Os melhores posts “Caso Fnac” já aconteceu há 5 anos. E ninguém aprendeu
Durante o mês de aniversário, vamos republicar os 20 posts que mais bombaram na história do Giz, caso você tenha perdido algumas das coisas bacanas que passaram aqui. Divirta-se.
O recente caso da Fnac não foi o primeiro nem será o último em que uma loja erra bisonhamente o preço, pede desculpas, e os espertos de plantão tentam forçar a barra para ter o produto entregue. Há 5 anos, um panfleto circulou em jornais de São Paulo que mostrava TVs de Plasma a R$ 2.099. Hoje parece um preço ok, mas na época o valor normal era R$ 20.990. Dia desses descobri que um amigo meu foi o advogado da empresa na época, e contou como foi enfrentar 20 ações na justiça de pessoas reclamando de seus "direitos".
Como no caso do Makro, a Best Mix, loja em questão, se apressou em colocar uma errata bem grande na entrada da loja. As pessoas ficavam revoltadas, mas iam embora. Tinham o direito de reclamar e exigir o dinheiro da passagem ou algo do tipo (que eu duvido que tenha sido oferecido), mas a situação estava aparentemente controlada. O problema, disseram os donos da loja, é que a principal revendedora ficava próxima à Globo. E os jornalistas viram uma boa história ali, num fim de semana paradão, e foram lá documentar. As pessoas, em vez de aproveitar as câmeras e fazer a dança do siri ou algo parecido, ficaram mais bravas. É só a repórter bonitinha perguntar pro cara encher o peito e dizer que "isso é um absurdo", aquela coisa toda. Para piorar, o especialista do Procon-SP ouvido pela reportagem no sábado nem pensou muito em avaliar o caso e soltou que "o cliente tem a razão. A publicidade é vinculativa!". TV mostrando barraco + Procon contra a loja fez com que algumas pessoas que não conseguiram comprar a TV (a loja se recusou a vender) fossem à delegacia, horas ou dias depois, registrar queixa.
Muitas das pessoas que se sentiram "lesadas" sequer foram à loja. Uma das ações era de cinco pessoas de Canoinhas, em Santa Catarina, onde eles exigiam que o negócio fosse vendido pelo preço anunciado – possivelmente porque o dano moral de quase planejar uma viagem era terrível. Outra ação foi registrada quase um mês depois, por um advogado que juntou algumas pessoas conhecidas que se diziam lesadas. Era como juntar um bolão. Não custava muito e o prêmio tinha um valor relativamente alto. O objetivo dos advogados que representavam os consumidores era pulverizar as ações em juizados diferentes, para que pelo menos um magistrado ficasse do lado deles.
A defesa da Best Mix foi razoavelmente simples. Mostraram a nota fiscal de compra das TVs com o fornecedor (no caso a Phillips), onde aparecia o custo de R$ 17.000. Para colocar um preço tão abaixo do custo, seria uma idéia de dumping extremamente burro. Não era o caso. Os juízes entenderam o raciocínio da defesa: Ok, a publicidade é vinculativa, é o que diz o CDC, mas há casos em que a interpretação da lei não é tão simples. Fosse assim, por que haveria um juiz? O código de Defesa do Consumidor não pode ser usado para que alguém tenha vantagem clara e uma outra parte seja flagrantemente lesada. Todas, menos uma das ações foi vencida em primeira instância. Um dos juizes entendeu que, antes de o caso ser encerrado, o cliente tinha direito à TV, por liminar. Ele e todos os outros perderam em segunda instância (justiça estadual), no fim do ano. Mas a loja só conseguiu reaver a TV dada em liminar três anos depois, quando ela já não valia tanto. A própria Best Mix, braço da Panashop, fechou as portas um ano depois, em 2005.
FIM.
Agora um espaço para reflexão: você já reparou como a história do "o cliente tem sempre a razão" é levada a extremos no Brasil? Aqui muita gente acha absurdo quando está com a namorada no restaurante e os garçons começam a colocar as cadeiras sobre as mesas, ou já dão a conta porque, afinal, passou meia hora do horário de fechamento. "Que falta de respeito, não?" Vá para a Europa. Lá, não só o negócio fecha meia hora antes do previsto, pra dar tempo de todos os garçons e cozinheiros pegarem ônibus, como há restaurantes que sequer abrem na alta temporada: os trabalhadores também têm direito a férias no verão. Falta a nós olhar o outro lado. Por aqui: "Dane-se que a empresa vai ter 1 milhão de Reais de prejuízo" (um número bem razoável no caso da Fnac, já que teve gente que comprou 100 TVs) ou que o garçom vá perder o ônibus. "Eu quero meu direito!" Bobagem. Mesquinharia e egoísmo. Outro argumento é que empresas como a Fnac já ganham absurdos com margens de lucro ridículas e devem "tomar lições" como essa. Se a distribuição de renda forçada é ok para vocês, então que não se condenem à prisão pessoas que assaltarem figuras muito ricas, certo? Olho por olho, dente por dente.
Algumas pessoas falaram no tópico da Fnac "ah, nos EUA seria diferente". Provavelmente. Não haveria essa discussão absurda, porque nos países desenvolvidos há não só o respeito ao direito do cliente, mas das empresas também. É claro que provavelmente o mesmo tanto de pessoas tentaria comprar um negócio com preço errado. Há esperteza inconsequente em qualquer lugar do mundo. Mas acho pouco provável que reclamassem se a loja não entregasse. Pesquisei ontem o dia inteiro em lugares como o Consumerist ou a própria Federal Trade Commission e não achei registro de caso semelhante – até porque, me parece, eles são comuns e os clientes não levam a queixa à justiça. O Código de Defesa do Consumidor nos EUA tem só 6 artigos, e é mais um balizador de decisões dos juízes que normas que dizem quantas UFIRs o estabelecimento pagará de multa se fizer isso ou aquilo de errado. Cada Estado tem autonomia para fazer uma legislação específica. E cada loja tem alguma autonomia para expressar no seu contrato de compra o quanto ela pode errar.
Em 2003, quando uma falha no site da Amazon, na Inglaterra, fez com que iPaqs aparecessem com um preço de 7 libras, em vez de 300, centenas de pessoas se apressaram em comprar. A Amazon cancelou tudo, igualzinho a Fnac. A loja disse que no seu contrato de compra a negociação só é de fato finalizada quando o produto é enviado. Assim como você pode mudar o pedido (não sei quantas vezes eu troquei a quantidade ou cancelei alguma coisa num megapedido da Amazon), eles podem cancelar a compra se notarem alguma coisa estranha. Qual foi a reação da mídia por lá? Um artigo na BBC pedindo para as pessoas pararem de tentar tomar vantagem dos erros dos sites.
Pra mim, a Fnac, o Makro e quem mais errar deve ser autuado por órgãos oficiais se cometerem erros seguidos e trazer dor de cabeça aos clientes. O Procon deve ser mais ativo, por exemplo, em cobrar da Telefônica não só explicações, mas ressarcimento aos consumidores do Speedy. Mas no fim das contas o mercado e os clientes se regulam de uma certa forma, se todo mundo agir na tal "boa fé". Pense no MercadoLivre: se você compra sem querer um negócio e muda de idéia depois, explica a história pro vendedor, e se tudo der certo, você ganha uma qualificação "neutra". E do outro lado: se baixar em você um espírito de estagiário do Makro e você errar em um anúncio, há a chance de você só descobrir pela manhã que vendeu, de madrugada, 40 Wiis por R$ 10. Você simplesmente explica por e-mail aos compradores que errou. Vai ganhar qualificações negativas, ok. Mas venda melhor e mais barato das próximas vezes que sua reputação volta ao normal. Ficou bravo com a Fnac? Não compre mais, é simples assim.
Mas não venha aqui reclamar do seu "direito" de ter uma TV Full-HD a 10 Reais.
UPDATE: O Cardoso (via emersonanomia) achou um parecer jurídico explicando porque a loja virtual não é obrigada a vender quando o preço é estupidamente baixo, numa decisão da justiça do Rio de Janeiro em 2006. Preço vil x boa-fé:
Ementa nº 2
COMPRA E VENDA
INTERNET
PRECO VIL
BOA FÉ OBJETIVA
ANULAÇÂO DO NEGOCIO JURÍDICORecurso Inominado. Compra e venda de equipamentos de informática. Preço vil. Invalidade do negócio jurídico. CDC. Código Civil. Autor que adquire através da Internet equipamentos de informática por preço vil e nitidamente inferior ao preço de mercado em decorrência de erro no preço do produto. Erro substancial passível de percepção por pessoa de diligência normal, e que "in casu" seria facilmente constatável pelo autor, um analista de sistemas. A vinculação à oferta prevista no art. 30 do CDC deve ser interpretada considerando o princípio da boa-fé objetiva que deve nortear as relações de consumo, inerente a ambas as partes, constante do art. 4., inciso III do mesmo Diploma. Negócio jurídico viciado com incidência dos artigos 138 e seguintes do Código Civil, inviabilizando a sua concretização, como tenta o autor. Indenização por danos morais que se afigura descabida sob pena de banalização do instituto. Sentença que se reforma. Recurso conhecido e provido para julgar improcedente o pedido.
TURMAS RECURSAIS 0219039/2006
CAPITAL 3ª TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEISUnânime
JUIZ CLEBER GHELFENSTEIN Julg: 24/05/2006
UPDATE 2: Eu não gosto e nem aprovo a idéia, mas em nenhum momento falei no texto que quem comprou era pessoa do mal, de má-fé ou o que fosse. Conheço gente do bem que até tentou comprar, não conseguiu e pensou "ah, paciência. Tava barato demais". O que eu realmente acho o fim da picada é a galera que se acha NO DIREITO. Isso sim, é má-fé.
UPDATE 3: Pelamordedeus, PAREM (não só aqui, mas em todos os lugares da web) de dizer que a Gol vende passagens a R$ 1. Ela só vende se você comprar mais de um trecho, e em condições especiais. Ou seja: na melhor das hipóteses, o desconto é de 50% (passagem normal + passagem de R$1 /2), e não de 99%, como na Fnac. E mesmo que você force a barra, para uma companhia aérea levar 120 ou 140 passageiros o custo é praticamente o mesmo. Então às vezes pode valer à pena colocar passageiros no avião pagando R$ 1 mais a taxa de embarque. Ganha novos clientes, no mínimo. No caso de uma loja que vende produtos, e não serviços, o custo é muito mais facilmente mensurável, assim como o prejuízo.
[Originalmente postado em 21/5/2009 – veja o original, aqui]