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Ordem executiva de Trump contra redes sociais não tem poder legal, dizem especialistas

O presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva que pretende alterar radicalmente os princípios fundamentais da internet moderna.

Trump no Salão Oval, em 28 de maio de 2020. Foto: Doug Mills-Pool/Getty Images

Na quinta-feira (28), Donald Trump continuou sua briga com o Twitter e outras empresas de mídia social que ele acusou de silenciar as vozes da direita. O presidente dos EUA levou a questão para um novo nível, que também é perigoso e legalmente questionável.

Trump assinou uma ordem executiva que pretende alterar radicalmente os princípios fundamentais da internet moderna, especificamente encarregando a Comissão Federal de Comunicações (FCC) de investigar se as empresas de tecnologia estão usando decisões de moderação como pretexto para assediar, banir e censurar conservadores.

A ordem executiva vem depois de o Twitter, no início desta semana, ter adicionado um módulo de verificação de fatos a alguns dos tweets de Trump.

O presidente dos EUA promovia uma teoria da conspiração de que os democratas estão cometendo fraudes eleitorais em massa. Isso deixou em polvorosa um governo já hostil aos gigantes do Vale do Silício, que vê estas empresas como uma espécie de polícia de pensamento e está desesperado por algo que domine manchetes que não sejam a resposta desastrosa à pandemia de coronavírus.

“Estamos aqui hoje para defender a liberdade de expressão de um dos perigos mais graves que enfrentou na história americana, francamente”, disse Trump a repórteres. “Um pequeno punhado de poderosos monopólios de mídia social controla a grande parte de todas as comunicações públicas e privadas nos Estados Unidos.”

A Seção 230

De acordo com uma versão preliminar do pedido que circula nas redes, Trump está exigindo que a FCC redefina o significado de uma seção crítica da Lei de Decência das Comunicações, conhecida como Seção 230, de uma maneira que ameaçaria eviscerar empresas como o Twitter, Facebook, Google e YouTube.

Especialistas disseram ao Gizmodo que essa política prejudicaria toda a internet, embora eles também concordem que o pedido é principalmente uma decisão sem sentido que se baseia de uma autoridade executiva que não existe.

A Seção 230 é o alicerce da internet e a base legal pela qual quase todas as principais plataformas são possíveis.

Sua primeira provisão importante, (c) (1), evita que os proprietários e usuários de sites sejam “tratados como publicadores ou oradores de qualquer informação fornecida por outro provedor de conteúdo de informações”.

Isso não é condicional e permite que plataformas que dependem de conteúdo agregado ou gerado por usuários funcionem sem serem processadas — por exemplo, impede que alguém caluniado em um vídeo do YouTube processe o próprio YouTube. Existem exceções a esta regra, incluindo o regime de aplicação de direitos autorais.

A próxima disposição, (c) (2), oferece aos proprietários de sites imunidade da responsabilidade por “qualquer ação voluntária de boa fé para restringir o acesso ou a disponibilidade de material que o provedor ou usuário considere obsceno, lascivo, imundo, excessivamente violento, assediante ou de qualquer outra forma censurável, independentemente de esse material ser ou não constitucionalmente protegido”.

Com efeito, isso impede as plataformas de se responsabilizarem por suas decisões de filtragem ou moderação de conteúdo, desde que essas decisões sejam tomadas de boa fé.

O termo “de qualquer outra forma censurável” é o que os legisladores chamam de “catchall”, uma redação generalista para abarcar todos os casos possíveis.

Ele provavelmente foi incluído porque os autores do projeto — o senador Ron Wyden e o ex-congressista Chris Cox — não tinham certeza de como a internet evoluiria.

Por exemplo, duas décadas no futuro, um site pode precisar contextualizar as postagens de um único usuário poderoso que frequentemente compartilha informações de saúde enganosas ou divulga teorias de conspiração sobre fraudes em votações.

A jurisprudência invocada pelos tribunais durante a infância da internet relacionou-se principalmente a casos envolvendo emissoras de rádio e editores de livros que datam da década de 1930.

Os editores eram responsáveis ​​por tudo dentro de seus livros, porque parte do trabalho deles era editar cada palavra. Se um livro continha algo difamatório, a editora era responsável.

Por outro lado, não se podia processar o proprietário de uma livraria por comentários difamatórios dentro de um livro, porque não se podia razoavelmente supor que o vendedor tivesse lido todos os livros na prateleira.

Os tribunais aplicaram essas teorias legais aos primeiros sites, pois não havia nada para basear as decisões. Se uma empresa tentasse moderar suas próprias páginas e fóruns, o tribunal a trataria como uma editora. Isso significava que era responsável por quaisquer comentários difamatórios postados por seus usuários.

Mas o oposto também era verdadeiro: se a empresa não moderasse seus sites, os tribunais agiam como se a empresa estivesse apenas administrando uma livraria. Como poderia saber o que seus usuários estavam fazendo?

O óbvio aconteceu: as empresas foram imediatamente desencorajadas a se envolver em qualquer tipo de moderação — como remover ameaças, pornografia de páginas frequentadas por crianças e até instruções sobre como construir bombas.

Para remediar o problema, foi aprovada uma lei que permitia às empresas de internet se envolver com moderação, até mesmo excluir completamente o conteúdo de suas páginas, sem ser penalizado financeiramente pelo sistema legal.

Esta é a única razão pela qual sites como a Wikipedia e serviços como o Yelp podem existir. Para empresas como a Amazon, as avaliações de usuários representariam uma enorme responsabilidade. Sem a Seção 230, eles teriam que fechar esta parte do site.

Na verdade, nove em cada dez dos sites mais populares da internet dependem muito da Seção 230 e desapareceriam da noite para o dia sem ela, prejudicando a economia da internet.

A ordem executiva de Trump

A maior parte da ordem executiva de Trump é uma reinterpretação criativa dessas seções, inconsistente com os entendimentos judiciais de longa data de seu significado.

Primeiro, a ordem executiva alega que as proteções de responsabilidade para plataformas que agem de boa fé nos termos de (c) (2) “não se estendem a ações enganosas ou pré-textuais que restringem o conteúdo online ou ações inconsistentes com os termos de serviço de uma plataforma online” (isto é, a alegada discriminação anti-conservadora nessas plataformas).

Dá então outro grande salto lógico, alegando que uma plataforma que faz essas coisas perde a imunidade da seção (c) (1).

O pedido também encarrega o Departamento de Comércio de solicitar à FCC a emissão de novas regras que esclareçam o que significa “de boa fé”, solicitando especificamente à FCC que examine como as plataformas tomam decisões de moderação:

(1) enganoso, pré-textual ou inconsistente com os termos de serviço de um provedor; ou

(2) o resultado de notificação inadequada, o produto de uma explicação irracional ou o fato de ter empreendido sem uma oportunidade significativa de ser ouvido;

Assim, sem nenhum tipo de ordem do Congresso, a FCC controlada pelos republicanos seria incumbida de elaborar uma lista de práticas que considerasse injustas, deliberando que empresas que potencialmente não atendam aos padrões declarados não possam desfrutar das proteções da Seção 230 ou tenham limites impostos por este mesmo texto. A maioria das decisões da FCC é submetida a votação, mas há três republicanos na comissão e apenas dois democratas.

A intenção desse processo é óbvia: Trump quer que plataformas que ele considere conspiradoras contra conservadores sejam magicamente categorizadas como editoras. Isso deixaria as empresas de tecnologia na mesma situação de um jornal que imprime uma coluna difamatória, apenas em uma escala gigantesca. Estas empresas poderiam ser processadas ​​até fecharem.

Isso quebraria a internet de todas as formas e criaria possibilidades ilimitadas de abuso, dependendo de como a ordem foi executada. Um exemplo: se os republicanos da FCC determinassem que os trolls estão sendo injustamente silenciados nas seções de comentários de um site, resultando em uma perda total das proteções da Seção (c) (1), isso significaria que esses mesmos trolls poderiam postar um comentário difamatório neste artigo e deixar o site exposto a uma ação judicial.

Por sua vez, também teria o efeito de silenciar quem usa essas plataformas. Sem a proteção legal, as empresas de mídia social podem optar por excluir muito mais conteúdo.

O que dizem os especialistas

Felizmente, é improvável que essa birra de Trump tenha qualquer peso legal e é mais provável que seja usada para pressionar as empresas de mídia social. Por um lado, a FCC — que, como a FTC, é uma agência independente — quase certamente não tem autoridade para realizá-la.

“A Casa Branca pode pedir à FCC que inicie o processo de elaboração de regras, mas a FCC tem o poder de recusar”, disse Eric Goldman, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Santa Clara e co-diretor do Instituto de Direito de Alta Tecnologia , ao Gizmodo por e-mail.

“Além disso, se a FCC emitir sua opinião sobre a interpretação da Seção 230, essa interpretação não terá efeito legal porque o Congresso não concedeu a ela nenhuma autoridade. Como resultado, o processo de elaboração de regras seria um lindo documento que todo mundo estaria livre para ignorar — e provavelmente ignoraria.”

Também é uma bobagem legal. A “tentativa de derrubar a Seção 230 (c) (1) e a Seção 230 (c) (2) (A) não é nada convincente”, acrescentou Goldman, observando que “violaria mais de 900 casos de interpretação da Seção 230”.

“A seção 230 (c) (1) diz que os sites não são responsáveis ​​por conteúdo de terceiros”, acrescentou Goldman. “Essa imunidade legal não depende de o site fazer ou não seus julgamentos ‘de boa fé’. Adicionar um requisito de boa fé à Seção 230 seria devastador para a doutrina legal. Tornaria cada ação judicial uma batalha muito mais cara e imprevisível e levaria anos para os tribunais chegarem a um consenso sobre o que constitui ‘boa fé’.”

Jessica Rosenworcel, uma das duas comissárias democratas da FCC, caracterizou o plano de Trump como perigoso e inaceitável. “Não é assim que funciona”, disse ela ao Gizmodo por e-mail.

“As mídias sociais podem ser frustrantes. Mas uma ordem executiva que transformaria a Comissão Federal de Comunicações em uma polícia da liberdade de expressão a serviço do presidente não é a resposta. Está na hora de os que estão em Washington se manifestarem pela Primeira Emenda. A história não será gentil com quem ficar em silêncio.”

Outra seção do projeto encarrega a Comissão Federal do Comércio (FTC, na sigla em inglês) de considerar ações contra empresas de mídia social que se envolvam em “atos ou práticas desleais ou enganosas”, que “devem incluir práticas de entidades reguladas pela Seção 230 que restringem a liberdade de expressão de maneiras que não alinham com as representações públicas dessas entidades sobre essas práticas”.

Também exige que a FTC revise milhares de relatórios não verificados de censura a conservadores submetidos a um portal da Casa Branca para determinar a validade das reclamações de que “grandes plataformas de internet que são vastas arenas para debate público, incluindo a plataforma de mídia social Twitter”, estão suprimindo “os direitos protegidos de livre expressão”.

“A FTC já tem autoridade para intentar ações de fiscalização sem se deparar com questões da Seção 230”, disse Goldman ao Gizmodo, citando especificamente um caso em que a FTC processou um gerente de marketing afiliado, LeadClick, por sites falsos de notícias fraudulentos criados por seus parceiros. A FTC também pode emitir quantos relatórios quiser, mas estes seriam essencialmente sem sentido, pois seriam baseados em milhares de reclamações não verificadas.

Daphne Keller, diretora de regulamentação de plataforma do Centro de Política Cibernética de Stanford, disse ao Gizmodo por e-mail que a ordem “parece um fluxo de consciência postado no Twitter que algum pobre funcionário teve que se transformar na forma de uma ordem executiva”.

“As questões subjacentes levantadas são realmente importantes, é claro: precisamos debater o poder das plataformas sobre o discurso público”, disee Keller. “Mas não é isso que esta ordem executiva faz. Ela não é uma discussão fundamentada e, em sua maior parte, nem sequer é legislação, porque muito poucas de suas passagens têm consequências jurídicas reais.”

O projeto de ordem também contém uma seção intitulada “Proibição de gastar dólares de contribuintes federais em publicidade com plataformas online que violam os princípios da liberdade de expressão”.

Curiosamente, como observado por Keller em sua versão anotada do rascunho, esta seção contém apenas uma ordem que solicita a todos os chefes das agências executivas que preparem um relatório para possíveis cortes no futuro:

Essa revisão deve incluir a quantia gasta, as plataformas online suportadas, as restrições de fala baseadas em pontos de vista impostas por cada plataforma online, uma avaliação sobre se a plataforma online é apropriada para o discurso da agência e as autoridades estatutárias disponíveis para restringir o valor da publicidade para plataformas online não apropriadas para o discurso dessa agência.

Mais política que legislação

A ordem pode estar repleta de bobagens, mas serve como um exemplo de até onde Trump está disposto a ir para exigir que a indústria de tecnologia siga sua cartilha. É também mais uma tentativa extrema de validar a narrativa de vitimização de Trump, na qual o presidente dos Estados Unidos e o partido que controla quase todos os ramos do governo federal são vítimas de uma conspiração gigante para silenciá-los.

“Em termos de esforços presidenciais para limitar comentários críticos sobre si mesmos, acho que seria preciso voltar à Lei da Sedição de 1798 — que tornou ilegal dizer coisas falsas sobre o presidente e alguns outros funcionários públicos — para encontrar um ataque supostamente legal de um presidente a qualquer entidade que comente ou imprima comentários sobre questões públicas e pessoas públicas”, disse à Reuters Floyd Abrams, advogado especializado em questões da Primeira Emenda.

Keller disse ao Gizmodo que considerava o assunto um teatro político e uma distração deliberada de questões de maior repercussão pública, como as mais de 100 mil mortes causadas pela pandemia de coronavírus nos EUA. Mas ela também observou que “a própria teatralidade é importante”, pois o governo Trump pode realmente ter cruzado a linha da Primeira Emenda ao emitir as ameaças.

“O objetivo da ordem executiva é transparentemente pressionar as plataformas a mudar suas políticas em questões como desinformação nas eleições”, disse Keller. “O governo não tem o poder de exigir essas mudanças, por causa da Primeira Emenda. Pressões como essa de atores estatais — alegando autoridade que não existe de fato, a fim de assustar as pessoas ou empresas — podem na verdade violar a Primeira Emenda. ”

Aparentemente, Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, cedeu, indo à Fox News esta semana para criticar o Twitter por checar o que o presidente dos EUA disse. Zuckerberg proclamou que as plataformas não devem se tornar um “árbitro da verdade”.

O Facebook demonstrou repetidamente que é um dos principais veículos do mundo para distorcer a verdade. Sua plataforma esteve envolvida em tudo, desde interferência política e teorias da conspiração até genocídio literal.

De acordo com uma reportagem recente do Wall Street Journal, Zuckerberg e outros executivos importantes, como o chefe de política do Facebook, Joel Kaplan, tomaram a decisão de não tentar reduzir a polarização no site, apesar das descobertas alarmantes de seus próprios pesquisadores, que viram que 64% das pessoas em grupos extremistas do Facebook se juntaram a eles por recomendação do próprio Facebook.

“O presidente Trump continuará seus ataques à liberdade de expressão e os tribunais os derrubarão, mas enquanto isso esperamos que as empresas de mídia social não se isentem da responsabilidade de proteger a vida dos usuários e nossa democracia em suas plataformas”, Jessica González, co-fundadora da Change the Terms e co-CEO da Free Press, disse ao Gizmodo em um comunicado.

“Ao primeiro sinal dessa ação ilegal da Casa Branca, Mark Zuckerberg do Facebook imediatamente cedeu ao presidente, argumentando que não é seu trabalho garantir que o povo americano receba informações precisas sobre a votação”, acrescentou González. “Ficamos assustados ao pensar em como essa posição covarde se aplicará ao ódio irrestrito e à desinformação no Facebook que ameaça a vida de milhões sob a liderança de Zuckerberg.”

Colaborou Dell Cameron

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