou velho, da época em que todos líamos jornais impressos. A maioria esmagadora das pessoas não vai cancelar assinatura nenhuma porque nunca teve assinatura nenhuma, ou pelo menos não tem faz tempo. É provável que os jornalões tenham perdido poucos assinantes por causa da omissão. O impacto sobre a marca, entretanto, é muito maior, e muito mais difícil de avaliar.

Existe uma população enorme que nunca viveu no mundo em que o Estadão decidia o que era notícia ou não. Uma boa parte destas pessoas se informa por redes sociais e conversas com amigos. Hoje essas pessoas não sentem falta de alguém que lhe diga qual informação é confiável ou não. Há quem considere, porém, e estou entre essas pessoas, que isto tende a mudar. Vivemos hoje em um mundo de excesso de informação, e é pouco provável que as pessoas não escolham com o tempo alguns entre os milhões que as ajudem a definir no que dá pra confiar e no que não dá.

Se nunca voltarão  a exercer o papel que já exerceram no passado, de porta-vozes da notícia, os jornalões ainda estão bem posicionados para estarem entre estas fontes confiáveis. A maior parte da informação jornalística que se produz ainda vem deles, e mesmo quem se informa pelas redes sociais está recebendo indiretamente as informações que são apuradas por eles.

Este, no entanto, é um mundo em constante movimento e as marcas sobem e descem um pouquinho a cada dia e atitude. É tentador acreditar que O Globo sempre será O Globo e o Estadão sempre será o Estadão, que haverá uma elite que sempre recorrerá a ambos para saber no que acreditar ou não, mas este credo não tem base na realidade. Se as pessoas sabem que centenas de milhares de pessoas foram às ruas e os jornais não deram destaque a isto, não há Elio Gaspari ou Malu Gaspar que possam fazer os assinantes continuar a pagar. Até porque ambos sempre podem cobrar mais barato para se relacionar direto com os leitores, outro movimento que só cresce.

É pela democracia, é pelo jornalismo mas é também por uma questão mercadológica que Globo e Estadão deram um tiro no pé ao ignorar em 30 de maio o que aconteceu em 29 de maio. Infelizmente é apenas mais um sintoma de uma doença da qual os dois não parecem querer se curar.


A dica de hoje é uma série da HBO, Mare of Easttown, com a Kate Winslet. Ela é uma policial de uma cidade pequena que investiga uma série de crimes que parecem cometidos pela mesma pessoa. Se fosse uma série da Netflix você já teria visto 4 ou 5 iguais e igualmente decepcionantes, mas a HBO contrata um tipo de profissional bacana: um roteirista, no caso o excelente Brad Ingelsby. A série é toda boa: personagens, fotografia, roteiro, tem plot twists que você não fica puto de tão forçados, enfim, baita série. E agora já dá pra ver todos os episódios!


* Caio Maia é Diretor de Redação da F451, que  publica o Gizmodo Brasil, e escreve sobre mídia.

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